Dois poemas de Gonçalo M Tavares

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Kandinsky Composição VIII

Anfigúricos são alguns dos poemas de Gonçalo M Tavares (1970), herdeiros de Anfiguri de Filinto Elíseo  tanto no ritmo com que constrói a poesia, no aparente sem sentido lógico do encadeamento vocabular, como no sarcasmo, embora muitos dos seus poemas levem a vida a sério mesmo quando lhe investigam o absurdo.

Para as considerações sobre anfiguri enquanto género literário, remeto o leitor para o artigo sobre Anfiguri de Filinto Elíseo, já publicado no blog. De Gonçalo M Tavares, escolho dois poemas:

 

primeiro o poema 36 de Livro da Dança, do qual retenho o verso:

 

todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.

 

e depois, o poema Descrição de uma cidade, do livro 1. Neste poema, variada reflexão sobre a existência e o mundo, todo o problema da natação surge com enorme acutilância. E se o poema termina com os judiciosos versos:

 

… E não se ilumina a escuridão,

Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque

A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

 

atrever-me-ia a destacar da secção média do poema os versos:

 

O mundo é perfeito de todos os lados,

Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico

Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.

 

Vamos então aos poemas na totalidade.

 

36

a proporção é morta.

a geometria tem tristeza.

Os seios feridos deitam sangue em vez de leite.

a matemática é impossível

a confirmação é a insistência do impossível

a prova é morder o fantástico e dar importância aos dentes

a proporção é MORTA.

Os ossos têm Cérebro e apaixonam-se.

a geometria tem tristeza

todo o conceito tem buracos por onde se escapa o vinho e o INSÓLITO.

a proporção é MORTA

o corpo é a biografia das últimas horas da CARNE à frente da técnica

É o dia depois da geometria (a dança)

últimas horas da carne à frente da técnica.

 

 

Descrição de uma cidade

 

Não há lado esquerdo na metafísica,

O que não é uma limitação.

A produção industrial de problemas

Solta para o ar nuvens espessas

Que interferem no aeródromo.

Aviões cobertos de graffiti não conseguem levantar voo

Porque, entre os vários desenhos, os miúdos

Desenharam pedras de granito. A Ideia de granito

Pesa mais que a existência concreta de um

Balão, o mundo das ideias é estado transitório entre

O Nada e a montanha. Entretanto, a

Natação tornou-se importante para a cidade

Depois do dilúvio ocorrido há três mil anos. O governo

Oferece inscrições gratuitas e ainda casais de animais

Bruscos, mas mansos. Os homens andam felizes, e também

As mulheres, porque todos aprendem a nadar antes dos

Sessenta. Hoje, neste século, morre-se afogado mais tarde.

O mundo é perfeito de todos os lados,

Menos do lado onde estamos: como um sólido geométrico

Belo que cai em cheio na cabeça desprevenida.

O mundo é fantástico visto de cima, de helicóptero. A linguagem

Sobe e interfere em camadas específicas da atmosfera.

As palavras que usas não são inertes. O inglês, por exemplo,

É Língua que entra excessivamente nas nuvens. O inglês

Para a Astronomia é deselegante, e prejudica ligeiramente

As aves baixas.

No outro lado do mundo, entretanto, alguém, de grandes dimensões,

Enfia o aeródromo num saco de plástico. As pulsações

Da alma medem-se pelos pressentimentos, não por

Aparelhos medicinais. E não se ilumina a escuridão,

Ilumina-se algo que já não é escuridão; precisamente porque

A escuridão é escura, escuríssima segundo dizem.

 

Notícia bibliográfica

 

Livro da Dança, edição Assírio & Alvim, Lisboa 2001.

1, edição Relógio d’Água, Lisboa, 2ª edição, 2011.

Canção de Amor — Anónimo séc X-XI

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Arpad Sczenes - A alcova 1935

Transcrevo a seguir uma canção de amor do cancioneiro goliárdico Carmina Cantabrigiencia.

Estes cancioneiros, escritos em latim medieval, e acompanhados da forma de os cantar, gozam de uma aura de licença decorrente da suposta vida dos seus autores, ainda que em muitos poemas não fujam à sátira sobre vícios e desmandos da época. São na sua maioria canções anónimas, e seriam cantadas por estudantes universitários da Europa medieval, que, não exactamente diminuídos de posses, circulariam de universidade em universidade, levando uma vida de estúrdia, repartida entre comes e bebes, mulheres, e jogo, a atender ao teor de algumas das canções conhecidas.

Talvez o mais conhecido destes cancioneiros seja Carmina Burana, do qual noutro artigo falei. O cancioneiro onde se encontra o poema de hoje é mais antigo e conhecido como Carmina Cantabrigiencia — Canções Cantabrigenses ou de Cambridge, assim chamado por pertencer à universidade de Cambridge.

 

 

Iam, Dulcíssima Amica, Venito

 

Vem agora, doce amiga,

a meu coração tão cara!

Vem agora a minha casa,

para ti toda enfeitada…

 

Há véus que pendem do tecto;

e há cadeiras, e almofadas;

e também não faltam flores,

por entre ervas perfumadas…

 

A mesa já está servida,

de iguarias carregada;

e haverá límpido vinho,

e tudo o que mais te agrada…

 

Ouvirás, ao som da flauta,

doces músicas tocadas;

por um moço e uma donzela

belas canções entoadas…

 

Ele canta ao som da cítara,

ela na lira embalada…

E os servos trazem taças

com bebidas aromáticas…

 

—”Agrada-me mais que a mesa,

A agradável sobremesa;

Mais que a rica pitança,

A amorosa confiança.”

 

Vem agora, minha irmã,

acima de tudo amada,

ó clara luz dos meus olhos,

parte maior da minh’alma!

 

—”Sempre vivi na floresta,

Não amei lugares de festa;

Evitei sempre o gentio,

E das gentes me desvio.”

 

Meu amor não queiras tardar

Empenhemos-nos em amar.

Sem ti viver é bem duro,

O nosso amor está maduro.

 

Porquê, amiga, entreter,

Se por fim se irá fazer?

O teu que fazer acelera,

Pois eu já não tenho espera.

 

Carmina Cantabrigiencia, tradução de David Mourão-Ferreira versos 1-20, 25-28 in Vozes da Poesia Europeia – I.

 

Os restantes versos do poema são tradução minha a partir de versão castelhana, e apresentam-se em itálico no poema.

 

Para os leitores curiosos, tanto do original latino do poema, como de outra poesia goliardica, desde que leiam castelhano,  encontram um manancial na edição Poesia Goliardica, tradução de Miguel Requena, edição Alcantilado, Barcelona, 2003 .

 

A abrir, a imagem de A alcova, pintura de Arpad Szenes (1897-1985).

A conferência dos partidos — pintura de Paul Klee, com passagem pelo Reino de Pacheco

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Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919

Os sonetos a Nize do Abade de Jazente

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Aparte algumas aventuras galantes de que deixou eco na sua poesia, terá Paulino Cabral de Vasconcelos (1719-1789), Abade de Jazento  tido paixão por uma Nize, cujas vicissitudes podemos seguir através de variados sonetos reunidos na sua obra.

 

Sendo Nize um nome convencional na poesia portuguesa do século XVIII, os variados poemas dedicados a uma Nize podem sê-lo às mais variadas mulheres. Lendo os sonetos dedicados pelo Abade de Jazente a Nize, estes parecem ser dedicados sempre à mesma mulher. Acrescenta esta convicção a carta onde explicitamente menciona esta sua paixão ao amigo a quem escreve num momento de melancolia.

 

Nestes sonetos seguimos as vicissitudes de uma relação, desde o ardor inicial da paixão à indiferença e despedida.

 

Os sonetos encontram-se disseminados ao longo da obra publicada, sem indicação de data. Apenas o assunto permite introduzir alguma cronologia, o que vamos tentar na sequência da sua transcrição.

O elevado número de sonetos com Nize como pretexto, torna incomportável com o formato do blog a transcrição da totalidade. Vejamos, por isso, algumas etapas principais desta paixão:

 

*

Eu como, eu bebo, eu durmo, e sem receio

Do que há de vir a ser, a vida passo,

Ora de Nize no gentil regaço,

Ora das Musas no sonoro enleio.

 

Às vezes pesco, às vezes jogo, ou leio,

E torres vãs também no vento faço;

Depois me vou meter naquele espaço,

Onde Descartes tinha o seu passeio.

 

De lá mil orbes vejo, e de improviso

Soltando ao pensamento as vagas velas,

Turbilhões de cristal sem medo piso.

 

E pondo-me por cima das estrelas,

Descubro a terra em baixo, e me dá riso

Contemplando do mundo bagatelas.

 

**

Enxuga o pranto ó Nize; e sossegado

Afouta mostra o rosto belo à gente;

Que um sucesso no mundo tão frequente,

Não deve ser por ti tão lamentado.

 

Tinha de ser: torne-se a culpa ao fado:

Tudo se esqueça, e viva-se contente;

Que em parte se confessa delinquente,

Quem não sabe ocultar o seu cuidado.

 

Não tens que recear; que à mocidade

Se perdoa um descuido; e sendo bela,

Até se lhe disfarça uma maldade.

 

A honra é nome vão, que só disvela

As rústicas vilãs: e a Nize idade

Toma os casos de amor por bagatela.

 

***

Vinde cá doces musas, que somente

Divertir-me convosco agora intento,

Pois neste solitário apartamento

Não é fácil sem vós viver contente.

 

Ao doce som da cítara cadente

Daremos aos penhascos sentimento,

Pulsando vós harmónico instrumento,

E eu cantando o mal, que o peito sente.

 

Tocai qu’eu principio: uma saudade

Expressada nas frases d’harmonia,

Compaixão às montanhas persuade.

 

Mas ah! Quanto me engana a fantasia;

Pois movendo os penedos à piedade,

Mover não sei de Nize a rebeldia.

 

****

Eu que cantei na verde mocidade

Essa ardente paixão, que amor se chama;

Que a tanto homem de bem, que a tanta Dama,

Tira o repouso, e rouba a liberdade:

 

Que cantei desse Nume sem piedade

As setas, o carcás, e aquela chama,

Que abrasa aos Sábios, que os heróis inflama;

Que acende até no trono à Magestade:

 

Eu que da bela Nize o génio inquieto

Quis me servisse no verdor dos anos

Aos versos meus de principal objecto;

 

Eu, conduzido enfim dos próprios danos,

Mudei de assunto, e em vez de um louco afecto

Canto agora as lições dos desenganos.

 

Poemas transcritos de Poesias, texto integral da 1ªedição, INCM, Lisboa 1985.

 

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Jean Frederic Schall (1752-1825).

Se… por Alexandre O’Neill

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Talvez alguns leitores estejam lembrados do poema Se, tradução do poema de Rudyard Kipling (1865-1936), If, e foi um must estampado num cartaz que encheu paredes de quartos juvenis por finais dos anos 60 do século XX. É uma paródia a esse poema que Alexandre O’Neill (1924-1986) faz neste seu poema, Se…, que a seguir transcrevo.

 

 

SE…

 

Se é possível conservar a juventude

Respirando abraçado a um marco de correio;

Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu

Deixando-a em estado grave;

Se ao descer do avião a Duquesa do Quente

Pôs marfim a sorrir;

Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;

Se na América um jovem de cem anos

Veio de longe ver o Presidente

A cavalo na mãe;

Se um bode recebe o próprio peso em aspirina

E a oferece aos hospitais do seu país;

Se o engenheiro sempre não era engenheiro

E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;

Se reentrante, protuberante, perturbante,

Lola domina ainda os portugueses;

Se o Jorge (o “ponto” do Jorge!) tentou beber naquela noite

O presunto de Chaves por uma palhinha

E o Eduardo não lhe ficou atrás

Ao sair com a lagosta pela trela;

Se “ninguém me ama porque tenho nau hálito

E reviro os olhos como uma parva”;

Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa

Cantar com o Alberto…

 

…acaso o nosso destino,tac!, vai mudar?

 

 

Publicado pela primeira vez em No Reino da Dinamarca, 1958. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989).

Onde… António Ramos Rosa

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William-Adolphe_Bouguereau_(1825-1905)_-_Biblis_(1884)A750

É uma espécie de itinerário de busca…, de busca da mulher e do amor, o caminho que os poemas de António Ramos Rosa (1924-2013) a seguir transcritos, nos convidam a percorrer.

Os poemas têm, por um lado um aroma de enigma, do enigma das coisas intuídas, e acrescentam-lhe o sabor do ritmo que distingue a poesia de outras formas de dizer.

 

A mulher  A casa

 

A casa é viva

(A mulher dorme)

Dorme na espuma

nas cores puras

Dorme na espuma do silêncio

 

Planos brancos

e cores lisas

 

Dorme no vidro

tranquilo

 

Dorme viva

 

A casa é branca

É mais branca no silêncio

É mais branca entre as árvores

 

A própria cidade é branca

 

A cabra

cheirou a casa

cheirou o branco

 

O puro nó

do silêncio

 

Chego em silêncio

à mulher viva

dormindo

 

A casa é ela

em espiral

rodando

branca

 

É fino o ar

quase sem pó

Uma árvore dá

uma curta sombra

 

Uma brisa lava

a casa fresca

 

A varanda nua

é seca e branca

com sede de mar

 

A varanda é nua

A mulher é nua

 

Da casa branca

vê-se o mar

o fulvo dorso

da praia

nu

 

mulher de areia

deitada e panda

na frescura azul

 

Uma vela branca

de minúcia fresca

 

dá ao olhar a brisa

dá ao silêncio o mar

 

A mulher dorme

viva

na espuma

do silêncio

 

 

Onde o caminho

 

Onde o caminho é a mão que se abre,

a mão que vai.

O silêncio que respiro é o caminho que vem.

 

A mão nova palpa a parede do ar.

Uma parede nova.

 

Caminho para o solo alto.

Desloco a terra.

 

O fragor branco do céu.

 

O dia não estala.

 

Termino com o perfume de erotismo que o poema Onde é aqui exala.

 

 

Onde é aqui

 

Onde é aqui,

o centro,

onde se respira,

a cama limpa

o corpo inteiro e nu.

Onde é a fome e o braço toca

o esplendor.

Respira o ventre,

a vela incha

ao sol e ao mar sem fim.

 

Onde é aqui,

a fome nua,

a árvore exacta

no centro

da alegria,

a luz e o olhar

aberto ao mar.

Poemas transcritos de A Palavra do Lugar, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1977.

A imagem de abertura respeita a uma pintura de William-Adolphe Bouguereau (1825-1905).

Filinto Elíseo — Anfiguri e dois epigramas

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Pollock - Numero 8 1949

Epigrama

 

Prometeu, quando fez o homem primeiro,

Macho e fêmea, dous corpos fez, pegados:

Porém Jove um composto assim inteiro

Partiu em dois terníssimos bocados.

Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro

Dos membros, que nos foram arrancados.

— Ei-la — (nos diz o Coração) — É aquela —

Mas vamos a prová-la, e nunca é ela.

 

 

A exigência de uma sólida cultura clássica, a dureza do verso, a persistente recusa no uso da rima, sobretudo nas odes, tudo contribui para afastar o leitor moderno da poesia de Filinto Elíseo (1734-1819). E contudo, que grande poeta!

 

É no fluir encantatória do verso (aqui com rima) que reside todo o fascínio do Anfiguri de Filinto Elíseo que mais à frente transcrevo.

Género poético raro, de difícil factura com sucesso, este anfiguri antecipa todas as vanguardas literárias que o século XX conheceu e nos próximos artigos ilustrarei. É simultaneamente poesia dadaista e surrealista no conteúdo, e experimental no exercício sobre a palavra que tão caro foi às vanguardas poéticas ao longo do século XX.

 

Hoje as preocupações poéticas de criadores centram-se sobretudo nos relatos do “eu e o mundo” no tom sério que, supõem, convém à poesia. O non-sense, o absurdo, ou tão só o trabalho sobre a palavra, se têm cultores, não têm leitores.

Voltando ao que me ocupa hoje, define o dicionário anfiguri como obra literária de sentido confuso; e assim será. Mas ser de sentido confuso não significa ser sem sentido. E é aí que o desafio se coloca: perscrutar os sentidos possíveis num anfiguri que seja também, como é aqui o caso, um poema, notável pela organização rítmica da palavra, essência mesma da poesia.

Pollck- Fora da rede numero 7 1949

ANFIGURI

 

Dá cá o presunto,

Rapaz enfeitado:

Quem não comeu bocado

Não morre de fome.

Morreu Lobisomem

Em camas de neve

Co’a pena que escreve

Decretos de Amor

Que quis com primor

Em rico tapete

Depor o sainete

Da concha Ciprina.

Eu vi a Menina,

Que vence as formosas

C’os lírios, e rosas,

Falar de sob-capa

A bichos do Papa.

Foi muito daninho

Às cepas do Minho

O sol deste inverno:

Quem pôs o governo

Nas mãos da criança

Não canta nem dança;

Mas põe geringonça

Nos papos da Onça.

Garrido estribilho,

Com palha de milho

Vai mui penitente

Nas pelas da gente

Sorver a mostarda,

Que trouxe a Bastarda

Nas garras do lobo.

O magro Farrobo

Nas altas ameias,

Sem ligas, sem meias

Gritou tartamudo:

“Trazei-me veludo

De pelo encarnado

Que dê mau olhado

A três feiticeiros.”

Os velhos gaiteiros

Rebentam de riso

Co’as trovas de guizo

Na vã carapuça.

Bem vai quem se aguça

Por ver o chavelho

Do bom scaravelho

Pintado de azul;

E a penca ao Taful

Da parda caraça,

Que bem se almofaça

C’o texto da Glosa.

E viva essa Moça,

Que compra o rebique,

E diz no despique:

“São bons carapaus.”

Ásados maraus

Com pança balofa

Refrescam a fofa

Nas costas do Alfeito.

Mas foi mui bem feito

Trazerem castanhas

De avulsas maranhas

Do monte Pegú.

O Cucurucú

Despindo as baetas

Mostrou carapetas

Nos Alpes gulosos.

Vieram gostosos

Os nabos Turquinos

Trazer aos meninos

As torres da Sé.

Não ouve, não vê

Cruel rapazia

Dragão que assobia

Deserto e Filhota.

O Céu se encapota

Com manto de sarro

E chove catarro

Por gordas goteiras.

Sacode as peneiras

Brincam Demonico;

Lá leva no bico

Barbudo alguidar.

Mandei bugiar

O homem de ferro,

Que vai como um perro

Capar os picanços.

Passeiam mui mansos

Subtis Jesuítas

Varrendo as Mesquitas

De São Sarabando

Aqui vão quebrando

Os ecos das bombas,

Que estouram nas trombas

Dos Rinocerontes.

Com seis Faetontes

Nas pregas da cauda

Compunha uma lauda

De vãos palavrões

Para as Conclusões

O grande Enxobregas,

Que estanca as bodegas

Da esconsa Prosódia.

Gentil palinódia

Discanta o Sultão

No grão Casarão

Que Merlim lhe acabou.

Aqui me mandou

O seu mensageiro

O mui marralheiro

Autor da matraca,

Que intrépido ataca

Com seus consoantes

Os versos tonantes

Sem tais maravalhas;

E afia as navalhas

Trombudo Censor,

Sem pejo, sem dor.

Eu nestes entrementes

Vos lanço a seus dentes

Versículos louquinhos.

Pollck - pintura 1945

Para despedida, hoje, da poesia de Filinto Elíseo, termino com outro epigrama do poeta.

Epigrama

 

Entender de comércio é gran venida

Para dourar com cabedais a vida:

Val mais que tenças, mais que bons morgados.

Saibam que Filis d’alugar seu leito,

Que apenas lhe custou vinte cruzados,

Tira dez mil, cada ano, de proveito.

Poemas transcritos de Obras Completas, volume I, edição APPACDM, Braga, 1998, integrado em Obras Clássicas da Literatura Portuguesa, edição de Fernando Moreira a partir da 2ª edição, Paris, 1817.

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Jackson Pollock (1912-1956).

Alberto Pimenta — problema com vista a orientar os interesses infantis para as realidades quotidianas

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GaivotaXXXX

Em vez de pôr mãos ao trabalho mal acabado o almoço, peguei ao acaso num livro da estante: eram obras de Alberto Pimenta (1937).

Embalei e pouco fiz do que precisava. Diverti-me e saboreei muita da melhor poesia experimental que por Portugal se fez.

Do muito que li, escolhi para transcrever um poema que me trouxe à memória os desafios matemáticos que no liceu nos ocupavam.

Para os jovens estudantes que procuram frequente e insistentemente o blog em busca de interpretações poéticas, talvez o problema de hoje lhes soe familiar na sua formulação, que não no conteúdo, certamente.

Para os outros leitores, em quem a memória escolar pode já ser difusa, é provável que a brincadeira de Alberto Pimenta (1937) em forma de poema lhes recorde os desafios matemáticos do ensino básico.

E para aqueles que fizeram o liceu até à reforma Veiga Simão no final dos anos 60, e o “Palma Fernandes” causou dores de cabeça, certamente a memória regressará vivíssima.

 

Leiam então o problema proposto por Alberto Pimenta e respectiva solução.

 

problema com vista a orientar os interesses infantis para as realidades quotidianas

sabendo que, no  momento  de  defecar,  a

ave   ia   a  voar   a  50  metros  de   altura

do  solo  e   à   velocidade   de  30 km.  po

r  hora,  acrescendo  que  o  vento,  no mo

mento   da  expulsão  das  fezes,  soprava

na  direcção  do  voo  da  ave  a  25 km.  p

or  hora, e  sabendo  ainda  que  as   feze

s, no momento da expulsão,  pesavam 12

gramas,  calcule   a   distância  a   que  as

fezes  caíram  em  relação   ao  ponto  da

terra   situado     na   vertical   do   ponto

em    que    a    ave    abriu     a     cloaca. I

 

problema com vista a orientar os interesses infantis para as realidades quotidianas

 

I

responder  que  as   fezes  se dissolv

eram no ar é  considerado  uma falta

de respeito para com o professor, po

rque se as fezes se dissolvessem no

ar não haveria problema a não ser o

ar    e s t a r    cheio    d e    f e z e s

 

in metamorfoses do vídeo, José Ribeiro, editor, 1986

 

A gaivota fotografei-a sobre o Gilão há alguns anos.

 

Nota sobre a formatação

No original os versos do poema vêm justificados à esquerda e à direita, o que a formatação do wordpress não me permitiu respeitas. As minhas desculpas.

 

A mão do amor… poema de Ibn Jafäya

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Iluminura 12 600

A memória de amores felizes consegue dar-nos poemas onde a magia do vivido transparece.

São pouco frequentes na poesia da tradição ocidental. Não assim entre os poetas do Al-Andaluz junto de quem o gosto de cantar a felicidade do amor carnal ia de par com o poetar sobre as outras transcendências da vida.

 

A mão do amor vestiu-nos,

durante a noite, com uma túnica de abraços

que só a mão da aurora

veio por fim rasgar.

 

Para um fim-de-semana feliz é bastante!

 

Poema de Ibn Jafäya (1058-1138) em tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I.

Com mais vagar virá noticia circunstanciada sobre o poeta: vida e obra.

 

Vinho e amor — um poema de Ibn Baqî em duas versões

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Miniatura persa 01A

Vinho e amor, combinação sublime que a poesia canta nos mais variados registos, surge em quase todas as tradições poéticas que o prazer não temem. Hoje, um poema do cancioneiro herdado do Al-Andaluz, transcrito em duas versões. O poeta, esse foi Ibn Baqî  (?-1150).

De Ibn Baqî apenas sei que nasceu em Toledo. Segundo as fontes consultadas terá sido um poeta errante desde a juventude, partindo cedo para Saragoça, passando a Córdova e mais tarde Sevilha. Terá atravessado o estreito de Gibraltar até Marrocos, de onde, na sua continuada busca e insatisfação (diz-se que era muito orgulhoso de si) regressou à Andaluzia natal, onde morreu em 1150.

 

O poema, todo ele excitação e força, tem nas versões de Jorge Sousa Braga, primeiro, e David Mourão-Ferreira, depois, resultados equivalentes na dissemelhança das opções de tradução.

 

Cena de Amor

 

Enquanto a noite arrastava a sua cauda de sombra

dei-lhe a beber vinho escuro e espesso como o pó de almíscar

E estreitei-a contra mim como um guerreiro estreita a espada

e as suas tranças pendiam dos meus ombros como talins

 

Quando por fim se rendeu ao sono afastei-a de mim

Afastei-a do meu peito

para que não adormecesse sobre uma almofada palpitante

 

Versão de Jorge Sousa Braga

 

*

Quando a noite arrastava a sua cauda de sombra,

dei-lhe a beber um vinho escuro e espesso

como o almíscar em pó

que se sorve pelas narinas.

 

Apertei-a com força, como o valente aperta a espada,

e as suas tranças eram correias de couro

que de meus ombros afinal pendessem…

 

Até que finalmente a afastei de mim

(de mim, a quem estava abraçada…)

quando ao peso do sono se rendeu.

 

Sim, afastei-a do peito que a amava

— para que não dormisse, em sobressalto,

sobre uma tão incómoda almofada

que só por causa dela palpitava.

 

Versão de David Mourão-Ferreira

Notícia bibliográfica

 

Tradução de Jorge Sousa Braga in O Vinho e as Rosas, Antologia de poemas sobre a embriaguês, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Lisboa Janeiro-Abril de 2003.

 

Traduções feitas a partir de fontes indirectas, e que serão em David Mourão-Ferreira a histórica versão castelhana de Emilio Garcia Gomez, não sendo a fonte indicada para a tradução de Jorge Sousa Braga,

 

Mahmud Sobh, El diván de la poesía árabe oriental y andalusí, Visor Libros, Madrid, 2012.