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Tag Archives: José Gomes Ferreira

O Labirintodonte e para que serve a Poesia

21 Quinta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alberto Pimenta, Fausto Guedes Teixeira, José Gomes Ferreira, Karel Appel, Ovídio

Bebo, logo existo, foi o título escolhido por um filósofo que leio com agrado, Roger Scruton, para desenvolver uma reflexão sobre pensar o vinho. Matéria de prazer, pensar e existir, afinal aquilo que faz o homem e nem sempre fácil de praticar. Que o diga o meu interlocutor imaginário:
— Isto de existir tem que se lhe diga. Estudar, o emprego, a família, a saúde: adoro queijo, será que tenho colesterol alto? Engordei, não me serve a roupa, conseguirei ir pelo menos três vezes ao ginásio esta semana? Uff! E ainda vêm com poesia… Amor!, coisas do género:

 

Amar ou odiar: ou tudo ou nada! / O meio termo é que não pode ser
A alma tem d’estar sobressaltada / P’ra o nosso barro se sentir viver.
… (*)

 

Bah!… Esta gente terá noção do que é viver todos os dias? Ainda se falassem de sexo. De sexo uma pessoa gosta.
— Pois é, digo eu, a vida não é fácil!…
— E então a poesia para que serve?
— Distrai-nos, quem sabe? Às vezes ajuda a viver melhor, a sua companhia. Mas isto é opinião suspeita.
Deixo-lhe, céptico(a) leitor(a), uma pequena amostra:

 

Viver sempre também cansa.
…
Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
…
E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?
… (**)

 

Que tal a sugestão do poeta: morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, / achando tudo mais novo? Já tinha pensado nisso? Lá se acabavam os Uff!

E agora, o que dizer do sexo? É do que mais a poesia fala, às escondidas, ou às claras. Depende de como correm os tempos:

 

…
Quando ela surgiu diante de meus olhos, o manto caído aos pés,
no corpo inteiro nem uma só mácula se me mostrou:
Que ombros! Que braços eu vi e toquei!
A beleza dos seios, como se pôs a jeito dos meus afagos!
Como era liso, abaixo da linha do peito, o ventre!
Que grandiosidade e perfeição nas coxas! Que frescura nas pernas!
Que mais minúcias direi? Nada vi que não mereça elogio,
e foi a nudez do seu corpo que apertei contra o meu.
O resto, quem o não sabe? Depois da fadiga, repousámos ambos.
Assim possam correr muitas vezes as minhas tardes!
(***)

 

Quem não o deseja?
Isto escreveu Ovídio há mais de 2000 anos, pois terá morrido por volta do ano 17 ou 18, ainda Cristo vivia. De então para cá é falar do mesmo sempre de diferentes formas. E esse é um dos mistérios da poesia: do velho fazer o novo.

Os poemas, às vezes, até libertam a imaginação, e despertam para o que nunca pensámos, fazendo-nos olhar o mundo de outra maneira. E a Poesia é cheia de mistérios, como sabe quem a lê. Quem não a lê não os conhece. Um dos mistérios que revelo hoje é a existência do Labirintodonte, para benefício de quem lê poesia uma vez por ano. Oxalá consiga o(a) leitor(a) decifrar o seu mistério.

 

Vamos então ao Labirintodonte. Sabemos o que não é:
1) não é uma ave;
2) não é um elefante;
3) não é um réptil;

 

Então o que é?
a) anda de pé como o chimpanzé;
b) é o pretendente de la vache qui rit;
c) é um bicho de seu natural pensativo.

 

O mistério está quase a nu, e assim não vale. Há que ler até ao fim para, talvez, desvendar o enigma. Afinal, o que é a vida sem mistérios? Apenas acrescento que o demiurgo, autor de tão extraordinária criatura na forma escrita, foi Alberto Pimenta (1937), e deu-nos a conhecer um ser que só se pensar sabe que está vivo, se não é apenas carne. Pronta para o matadouro(?).

 

 

O Labirintodonte

O Labirintodonte
não é uma ave
de emigração
como o porfirião
nem um
mamífero petulante
como o elefante
nem um
réptil repelente
como a serpente
o labirintodonte
anda de pé
como o
chimpanzé
e o sagui
e é o pretendente
de
la vache qui rit
é um bicho
de seu natural pensativo
pois precisa
de pensar
para saber
que está vivo.

in O Labirintodonte, edição do autor, 1970.

 

E por hoje terminamos com poesia. Para o ano haverá novo Dia. Felicidades.

Notas
(*) Fausto Guedes Teixeira, encontra-o aqui.
(**) José Gomes Ferreira, encontra-o aqui.
(***) O poema de Ovídio encontra-o aqui, e aqui, em várias versões.

Abre o artigo a imagem de um outro ser imaginário, O Homem da terra, desta vez o demiurgo foi Karel Appel (1921-2006). Deu-lhe existência em 1960, antes, portanto, de o Labirintodonte ser concebido, mas o labirinto da vida já surgia a seus pés. Só não sabemos se já precisava pensar para saber que estava vivo, e por isso, lia poesia.

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Três poemas de José Gomes Ferreira

19 Quarta-feira Nov 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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José Gomes Ferreira

XXXVII

Ah! Se eu imitasse a alegria das árvores e do vento

que riem sem motivo

 

Mas não. Ando triste.

 

Já não me contento em sentir-me vivo…

(E que outro destino existe?)

 

 

LIV

Pobre mendigo!

Queres uma mulher nua,

mas só tens a lua

para dormir contigo.

 

A lua – imagina –

que nem a um poeta

satisfaz!

– Sonâmbula mulher incompleta

com cabeça de menina

e corpo de gás…

 

 

LXIV

Sim, a morte vazia,

sem anjos na paisagem,

nem a dor duma estrela

no silêncio medonho.

 

Só a morte vazia

e esta coragem

de não querer enchê-la

de sonho.

 

 

Três poemas de José Gomes Ferreira (1900-1985) sem mais comentário. Apenas a magia da poesia.

Os poemas pertencem a Eléctrico, tal como publicados em Poesia III, Portugália, 1961

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Tu que pareces um perfume desenhado de mulher — José Gomes Ferreira

02 Domingo Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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José Gomes Ferreira, Paula Rego

A dança 1988 acrilico sobre papel

XXXVI

 

Vive em cada minuto

a tua eternidade

— sem luto

nem saudade.

 

Vive-a pleno e forte

num frenesim

de arremesso.

 

Para que a tua morte

seja sempre um fim

e nunca um começo.

 

Poema XXXVI de Sonâmbulo (1941-42-43).

 

 

Carnaval, tempo de música, de dança, de divertimento, quando os interditos ficam fora do agir, traz consigo o sabor da vida fácil e :

 

Tu que rodopias, leve,

no desdobrar de seda

que paira neste vento de música

que só as pétalas entendem…

 

levas-me ao regaço da memória quando o gozo era simples e sem sobressaltos de tristeza,

 

Tu que…

            (Ah! tu que me pesas nos braços

como se trouxesses um esqueleto de lágrimas

e uma bola de metal no coração

ferrugenta do meu remorso.)

 

Agora que esquartejei o poema de José Gomes Ferreira (1900-1985), convido-vos à sua leitura integral, sem os meandros que à memória me trouxe.

 

VIII

 

Toda a gente me inveja

porque ando contigo nos braços…

 

Tu que pareces um perfume desenhado de mulher

vestida de pólen

e dois olhos que são dois instrumentos modernos

a auxiliarem a melodia do jazz…

 

Tu que rodopias, leve,

no desdobrar de seda

que paira neste vento de música

que só as pétalas entendem…

 

Tu que…

            (Ah! tu que me pesas nos braços

como se trouxesses um esqueleto de lágrimas

e uma bola de metal no coração

ferrugenta do meu remorso.)

 

Poema VIII de Cabaré (1933),

 

Poemas transcritos de Poeta Militante, 1º volume, Moraes Editores, Lisboa, 1977.

A imagem de abertura traz uma pintura de Paula Rego – A dança.

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Viver sempre também cansa. diz-nos José Gomes Ferreira

17 Quinta-feira Jan 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poetas e Poemas

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José Gomes Ferreira, Pierre Soulages

Soulages_Pierre-Peinture-2005-IIToca a todos, uma vez por outra, a saturação de viver um certo quotidiano:

Tudo é igual, mecânico e exacto.

e invade-nos um desejo de parar tudo, por-lhe um fim:

Pois não era mais humano / morrer por um bocadinho, / de vez em quando, / e recomeçar depois, / achando tudo mais novo?

sem que isso tenha em si qualquer vontade de suicídio, que não temporário:

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses

Enfim, a insatisfação humana a governar-nos a vida.

É do que nos fala o poema de José Gomes Ferreira (1900-1985)

Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.”

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo…

O poema foi publicado pela primeira vez em 1931 na revista Presença, e é o poema com que o poeta abre a edição da sua poesia completa: Poeta Militante.

 

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