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vicio da poesia

Category Archives: Poesia Antiga

Dois epigramas anónimos espanhóis

03 Quarta-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Esta semana deu-me para o desenfado. Acontece. Tenham paciência os leitores.
Folheio a biblioteca, passo os olhos nas edições libertinas francesas do século XVIII, completamente desadequadas para a austeridade dos leitores do blog apreciadores de metafísicas, e prossigo.
Nas leituras de acaso encontro, numa edição setecentista de Flores varias del Parnaso, dois epigramas espanhóis, anónimos, que ofereço a seguir em tradução. Talvez façam sorrir algum sisudo leitor.

 

 

Epigrama

Um distinto professor
Perguntou a um aluno:
— Diga: que tempo é amar?
— Amar é tempo perdido!
***

Tradução Carlos Mendonça Lopes

 

 

Epigrama

O maciço D. José
Que o pesassem dispôs.
E para o efeito se pôs
Sobre a balança, de pé.

O pesador, que era André,
Disse depois de um minuto:
— Quinze arrobas*. — Net ou bruto?
— Bruto, tal qual você é.
***
* uma arroba são 15kg.

Tradução Carlos Mendonça Lopes

 

 

Abre o artigo a imagem de um desenho/colagem de Erwin Blumenfeld (1897-1969), D. Juan casa-se.

D.Juan, esse herói espanhol criado por Tirso de Molina no séc. XVII, e sucessivamente reinterpretado pela cultura europeia, numa conjectura possível, seria quem transmitira ao aluno do epigrama a sábia afirmação: Amar é tempo perdido!.
No entanto, a crer na colagem de abertura, D. Juan casa-se, e talvez, envergonhado de atraiçoar a sua gloriosa memória, tendo engordado como inevitavelmente acontece a qualquer casado, se disfarce do D.José, cujo peso se avalia no segundo epigrama (o homem estava preocupado com a linha…).

Eu tinha avisado a abrir…

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Oração à Alma ou A alma vai-se tendo — Do Google a Gregório de Naziano com passagem por Szymborska

25 Segunda-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Gregório de Naziano, Wislawa Szymborska

Ao que leio, em Silicon Valley, os protagonistas e seus continuadores que pensaram, pensam, e realizam a revolução tecnológica em que o mundo está mergulhado, interrogam-se. Ao fim-de-semana parece ser a ocasião para meditar sobre os próprios, o sentido das suas vidas mergulhadas na tecnologia, e os valores. Servem-se de técnicas ancestrais de isolamento e concentração experimentadas nas velhas civilizações orientais, yoga e outras, e assim buscam encontrar o sentido para viver cada dia. Seguem, pois, o concelho de Gregório de Naziano (329-389), em Oração à Alma:

 

É tempo, ó minha alma, é mais que tempo, se quiseres conhecer-te a ti própria,   o  teu ser e o teu destino.
Donde vens, e onde precisas repousar.
…

 

 

Pensar no Google, já o escrevi aqui antes, na sua presença em toda a parte, na sua resposta a tudo o que perguntamos, ainda que a resposta possa não ser o que procuramos, é um bom exercício para quem tenha dificuldade em apreender a omnipresença e omnisciência de Deus.

 

Estamos pois perante uma trilogia: Indivíduo, alma e Deus, que esmiuçarei um pouco mais, com ajuda pelo meio de Wislawa Szymborska (1923-2012).

 

Pensar-se o indivíduo, pensar a existência, pensar o mundo, é exercício sempre recomendável em qualquer tempo e lugar. Escolha, acaso, ou necessidade, saber sempre ao acordar porque se desperta naquela cama, é o caminho para poder decidir que fazer da vida. As escolhas fazêmo-las todos os dias. Mesmo quando deixamos andar o que nos incomoda ou perturba, estamos a escolher nada fazer. O livre-arbítrio de que somos dotados permite isso mesmo. E tem sempre consequências. Meditá-las é de bom conselho:

…
Se a vida é o que nós vivemos, ou se esperamos melhor.
…
Qual a minha ligação à vida, e qual é o seu final?
…

 

E eventualmente:

…
O que houve antes do mundo, o que representa para ti o mundo
Donde vem e qual é o seu destino.

 

 

Mas a questão da alma às vezes intromete-se, e é uma interrogação velha para a qual Wislawa Szymborska tem uma resposta iluminante:

 

A alma vai-se tendo.
Ninguém a tem constantemente
nem para sempre.

Dia após dia,
ano após ano,
pode passar-se sem ela.
…
Raramente nos assiste
nas tarefas maçadoras,
como deslocar móveis,
carregar umas malas
ou calcorrear uma estrada com as botas apertadas.
…
Podemos contar com ela,
quando de nada estamos certos,
porém curiosos de tudo.
…
Não diz de onde vem,
nem quando tornará a deixar-nos,
mas espera evidentemente por tais perguntas.
…
(*)

 

É este Podemos contar com ela, / quando de nada estamos certos, / porém curiosos de tudo. que nos desarma a confiança. Pois ela não vem para nos dar certezas. E perante a permanência das dúvidas, responde: Deus é a resposta.

 

 

O mundo da poesia é um mundo dos homens. Se ela se ocupa das suas alegrias e tragédias, sejam sociais ou pessoais, do mal-estar aos prazeres, também do seu transcendente cuida. E as interrogações expostas  antes estão plasmada no poema Oração à Alma, qualquer que seja o significado que a Deus cada um dê. É sempre do eu imaterial que falamos.

 

 

Oração à Alma

É tempo, ó minha alma, é mais que tempo, se quiseres conhecer-te
     a ti própria, o teu ser e o teu destino.
Donde vens, e onde precisas repousar.
Se a vida é o que nós vivemos, ou se esperamos melhor.
Põe-te ao trabalho, ó minha alma, é preciso purificar a tua vida.
Busca a Deus e os seus mistérios:
O que houve antes do mundo, o que representa para ti o mundo
Donde vem e qual é o seu destino.
Põe-te ao trabalho, ó minha alma, é preciso purificar a tua vida.
Porque aqui é o movimento e no além o repouso.
Porque nós somos levados pela corrente da vida.
Põe-te ao trabalho, ó minha alma, olha apenas a Deus.
O que foi o meu orgulho, hoje é a minha vergonha.
Qual a minha ligação à vida, e qual é o seu final?
Ilumina o meu espírito, dissipa todos os erros,
Põe-te ao trabalho, ó minha alma, e não sucumbas à dor.

 

Tradução de Armando Silva Carvalho
in A Oração dos Homens, uma antologia das tradições espirituais, Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

 

(*) Excertos do poema Um Pouco da Alma, tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves.
in Instante, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2006.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de Max Ernst (1891-1976), Sem título – dada.

 

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O Labirintodonte e para que serve a Poesia

21 Quinta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alberto Pimenta, Fausto Guedes Teixeira, José Gomes Ferreira, Karel Appel, Ovídio

Bebo, logo existo, foi o título escolhido por um filósofo que leio com agrado, Roger Scruton, para desenvolver uma reflexão sobre pensar o vinho. Matéria de prazer, pensar e existir, afinal aquilo que faz o homem e nem sempre fácil de praticar. Que o diga o meu interlocutor imaginário:
— Isto de existir tem que se lhe diga. Estudar, o emprego, a família, a saúde: adoro queijo, será que tenho colesterol alto? Engordei, não me serve a roupa, conseguirei ir pelo menos três vezes ao ginásio esta semana? Uff! E ainda vêm com poesia… Amor!, coisas do género:

 

Amar ou odiar: ou tudo ou nada! / O meio termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada / P’ra o nosso barro se sentir viver.
… (*)

 

Bah!… Esta gente terá noção do que é viver todos os dias? Ainda se falassem de sexo. De sexo uma pessoa gosta.
— Pois é, digo eu, a vida não é fácil!…
— E então a poesia para que serve?
— Distrai-nos, quem sabe? Às vezes ajuda a viver melhor, a sua companhia. Mas isto é opinião suspeita.
Deixo-lhe, céptico(a) leitor(a), uma pequena amostra:

 

Viver sempre também cansa.
…
Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
…
E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
… (**)

 

Que tal a sugestão do poeta: morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, / achando tudo mais novo? Já tinha pensado nisso? Lá se acabavam os Uff!

E agora, o que dizer do sexo? É do que mais a poesia fala, às escondidas, ou às claras. Depende de como correm os tempos:

 

…
Quando ela surgiu diante de meus olhos, o manto caído aos pés,
no corpo inteiro nem uma só mácula se me mostrou:
Que ombros! Que braços eu vi e toquei!
A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!
Como era liso, abaixo da linha do peito, o ventre!
Que grandiosidade e perfeição nas coxas! Que frescura nas pernas!
Que mais minúcias direi? Nada vi que não mereça elogio,
e foi a nudez do seu corpo que apertei contra o meu.
O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos.
Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!
(***)

 

Quem não o deseja?
Isto escreveu Ovídio há mais de 2000 anos, pois terá morrido por volta do ano 17 ou 18, ainda Cristo vivia. De então para cá é falar do mesmo sempre de diferentes formas. E esse é um dos mistérios da poesia: do velho fazer o novo.

Os poemas, às vezes, até libertam a imaginação, e despertam para o que nunca pensámos, fazendo-nos olhar o mundo de outra maneira. E a Poesia é cheia de mistérios, como sabe quem a lê. Quem não a lê não os conhece. Um dos mistérios que revelo hoje é a existência do Labirintodonte, para benefício de quem lê poesia uma vez por ano. Oxalá consiga o(a) leitor(a) decifrar o seu mistério.

 

Vamos então ao Labirintodonte. Sabemos o que não é:
1) não é uma ave;
2) não é um elefante;
3) não é um réptil;

 

Então o que é?
a) anda de pé como o chimpanzé;
b) é o pretendente de la vache qui rit;
c) é um bicho de seu natural pensativo.

 

O mistério está quase a nu, e assim não vale. Há que ler até ao fim para, talvez, desvendar o enigma. Afinal, o que é a vida sem mistérios? Apenas acrescento que o demiurgo, autor de tão extraordinária criatura na forma escrita, foi Alberto Pimenta (1937), e deu-nos a conhecer um ser que só se pensar sabe que está vivo, se não é apenas carne. Pronta para o matadouro(?).

 

 

O Labirintodonte

O Labirintodonte
não é uma ave
de emigração
como o porfirião
nem um
mamífero petulante
como o elefante
nem um
réptil repelente
como a serpente
o labirintodonte
anda de pé
como o
chimpanzé
e o sagui
e é o pretendente
de
la vache qui rit
é um bicho
de seu natural pensativo
pois precisa
de pensar
para saber
que está vivo.

in O Labirintodonte, edição do autor, 1970.

 

E por hoje terminamos com poesia. Para o ano haverá novo Dia. Felicidades.

Notas
(*) Fausto Guedes Teixeira, encontra-o aqui.
(**) José Gomes Ferreira, encontra-o aqui.
(***) O poema de Ovídio encontra-o aqui, e aqui, em várias versões.

Abre o artigo a imagem de um outro ser imaginário, O Homem da terra, desta vez o demiurgo foi Karel Appel (1921-2006). Deu-lhe existência em 1960, antes, portanto, de o Labirintodonte ser concebido, mas o labirinto da vida já surgia a seus pés. Só não sabemos se já precisava pensar para saber que estava vivo, e por isso, lia poesia.

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A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo

11 Sexta-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa sec XIX

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Francesco Hayez, Gonçalves Crespo, Heinrich Hein

Nem todos reagimos da mesma forma aos acontecimentos. A exteriorização dos sentimentos que nos assaltam é nuns matéria de reserva, noutros histriónica manifestação. No entanto, para algumas situações tipo há sempre reações que social e psicologicamente se esperam, permitindo aos outros medir a extensão do efeito em nós do que nos atinge, seja na alegria como no desgosto. Para um par apaixonado, forçado à separação, o visível desgosto, se não desespero, tristeza ou desolação, é o que se espera que mostrem.
É nessa expectativa, e no seu não acontecer, que o poema de Heinrich Heine (1797–1856) que escolhi, e a correspondente paráfrase por Gonçalves Crespo (1846-1883) se desenvolvem.
Na primeira quadra os poemas referem a expectativa comum numa separação de apaixonados indivíduos, na segunda quadra os poemas remetem para um tempo posterior à separação o aflorar da sua dor que a separação traz.

 

O poema de Heinrich Heine é o número XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823. A paráfrase de Gonçalves Crespo ao poema desenvolve e explícita o que o curto poema de Heine trazia implícito. No final acrescento uma minha transposição rimada do poema para português, tanto quanto possível fiel ao original, para permitir identificar os acréscimos introduzidos por Gonçalves Crespo na sua paráfrase.

 

 

Paráfrase de Gonçalves Crespo a um poema de Heinrich Heine

 

No momento do adeus sucede que os amantes
Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes.
Força é força partir; a mão prende-se à mão,
E uma infinda tristeza inunda o coração.

Para nós, meu amor, nessa hora de agonia
Não houve o padecer que as almas excrucia;
Foi grave o nosso adeus e frio, e só agora
É que a dor nos subjuga, e a angústia nos devora.

 

 

 

Poema original de Heinrich Heine

 

Wenn zwei voneinander scheiden,
So geben sie sich die Händ,
Und fangen an zu weinen,
Und seufzen ohne End.

Wir haben nicht geweinet,
Wir seufzten nicht weh und Ach!
Die Tränen und die Seufzer,
Die kamen hintennach.

 

Poema XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823.

 

 

Transposição rimada para português do poema de Heinrich Heine

Intermezzo lírico XLIX

Ao separar-se, as mãos
costumam dar-se os amantes
e desfazerem-se em prantos
e suspiros incessantes.

Mas entre nós não chorámos
nem ais nem queixas lançámos
só bem mais tarde chegaram
as lágrimas e o desgosto.

 

Transposição por Carlos Mendonça Lopes.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do italiano Francesco Hayez (1791-1882), O Beijo de 1859.

 

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Uma mulher espera por mim — um poema de Walt Whitman

29 Quinta-feira Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Alice Neel, Biblia, Walt Whitman

Entre adesão e controvérsia, a poesia de Walt Whitman (1819-1892) continua hoje, cento e cinquenta anos passados, a trazer ao leitor o confronto entre o sentir e a biologia, no que a abrir o poema Uma mulher espera por mim, este regista, a saber, o papel fundamental do sexo na vida de todos nós:

…
O sexo contém tudo, corpos, almas,
Intenções, provas, pureza, delicadeza, resultados, promulgações,
Canções, ordens, saúde, orgulho, mistério da maternidade, o leite seminal
Todas as esperanças, benefícios, concessões, todas as paixões, amores, belezas, delícias da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, os que para nós são como ídolos
Tudo isto está contido no sexo como partes e justificações dele mesmo.
…

 

O indivíduo de quem Walt Whitman fala na sua obra poética é um ser ideal, encarnação e portador de um modelo de humanidade futura. E se o homem é o objecto da sua reflexão, fazendo a defesa das relações homoeróticas como condição da masculinidade viril, no poema Uma mulher espera por mim, a mulher surge numa situação de igualdade desde que preencha condições de virilidade:

…
Agora afasto-me das mulheres insensíveis
Irei ficar com aquela que me espera, e com aquelas mulheres que são quentes e suficientes para mim,
Vejo que elas me compreendem e não me recusam,
Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto dessas mulheres.

Nelas nada é inferior a mim
Têm o rosto bronzeado pelos sóis brilhantes e pelos ventos que sopram
A sua carne tem a antiga elasticidade e força divinas
Sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, combater, recuar, avançar, resistir, defender-se
São irevogáveis quanto aos próprios direitos — são calmas, claras, em plena posse de si mesmas.
…

 

No tom proclamatório de toda a poesia de Walt Whitman, este Uma mulher espera por mim é o poema genesíaco que cria a humanidade nova:

…
Sobre vós, enxerto os enxertos do que há de mais querido em mim e na América,
As gotas que destilo sobre vós farão crescer raparigas impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,
As crianças que gero em vós hão-de gerar, por sua vez, crianças,
Dos meus dispêndios amorosos exigirei homens e mulheres perfeitos,
Esperarei que eles se interpenetrem noutros como eu e vós nos interpenetramos agora,
…

 

Numa América penetrada pela leitura da Bíblia, é interessante confrontar esta visão darwiniana do cruzamento dos mais fortes conduzindo a uma humanidade melhor, e verificar em que extensão o “acessório biológico” que é a mulher no poema de Walt Whitman se afasta da visão da mulher proclamada no Provérbio 31 do Livro dos Provérbios.
No final do artigo transcrevo uma sua versão literária da Vulgata, para confronto.

Folhas de Erva, livro que reúne a produção poética essencial do autor, foi inicialmente publicado em 1855, e teve sucessivas revisões e adições.
A secção Filhos de Adão onde o poema Uma mulher espera por mim se integra, foi acrescentada à obra na edição de 1856, juntamente com a secção Cálamo.

Este poema, Uma mulher espera por mim, foi pretexto para a 6.ªedição do livro, em 1881-82 ser acusada de obscenidade.

 

Uma mulher espera por mim

Uma mulher espera por mim, tem tudo, nada lhe falta,
Todavia, tudo faltaria se o sexo faltasse, ou se a seiva do homem certo faltasse,

O sexo contém tudo, corpos, almas,
Intenções, provas, pureza, delicadeza, resultados, promulgações,
Canções, ordens, saúde, orgulho, mistério da maternidade, o leite seminal
Todas as esperanças, benefícios, concessões, todas as paixões, amores, belezas, delícias da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, os que para nós são como ídolos
Tudo isto está contido no sexo como partes e justificações dele mesmo.

Sem vergonha o homem de quem gosto sabe e reconhece delícia do seu sexo
Sem vergonha a mulher de quem gosto sabe e reconhece a sua.

Agora afasto-me das mulheres insensíveis
Irei ficar com aquela que me espera, e com aquelas mulheres que são quentes e suficientes para mim,
Vejo que elas me compreendem e não me recusam,
Vejo que elas me merecem, serei o marido robusto dessas mulheres.

Nelas nada é inferior a mim
Têm o rosto bronzeado pelos sóis brilhantes e pelos ventos que sopram
A sua carne tem a antiga elasticidade e força divinas
Sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, combater, recuar, avançar, resistir,    defender-se
São irevogáveis quanto aos próprios direitos — são calmas, claras, em plena posse de si mesmas.

Atraio-vos para mim, vós, mulheres,
Não posso deixar-vos partir, quero fazer-vos bem,
Sou para vós, e vós sois para mim, não só por nós, mas pelos outros,
Envoltos em vós dormem os maiores heróis e bardos
Recusam despertar ao contacto de qualquer homem que não seja eu.

Sou eu, vós, mulheres, que abro o caminho
Sou severo, amargo, grande, inflexível, mas amo-vos,
Não vos faço sofrer mais do que necessitais
Derramo o fluido para criar filhos e filhas que sirvam estes Estados, forço com um     músculo lento e rude
Torno-me duro com eficácia, surdo a quaisquer súplicas,
Não me atrevo a retirar sem depositar o que durante longo tempo se acumulou dentro de mim.

Através de vós esgotam-se os meus reprimidos rios,
Em vós venho guardar milhares de anos futuros
Sobre vós, enxerto os enxertos do que há de mais querido em mim e na América,
As gotas que destilo sobre vós farão crescer raparigas impetuosas e atléticas, novos artistas, músicos e cantores,
As crianças que gero em vós hão-de gerar, por sua vez, crianças,
Dos meus dispêndios amorosos exigirei homens e mulheres perfeitos,
Esperarei que eles se interpenetrem noutros como eu e vós nos interpenetramos agora, Contarei com os frutos das suas exuberantes bátegas como conto com os frutos das minhas exuberantes bátegas agora derramadas.
Procurarei colheitas de amor a partir dos nascimentos, da vida, da morte, da imortalidade que com tanta ternura agora planto.

Tradução de Maria de Lourdes Guimarães
in Walt Whitman, Folhas de Erva, vol 1, Relógio d’Água, Lisboa, 2002.
O poema original encontra-se facilmente na internet.

 

Livro dos Provérbios
Provérbio 31
Versículos 10-31

Mulher exemplar não é fácil de encontrar;
ela vale muito mais que as jóias!
O seu marido confia inteiramente nela,
não lhe faltando com nada.
Ela só lhe dá satisfação e nunca desgostos,
todos os dias da sua vida.
Ela procura lã e linho
e trabalha de boa vontade com as suas mãos.
Tal como um navio mercante,
ela traz as suas provisões de muito longe.
Levanta-se antes de romper o dia,
prepara de comer para a família
e distribui as tarefas pelas suas criadas.
Examina um terreno e compra-o
e planta uma vinha com o produto do trabalho.
Põe-se ao trabalho com toda a energia;
os seus braços nunca estão parados.
Vigia bem os seus negócios;
durante a noite, a sua lâmpada mantém-se acesa.
As suas mãos trabalham com a roca de fiar
e os seus dedos, com o fuso.
Estende a mão segura aos infelizes
e é generosa para com os pobres.
Não receia a neve para os seus familiares,
porque todos eles trazem roupa suficiente.
Ela faz as suas próprias mantas
e os tecidos de linho e púrpura com que se veste.
O seu marido é conhecido e considerado na assembleia,
quando toma assento no conselho dos anciãos da terra.
Ela faz tecidos de linho fino para vender
e fornece cintos aos mercadores.
Reveste-se de força e dignidade
e sorri a pensar no futuro.
Fala sempre com sabedoria
e dá concelhos com bondade.
Vigia tudo o que se passa na sua casa
e não prova o pão da ociosidade.
Os seus filhos levantam-se para a felicitar
e o seu marido, para a elogiar:
“Muitas mulheres foram exemplares,
 mas tu és a melhor de todas.”
Encantos são enganos e beleza é ilusão,
mas uma mulher que respeita o SENHOR é digna de elogio.
Recompensem-na com o fruto das suas mãos
e louvem-na diante da assembleia pelo seu trabalho.

in a BÍBLIA para todos, edição literária, edição Temas e Debates e Circulo de Leitores, Lisboa, 2009.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura, Auto-retrato, de Alice Neel (1900-1984), realizada em 1980. A pintura integra a colecção da National Portrait Gallery de Washington.
Confrontar vigor, beleza física ideal, e humanidade no tempo, é o propósito de associar esta imagem ao artigo.
O papel da arte é também o de nos levar a sensibilidade ao encontro do pensamento.

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O amor em acto com sonetos de Curvo Semedo

02 Terça-feira Out 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa antiga

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Curvo Semedo, Jacob van Loo

Lília nos braços de Belmiro agora,
Quanto há doce em Amor, tanto disfruta.

 

Na poesia do século XVIII encontramos uma aproximação lúdica ao prazer e sua consumação, bem mais próxima do sentir dos nossos dias que na poesia produzida no século XIX. Nessa poesia romântica e pós-romântica do século XIX, no que ao desejo e paixão respeita, o estro poético masculino circula entre a idealização virginal da amada e as putas para as necessidades biológicas.
Na poesia neo-clássica da segunda metade do século XVIII, bebendo directamente a inspiração nos modelos da antiguidade greco-romana, chama-se ao desejo amor e por aí se segue dando conta da alegria da sua consumação, ou dos desgostos da sua perda.

Hoje são alguns sonetos de Curvo Semedo (1766-1838) que o ilustram:

 

Soneto p22
…
No meu pobre batel entro com ela:
Oh céus! desde que sulco o Tejo undoso,
Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

Soneto p23

Já matizando o céu de vivas cores
Vinha a brilhante aurora apavonada,
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.
…

 

 

São variadas as situações de encontros amorosos que estes sonetos e mais alguns, na edição das Composições Poéticas de Curvo Semedo cobrem, e dos quais escolhi cinco. Vejamos em jeito de preâmbulo a perspectiva que cada um aborda.

 

No soneto a p17 um ansioso Alzeu suspira pela presença da amada Lília para se aperceber que entretanto ela goza as delícias de amor nos braços de outro:

 

Soneto p17

Lília enquanto não foge a fresca tarde
Desce às margens frondosas deste pego,
Vem ver quem de saudades louco, e cego
Pela doçura de teus olhos arde.

Atende aos rogos dum Amor cobarde,
Que te chama do rio em que navego:
Vem, ou pôr termo ao pranto a que me entrego,
Ou do teu desamor fazer alarde.

Assim clamava Alzeu, que a Lília adora,
Eis como entanto, duma algosa gruta
Ouve dizer com voz clara, e sonora:

Não chames, Pescador, quem não te escuta:
Lília nos braços de Belmiro agora,
Quanto há doce em Amor, tanto disfruta.

 

 

No soneto que segue, a p22 da colecção, é um pescador poeta que, na faina, sonha com ter a seu lado a amada Laura, e eis que subitamente ela lhe surge, proporcionando-se, assim, um inesquecível encontro: Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

Soneto p22

Medonha corre a noite, a frouxa Lua
A furto mostra o rosto desmaiado,
Em mil volúveis serras levantado
Ruge raivoso o mar na praia nua;

Um só baixel nas ondas não flutua,
Os Nautas dormem, zune o vento irado;
Ah! doce Laura, Ah! doce objecto amado,
Quem vira agora a linda imagem tua!

Assim as vozes eu soltava ansioso,
Quando Laura, o meu bem , a minha estrela
Ao lado vejo, e vejo-me ditoso.

No meu pobre batel entro com ela:
Oh céus! desde que sulco o Tejo undoso,
Nunca vi, nem gozei noite mais bela.

 

 

Agora iremos ler no soneto a p23, o relato peculiar de um encontro derradeiro contado a partir da fruição dos momentos seguintes ao êxtase amoroso:
…
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.

 

Por se tratar de um encontro clandestino, e no receio de ver estes amores descobertos, o nosso poeta parte sem despertar a amada:
…
Sinto privar do sono a minha amada,
Temo vejam, que logro os seus favores.
…

 

E esta fuga põe fim, por muito tempo, ao encontro destas almas apaixonadas:
…
Vou-me, deixo o meu bem; desde esse instante
Cansados olhos, olhos sem ventura
Nunca mais vistes seu gentil semblante.

 

 

Soneto p23

Já matizando o céu de vivas cores
Vinha a brilhante aurora apavonada,
E inda sobre os meus braços fatigada
Laura dormia, Laura os meus amores.

De terna mágoa, de hórridos temores
Vejo minha alma a um tempo salteada,
Sinto privar do sono a minha amada,
Temo vejam, que logro os seus favores.

Enquanto pugna em mim susto, e ternura,
Vistos somos de espia vigilante,
Que o nosso afecto destruir procura.

Vou-me, deixo o meu bem; desde esse instante
Cansados olhos, olhos sem ventura
Nunca mais vistes seu gentil semblante.

 

 

Ainda outra perspectiva destes encontros clandestinos, agora no soneto a p32, encontramos o relato de uma paixão que em segredo se consumou:

Estes muros, que vês aos céus erguidos,
Tenho, alta noite, vezes mil trepado;
…
E ambos de amor num êxtase sagrado
Obtivemos prazeres nunca obtidos.
…

 

a qual termina para o nosso par com a entrega forçada da amada Jónia a outro:
… Monstros potentes
Dão Jónia ao meu rival, Jónia foi sua
Sem lhe valerem lágrimas ardentes.
…

 

Soneto p32

Estes muros, que vês aos céus erguidos,
Tenho, alta noite, vezes mil trepado;
Aqui Jónia viveu, tendo a seu lado
Velante escolta d’Argos pressentidos:

Pelas caladas trevas protegidos
Vencer pudémos nosso iníquo fado,
E ambos de amor num êxtase sagrado
Obtivemos prazeres nunca obtidos.

Mas voou tanto bem: Monstros potentes
Dão Jónia ao meu rival, Jónia foi sua
Sem lhe valerem lágrimas ardentes.

Meu peito em mares de aflição flutua:
Amor, se ímpio não és, como consentes,
Que uns braços, que eram meus, outro os possua?

 

 

Vai longo o artigo, termino com o soneto a p36 o qual dá conta de um namoro de mais de quatro anos em que milhões de vezes os amantes viveram horas furtivas de prazer gozado, iludindo a vigilância de quem tinha por função prevenir estes encontros (Expertos Argos temos iludido).
A paixão permanece, e o poeta conclui o soneto com o desejo que o casamento finalmente chegue, ou na linguagem codificada do poema … De alegres vermos que Himeneu sagrado / Nos doura os laços, que tramou Cupido.

 

Soneto p36

Quatro vezes na Eclíptica brilhante
Febo tem dado a fúlgida carreira,
Depois que, doce Anália, a vez primeira
Vi teu risonho, teu gentil semblante:

Desde tão grato, venturoso instante
Minha alma de teus olhos prisioneira,
Consagrando-te a fé mais verdadeira,
Colheu primicias de teu peito amante:

Milhões de vezes por mercê do Fado
Expertos Argos temos iludido
E horas furtivas de prazer gozado;

O céu nos chegue ao prazo apetecido
De alegres vermos que Himeneu sagrado
Nos doura os laços, que tramou Cupido.

 

Poemas transcritos de B. M. Curvo Semedo, Composições Poéticas, Lisboa, na Regia Oficina Tipográfica, 1803.
Modernizei a ortografia.
A numeração que antecede cada soneto identifica a página onde o mesmo se encontra nesta edição.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Jacob van Loo (1614-1670), Casal apaixonado de 1669, da colecção do Rijksmuseum de Amsterdão.

 

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Quem canta seu mal espanta — As voltas do amor em Quadras Populares

18 Terça-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Albert Neuhuys, J. Leite de Vasconcelos

Quem canta seu mal espanta,
Quem chora, mais o aumenta
Eu canto por espalhar
A paixão que me atormenta.

 

As quadras populares são um retrato fiel de um modo de estar na vida e plasmam alegrias e tristezas de um povo que talvez já não exista. Circularam pela memória e passaram de geração em geração, havendo delas hoje apenas as recolhas de etnógrafos que ainda a tempo as coligiram.

Hoje debruço-me sobre uma recolha de J. Leite de Vasconcelos no final do séc. XIX, divulgada com o nome: Poesia Amorosa do Povo Português.
Nas quadras escolhidas encontramos a rima abcb, e quase sempre a estrutura numa espécie de dois dísticos em que os primeiros dois versos apresentam o assunto e os últimos dois versos fazem uma conclusão frequentemente inesperada nas comparações que convocam, sem que a quadra deixe de ser uma unidade poética autónoma:

 

A amar e a escolher amante
Ensinou-me quem podia:
A amar foi a natureza,
A escolher, a simpatia.

 

 

Os assuntos girando à volta do sentimento amoroso, variam entre desejo e sedução:

 

Quando te eu vi, logo disse:
— Lindos olhos para amar!
Que linda boca p’ra beijos!
Oh quem t’os pudera dar!

 

Eu fui o que disse ao sol
Que não tornasse a nascer:
À vista desses teus olhos
Que vem o sol cá fazer?

 

 

esperança e receio de amar:

 

O amor, quando se encontra,
Causa penas, e dá gosto:
Sobresalta o coração,
Sobem as cores ao rosto.

 

Fui assentar-me entre as nuvens,
De uma estrela fiz encosto:
Abracei-me a uma delas.
Cuidando que era o teu rosto.

 

 

desgosto e queixas:

 

Suspiros e ais e dores,
Imaginações e cuidados:
São o manjar dos amantes,
Quando andam arrufados.

 

Torno de novo a queixar-me.
Meus ais não fazem efeito:
Podem abrandar as rochas,
Mas não abrandam teu peito.

 

Lágrimas são meu almoço
Janto suspiros e dores,
À tarde merendo ais,
À noite ausência d’amores.

 

 

e algum desprendimento emocional, o que é menos frequente:

 

Cuidavas, por me deixares,
Que eu de paixão morreria:
Foi-se um amor, ficou outro,
Vivo na mesma alegria.

 

 

Estes assuntos de amor vêm tratados com uma agradável ligeireza de tom, bem longe dos transportes angustiados de poetas eruditos:

 

Quem diz que o amar enfada,
De certo que nunca amou:
Eu amei e fui amado,
Nunca o amar me enfadou.

 

 

Eis mais algumas quadras onde os mesmos aspectos do sentimento amoroso bailam:

 

O coração e os olhos
São dois amantes leais:
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão sinais.

 

O cantar é dom dos anjos;
O bailar, dos namorados;
A alegria, dos solteiros;
A tristeza, dos casados.

 

Meu coração é relógio,
Meu peito dá badaladas:
Nos dias que eu te não vejo,
Trago-te as horas contadas.

 

O teu cabelo, menina,
Mete-te infinita graça:
Parece meadas de ouro
Adonde o sol se embaraça.

 

Amar e saber amar,
Qualquer amante faz isso:
Amar-te com lealdade.
Só eu nasci para isso.

 

Coitadinho de quem tem
Seus amores em segredo:
Passa por eles na rua,
Não lhe faia, que tem medo.

 

Ó meu amor lá de longe,
Perde um dia vem-me ver:
Quem não aparece, esquece,
Também eu posso esquecer.

 

Dizem que o amor é morte,
Oh quem me dera morrer!
Mais vale morrer d’amores
Do que sem eles viver.

 

O amor é grande mal.
Não amar é mal maior;
Mas amar sem ser amado
É dos males o pior.

 

Por te amar deixei a Deus,
Vê lá que gloria perdi!
Agora vejo-me só,
Sem Deus, sem gloria, sem ti!

 

Fechei a porta à desgraça,
Entrou-me pela janela:
Quem nasce com a má sorte
Não pode fugir a ela.

 

Que me quererá a desgraça,
Que atrás de mim corre tanto?
Hei-de parar e dizer-lhe
Que eu de a ver me não espanto.

 

Dizem que o chorar nos tira
As penas ao coração:
Tanto tenho eu chorado,
E as penas inda cá estão.

 

 

E com esta sábia conclusão me despeço:

 

Inda que o lume se apague,
Na cinza fica o calor:
Inda que o amor se ausente.
No coração fica a dor.

 

Poemas transcritos de Poesia Amorosa do Povo Português, Breve estudo e colecção por J. Leite de Vasconcelos, Lisboa, 1890.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Albert Neuhuys (1844-1914) de 1880.

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Longo é o curso da esperança, breve o da memória — um canto de Leopardi

12 Quarta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Fernand Leger, Giacomo Leopardi, William James

Cada vez mais estudos mostram que ao longo da vida adulta a sensação de felicidade, e de ser feliz, se desenvolve segundo uma curva em V. Decresce desde o início da idade adulta para atingir um mínimo por volta dos quarenta e tal anos, e recomeça a subir até ao fim da vida. Trata-se, evidentemente de medidas estatísticas. A cada indivíduo a vida oferece o seu caminho particular de felicidade, que não será necessariamente este. Provavelmente, e os estudos também o apontam, este andamento do sentimento de ser feliz  à medida que os sinais de envelhecimento se começam a fazer sentir, está ligado ao processo de substituição da ambição pela aceitação da vida como ela se apresenta. Cito de memória uma frase do filósofo William James (1842-1910) que o reflete:
“How pleasant is the day when we give up striving to be young”
(Quão agradável é o dia quando desistimos de nos esforçar para ser jovens).
Evidentemente, a troca da ambição pela aceitação não se prende unicamente com o desejo, ou ilusão, de ser jovem para lá da idade. Ele ocorre inevitavelmente quando o horizonte da esperança de vida começa a aproximar-se de nós e deixa de ser algo longínquo, se não mesmo intangível se se é jovem.
Dificilmente será possível exprimir a essência da juventude por contraponto ao envelhecimento por outra que não a formulação de Giacomo Leopardi (1798-1837) nos versos do poema À Lua:
… / No tempo da juventude, quando ainda longo / É o curso da esperança, breve o da memória, / …
ou no original:
… / Nel tempo giovanil, quando ancor lungo / La speme e breve ha la memoria il corso, / … Nestes versos ganha evidência um aspecto essencial da juventude: o pouco tempo vivido, fazendo curta a memória, embora marca indelével para a vida; e a esperança sobre o que o futuro, que se espera longo, propiciará.

O poema, com rara emoção, dá conta do conforto de recordar, quando a infelicidade nos acomete. E isto é independente da idade. Apenas conta a intensidade do que se viveu.
A memória, ajudando-nos, traz mais e mais felizes recordações à medida que a idade avança, e a vida se acumula. E se os desgostos provavelmente crescem, a vida vivida também permitiu que a felicidade, por mais efémera, nos batesse à porta e a possamos relembrar.

 

À Lua

Lembro-me, ó graciosa lua,
Que há um ano, sobre esta colina,
Cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:
E tu pendias então sobre a floresta
Como fazes agora, iluminando-a por completo.
Mas velado e trémulo do pranto
Que me assomava aos olhos, o teu rosto
Me parecia, que laboriosa
Era a minha vida: e ainda o é, nem muda de feição,
Ó minha amada lua. E todavia faz-me bem
Esta lembrança e o contar a idade
Da minha dor. Oh!, como é doce,
No tempo de juventude, quando ainda longo
É o curso da esperança, breve o da memória,
A lembrança das passadas coisas,
Embora triste e embora as fadigas durem!

Tradução de Albano Martins
in Giacomo Leopardi, Cantos, Apresentação, seleção, tradução e notas de Albano Martins,  Vega, Gabinete de Edições, Lisboa, s/d.

 

 

Alla Luna

O graziosa luna, io mi rammento            
Che, or volge l’anno, sovra questo colle
Io venia pien d’angoscia a rimirarti:
E tu pendevi allor su quella selva
Siccome or fai, che tutta la rischiari.            
Ma nebuloso e tremulo dal pianto
Che mi sorgea sul ciglio, alle mie luci
Il tuo volto apparia, che travagliosa
Era mia vita: ed è, né cangia stile,
O mia diletta luna. E pur mi giova            
La ricordanza, e il noverar l’etate
Del mio dolore. Oh come grato occorre
Nel tempo giovanil, quando ancor lungo
La speme e breve ha la memoria il corso,
Il rimembrar delle passate cose,            
Ancor che triste, e che l’affanno duri!
(1819)

Transcrito de Leopardi, Canti, con uno scritto di Giuseppe Ungaretti, Arnaldo Mondadori Editore S.p.A., Milão, 1987.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Fernand Léger (1881-1955), Paisagem animada, de 1924.

 

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Um frio de Inverno no calor do Verão — soneto 97 de Shakespeare e Pessoa pelo caminho

10 Segunda-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Fernando Pessoa, Quiringh van Brekelenkam, Shakespeare

O amor e os sonetos de Shakespeare (1564-1616) são um universo poético onde todas as possibilidades de expressão parecem residir. No soneto 97 temos uma engenhosa simbiose entre o calor erótico que a presença da amada pode trazer ou o frio que a sua ausência provoca, e os efeitos do ciclo das estações na natureza:

 

Foi como inverno a ausência que passei / de ti, …

 

Numa espécie de eco deste verso, encontro numa quadra de Fernando Pessoa (1888-1935) o dizer:

 

Quando passo o dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.

 

Por aqui se fica Pessoa, nesta ligeira quadra popular, embora o amorzinho dê pretexto a outras quadras neste ano de 1920, sobretudo as quadras de 24.02 e 26.02 que noutro artigo lerei.
Em Shakespeare, o relato é todo ele o de uma solidão amorosa, e os prazeres perdidos são por aqui lembrados:
…
Que frio e dias negros suportei!
Que nudez de Dezembro em tudo havia.
O tempo assim negado era de verão,
fecundo das colheitas que no outono
seus fardos de volúpia vernal dão,
…
Contudo essa abundância me surgia
como órfã prenhez só, …

 

E para que não restem dúvidas sobre o benefício da proximidade da amada, o poeta diz-nos a terminar:
…
que o verão seu prazer em ti se alia
e as aves quedam mudas se te vais.
…

 

 

Eis uma tradução portuguesa do soneto por Vasco Graça Moura, e o poema original:

 

 

Soneto XCVII

Foi como inverno a ausência que passei
de ti, que ao ir do ano és a alegria!
Que frio e dias negros suportei!
Que nudez de Dezembro em tudo havia.
O tempo assim negado era de verão,
fecundo das colheitas que no outono
seus fardos de volúpia vernal dão,
como ventres viúvos, morto o dono.
Contudo essa abundância me surgia
como órfã prenhez só, frutos sem pais
que o verão seu prazer em ti se alia
e as aves quedam mudas se te vais.
   Ou em seu canto triste as folhas tremem
   pálidas, porque perto o inverno temem.

Tradução de Vasco Graça Moura
in Os Sonetos de Shakespeare, versão integral, Bertrand Editora, 2007.

 

 

Sonnet XCVII

How like a winter hath my absence been
From thee, the pleasure of the fleeting year!
What freezings have I felt, what dark days seen!
What old December’s bareness everywhere!
And yet this time removed was summer’s time;
The teeming autumn, big with rich increase,
Bearing the wanton burden of the prime,
Like widow’d wombs after their lords’ decease:
Yet this abundant issue seemed to me
But hope of orphans, and unfathered fruit;
For summer and his pleasures wait on thee,
And, thou away, the very birds are mute:
   Or, if they sing, ‘tis with so dull a cheer,
   That leaves look pale, dreading the winter’s near.

Transcrito de The Oxford Shakespeare, Complete Sonnets and Poems, Oxford 2002.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do holandês Quiringh van Brekelenkam (1622-1666), Conversação sentimental.

 

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O vinho e a vida em poemas de Tao Yuanming

31 Sexta-feira Ago 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Chinesa

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Alberto Giacometti, Tao Yuanming

…
eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

 

Esta reflexão faz o poeta clássico chinês Tao Yuanming (365-427) num poema que à frente transcrevo na totalidade.
À incerteza da vida e seu futuro, — Preocupações!? amanhã podes não ter nenhumas — responde o poeta em alguns poemas com um convite a gozar o momento que passa, e aproveitar a despreocupação e alegria que o vinho pode proporcionar:

 

Passeio ao longo do rio Xie
…
pego no jarro de vinho
e sirvo os meus companheiros
de copos cheios, bebemos e brindamos à vez
sem sabermos se amanhã ainda estaremos aqui
um pouco já alegres deixamos falar o coração
esquecendo as agruras da vida
não hesites, goza hoje
Preocupações!? amanhã podes não ter nenhumas

 

A vertigem do avançar do tempo — A vida depressa caminha para o nada, — e a incógnita do além, são linhas de reflexão poética que conduzem à evidência de valorizar o momento que passa, plasmadas no poema que segue:

 

 

Chuva incessante e eu bebendo só

A vida depressa caminha para o nada,
sempre assim foi e será
e se neste nosso mundo viveram imortais
como o Pinheiro Vermelho e Wang Chiao,
onde estão eles agora?
um ancião ofereceu-me vinho, garantindo-me a imortalidade
sendo assim bebo um pouco, não tenho nada a perder
aos primeiros golos deixei de sentir
ao fim de uns quantos copos até do céu me esqueci
mantém-te mas é fiel ao momento que passa
e às suas próprias coisas
pássaros de asas mágicas, viajam através das nuvens,
em oito direcções preparam a viagem de volta
eu por mim consagro-me a viver em solidão
já faz quarenta anos que a isso me dedico
com devoção e de acordo com a sábia natureza
o meu corpo envelheceu há muito tempo
mas os meus sentimentos continuam intactos,
por isso nada tenho a lamentar.

 

Além deste e outros poemas isolados reflectindo sobre o valor de carpe diem, o poeta escreveu um pequeno cancioneiro de 19 poemas e uma introdução, bebendo vinho, com uma densa interrogação sobre os tempos e as gentes, onde o vinho tem importante papel na ignição dessas reflexões.

 

Poemas transcritos de Poemas de Tao Yuanming (365-427), edição Livros do Meio, Macau, 2013.
Versão portuguesa de Manuel Afonso Costa.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de Alberto Giacometti (1901-1966).

 

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