Etiquetas
Anfigúricos são alguns dos poemas de Gonçalo M Tavares (1970), herdeiros de Anfiguri de Filinto Elíseo tanto no ritmo com que constrói a poesia, no aparente sem sentido lógico do encadeamento vocabular, como no sarcasmo, embora muitos dos seus poemas levem a vida a sério mesmo quando lhe investigam o absurdo.
Para as considerações sobre anfiguri enquanto género literário, remeto o leitor para o artigo sobre Anfiguri de Filinto Elíseo, já publicado no blog. De Gonçalo M Tavares, escolho dois poemas:
primeiro o poema 36 de Livro da Dança, do qual retenho o verso:
todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.
e depois, o poema Descrição de uma cidade, do livro 1. Neste poema, variada reflexão sobre a existência e o mundo, todo o problema da natação surge com enorme acutilância. E se o poema termina com os judiciosos versos:
… E não se ilumina a escuridão,
Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque
A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.
atrever-me-ia a destacar da secção média do poema os versos:
O mundo é perfeito de todos os lados,
Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico
Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.
Vamos então aos poemas na totalidade.
36
a proporção é morta.
a geometria tem tristeza.
Os seios feridos deitam sangue em vez de leite.
a matemática é impossível
a confirmação é a insistência do impossível
a prova é morder o fantástico e dar importância aos dentes
a proporção é MORTA.
Os ossos têm Cérebro e apaixonam-se.
a geometria tem tristeza
todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.
a proporção é MORTA
o corpo é a biografia das últimas horas da CARNE à frente da técnica
É o dia depois da geometria (a dança)
últimas horas da carne à frente da técnica.
Descrição de uma cidade
Não há lado esquerdo na metafísica,
O que não é uma limitação.
A produção industrial de problemas
Solta para o ar nuvens espessas
Que interferem no aeródromo.
Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo
Porque, entre os vários desenhos, os miúdos
Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito
Pesa mais que a existência concreta de um
Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre
O Nada e a montanha. Entretanto, a
Natação tornou-se importante para a cidade
Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo
Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais
Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também
As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos
Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.
O mundo é perfeito de todos os lados,
Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico
Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.
O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem
Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera.
As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,
É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês
Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente
As aves baixas.
No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,
Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações
Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por
Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,
Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque
A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.
Notícia bibliográfica
Livro da Dança, edição Assírio & Alvim, Lisboa 2001.
1, edição Relógio d’Água, Lisboa, 2ª edição, 2011.