• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Category Archives: Convite à arte

Enigma — poema de Haroldo de Campos

09 Sexta-feira Mar 2018

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ 4 comentários

Etiquetas

Haroldo de Campos

Olhar e ver são gestos sensoriais que por si só desencadeiam a emoção, com uma pequena nuance: ver contém uma intermediação intelectual que apenas no olhar não existe. E nesta intermediação intelectual reside o mundo que nos faz seres sensíveis aos outros, ao outro, ao que nos rodeia.
No modo de olhar o outro que nos olha reside muitas vezes o enigma do mundo para lá dos detalhes em redor.

Os objectos criados sem propósito funcional, que pela sua especial capacidade de desencadear a emoção ao olhar e ver, chamamos obras de arte, tocam-nos tanto mais, desencadeando emoções de profundidade variável, quanto os instrumentos de saber e reflexão que possuímos. Para os poetas eles são, por vezes, simultaneamente, desafios de expressão emocional, e poucas vezes os poemas conseguem viver sem a companhia da obra de arte que os viu nascer. Dos raros, Ode a Uma Urna Grega de Jonh Keats é um deles, que outro dia aqui virá.

Hoje ocupo-me do poema Enigma de Haroldo de Campos (1929-2003), sobre o busto esculpido da rainha egípcia Nefertiti.
Depois de uma descrição visual da escultura na sua aparência, o poeta detém-se sobre a mutilação que o tempo trouxe à escultura e a representação enigmática da cegueira que ela acaba por mostrar:

…
o direito
o tempo milenar cegou-o:
 esbranca-se no gesso
fitando em alvo o nada
de dentro da moldura
oval-amêndoa
do rimel

seu enigma está aí —
nesse branco esgazeado
que turba há (quantos?)
séculos o semblante
irretocável de rainha

Ao vê-la naquela tarde, na solidão da cave de um museu recheado de beleza, foram outros ou pensamentos que me assaltaram: a mutilação do corpo, como a olhamos, como viveremos com ela se nos acontece? Procuramos a beleza do corpo, hoje tanto ou mais que noutras épocas. Se a mutilação nos calha passamos a ser menos belos? De que beleza falamos? E voltamos a Platão e à beleza que está na alma. Mas uma alma mutilada é ainda a mesma e idêntica antes e depois da mutilação? Porque é sempre do que sentimos nos outros e pelos outros com quem nos relacionamos que o enigma reside.

 

enigma

a rainha nefertiti
lábios de desenho perfeito
perfeita a linha do nariz
cútis bronzeada pelos raios
ultra-violeta de aton-ra o sol
jubilante do egito
uma elegante tiara trapezoide
azul-grafite
encimando-lhe a testa
sobre uma faixa de ouro
(e deixando se ainda listar
por uma outra banda áurea
com engastes de vermelho safira
e o símbolo — dourado sempre —
do poder real: o cetro
verticalmente inscrito
de alça dupla)

seu
pescoço delgado de modelo de dior
orna-o tripla fileira de colares de cor
as sobrancelhas e pálpebras
delineadas com meticuloso
traço rímel-negro
por hábil mão maquiladora
e nos olha
a rainha nos olha
(que a olhamos)
impassível:
quase-sorriso na carnação
túmida dos lábios
fixa-nos pupila
castanho-verde
do olho esquerdo

o direito
o tempo milenar cegou-o:
 esbranca-se no gesso
fitando em alvo o nada
de dentro da moldura
oval-amêndoa
do rimel

seu enigma está aí —
nesse branco esgazeado
que turba há (quantos?)
séculos o semblante
irretocável de rainha
Berlim 14 out. 1998

in haroldo de campos, entremilênios, Editora Perspectiva S. A., São Paulo, 2009.

Abre o artigo uma imagem da escultura do busto da rainha egípcia Nefertiti, que se guarda no Neues Museum de Berlim.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Em torno ao Livro de Rute

28 Segunda-feira Ago 2017

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Biblia, Else Lasker-Schüler, Gabriela Mistral, Livro de Rute, Poussin

Não sou conhecedor da Bíblia e muito menos um seu exegeta. Passeio por lá a espaços como por um livro de sabedoria. Paro muitas vezes no Livro de Rute, a história de uma mulher, ou antes uma história da mulher.

No Livro de Rute conta-se a história de Rute, estrangeira, viúva em terra do marido que morreu. Fez-se à vida, encontrou os homens, encontrou o homem a quem se entregou, e de quem recebeu o que procurava. É essa a história no seu essencial. Sendo embora uma história com valores, o bem e o mal surgem um pouco esbatidos, e quando o questionamento se coloca, são muitas as perguntas embaraçosas para a moral dos nossos dias.

Calo-me agora e deixo-vos com o que aconteceu, numa versão poética da sua parte final :

Agora não se diga mais entre nós “deixa-me”,
e nenhum dos nossos corações se afaste.
Eu irei para onde fores
e da tua morada faço também a minha.
Os teus irmãos e companheiros hoje recebo como meus,
o Deus da tua juventude, eu o amo profundamente.
E quando por fim a morte nos visitar
quero morrer na terra em que morreres
e ser sepultada perto de ti

O Senhor sabe: a vida me tratará com tristes rigores
se outra coisa que não a morte
esconda de meus olhos a graça do teu rosto
tão amado.
Tradução de José Tolentino de Almeida

O de Rute, é um destino de controvérsia há séculos, tal como contado neste livro de exemplos.

A peculiar forma como o casamento aqui é tratado, exigindo piruetas de interpretação para a fazer caber na indissolubilidade dos laços conjugais prosseguido pela igreja católica, não ajudou à sua leitura pacífica nas sociedades que a seguem, como a nossa.

Conta para a peculiaridade do Livro de Rute o exemplo de maternidade protagonizada pela sogra de Rute, Naomi, que a acolhe quando viúva, a aconselha sobre os homens, e mais tarde recebe como de sua família o filho de Rute e do novo marido, Boaz.

Temos em Rute o exemplo de uma Mulher que não se resigna à crueldade do destino, faz-se à vida e encontra de novo o homem com quem seguirá o resto do caminho.

Esta é uma história de integração social depois de ser uma história de integração familiar. A estrangeira, além do mais já “maculada” por um casamento, integra-se num clã onde é respeitada como igual. Como estamos afastados de praticas hindus em que a viúva era condenada a morrer com o marido na pira funerária.

É esta inclusão espelho de igual dignidade entre humanos. O caminho para integrar na nossa vida a dignidade humana tem sido longo, e o mais preocupante é não ser um valor adquirido pela humanidade, essa dignidade. A barbárie, a ganância, espreitam na esquina de qualquer distracção.

Esta simbólica mulher, Rute, tocou a imaginação poética de alguns e aqui vos deixo, primeiro um poema de Gabriela Mistral (1889-1957), no original em espanhol, onde se relata o encontro de Rute no caminho para a sua nova vida.

Ruth

I
Ruth moabita a espigar va a las eras,
aunque no tiene ni un campo mezquino.
Piensa que es Dios dueño de las praderas
y que ella espiga en un predio divino.

El sol caldeo su espalda acuchilla,
baña terrible su dorso inclinado;
arde de fiebre su leve mejilla,
y la fatiga le rinde el costado.

Booz se ha sentado en la parva abundosa.
El trigal es una onda infinita,
desde la sierra hasta donde él reposa,

que la abundancia ha cegado el camino…
Y en la onda de oro la Ruth moabita
viene, espigando, a encontrar su destino.

II
Booz miró a Ruth, y a los recolectores.
Dijo: “Dejad que recoja confiada”…
Y sonriendo los espigadores,
viendo del viejo la absorta Mirada…

Eran sus barbas dos sendas de flores,
su ojo dulzura, reposo el semblante;
su voz pasaba de alcor en alcores,
pero podía dormir a un infante…

Ruth lo miró de la planta a la frente,
y fue sus ojos saciados bajando,
como el que bebe en inmensa corriente…

Al regressar a la aldea, los mozos
que ella encontró la miraron temblando.
Pero en su sueño Booz fue su esposo…

III
Y aquella noche el patriarca en la era
viendo los astros que laten de anhelo,
recordó aquello que a Abraham prometiera
Jeová: más hijos que estrellas dio al cielo.

Y suspiró por su lecho baldío,
rezó llorando, e hizo sitio en la almohada
para la que, como baja el rocío,
hacia él vendría en la noche callada.

Ruth vio en los astros los ojos con llanto
de Booz llamándola, y estremecida,
dejó su lecho, y se fue por el campo…

Dormía el justo, hecho paz e belleza.
Ruth, más callada que espiga vencida,
puso en el pecho de Booz su cabeza.

Segue-se, para terminar, uma das baladas hebraicas de Else Lasker-Schüler (1869-1945) sobre Rute,3, em tradução de João Barrento.

Rute

E tu vens procurar-me às sebes
Oiço o soluçar dos teus passos
E os meus olhos são pesadas gotas escuras.

Na minha alma nascem as flores doces
Do teu olhar e ele enche-se
Quando os meus olhos se exilam para o sono.

Na minha terra,
Junto ao poço está um anjo:
Canta a canção do meu amor,
Canta a canção de Rute.

Estes poemas, ainda que muito belos, não esgotam de forma alguma os quatro capítulos do Livro de Rute, que integra o Antigo Testamento, e é, todo ele, um poema a justificar visita recorrente.

Para os leitores com curiosidade pela leitura do Livro de Rute, sugiro que procurem uma edição da Biblia, em tradução directa do hebraico, em detrimento da versão traduzida a partir da Vulgata Latina, e muito menos uma comentada versão por quaisquer padres da Igreja.

Nota Final

Este artigo foi inicialmente publicado aqui no blog em 23 de Outubro de 2012 e agora trazido outra vez ao encontro de novos leitores,

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Uma fábula para os nossos dias

20 Terça-feira Dez 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Esopo, Kandinsky, La Fontaine

sky-blue-1940-500pxO respeito mútuo* não parece ser uma conquista generalizada ao alcance das gerações que hoje vivem sobre a terra.

Viver sob um céu azul onde as mais surpreendentes e curiosas gentes permaneçam em harmonia, e de que a pintura de Kandinsky que abre o artigo é metáfora, continua a ser sonho longe do quotidiano que nos espreita.

Infelizmente, o mundo está mais perto da história da paz entre lobos e ovelhas que escolhi trazer aqui hoje, que da paz encantada que Kandinsky sonhou em 1940, quando o mundo se encontrava mergulhado no horror da segunda guerra mundial.

Talvez seja idiota sonhar os homens iguais, afinal a mensagem que o cristianismo trouxe ao mundo, e supor que a natureza do animal em nós, que, ou se submete ou domina, pode ser mudada pela educação e organização social, conduzindo à igualdade sonhada pelos iluministas e a sua Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Na verdade, o mundo dá voltas e continuamos sempre perto da fábula da paz entre ovelhas e lobos. A história, vinda de Esopo, foi recontada por La Fontaine e vertida ao sabor das épocas em português.

Primeiro lereis uma versão do século XVIII, a partir de Esopo, por Miguel do Couto Guerreiro, a seguir, uma versão a partir de La Fontaine, da segunda metade do século XX, por António Manuel Couto Viana.

 

 

 

Os lobos e as ovelhas

 

Os lobos e as ovelhas que tiveram
Uma guerra entre si, tréguas fizeram:
Os lobos em reféns lhes entregavam
Os filhos; as ovelhas os cães davam.
Os lobinhos, de noite, pela falta
Dos pais, uivavam todos em voz alta:
Acudiram-lhes eles acusando
As ovelhas de um ânimo execrando;
Pois contra o que é razão e o que é direito,
Algum mal a seus filhos tinham feito:
Faltavam lá os cães que as defendessem,
Deu isto ocasião que morressem.

 

Haja paz, cessem guerras tão choradas;
Mas fiquem sempre as armas e os soldados,
Que inimigos que são atraiçoados,
Tomaram ver potências desarmadas.
Não durmam, nem descansem confiadas
Em ajustes talvez mal ajustados:
Nem creiam na firmeza dos tratados,
Que os tratados às vezes são tratadas.
Só as armas os fazem valiosos;
E ter muitos soldados ali juntos
Respeitáveis a reis insidiosos;
Senão, para os quebrar há mil assuntos;
E mais tratados velhos, carunchosos,
Firmados na palavra dos defuntos.

 

Versão de Miguel do Couto Guerreiro a partir de Esopo

 

 

 

Os lobos e as ovelhas

 

Milhares de anos após a guerra declarada
Entre o lobo e a ovelha a paz é concertada
Com vantagem, talvez, prós dois rivais partidos,
Plos motivos que são de sobejo sabidos:
Pois, se o lobo retraça a tresmalhada rês,
Da pele dele, o pastor cobre a fria nudez.
Desiste a ovelha, assim, da liberta pastagem,
Mas, para o lobo, finda a ferina carnagem.
Jamais pode gozar quem teme plos seus bens!
Firmada, enfim, a paz, trocaram-se os reféns:
A ovelha entrega os cães e o lobo entrega as crias,
Revestindo-se a troca das formais garantias.
E o tempo foi passando e as crias crescendo,
Transformando-se em lobos de apetite tremendo
Que, ao verem os pastores dos seus redis ausentes,
Nos anhos anafados cravam os duros dentes
E engolem metade e arrastam o que resta
Pra os escuros covis da frondosa floresta.
É forçoso dizer como os cães descuidados,
Cheios de boa-fé, foram estrangulado
No repouso do sono: Foram-no de tal sorte
Que mal sentiram vir a violenta morte.
E nenhum escapou! Tiremos nós, então,
De tudo o que passou esta sábia lição:
Com os maus há que ter uma contínua guerra.
Decerto é boa a paz e alegra toda a terra,
Mas não serve pra nada
Se o inimigo falta à palavra empenhada.

 

Versão de António Manuel Couto Viana a partir de La Fontaine
in 60 Anos de Poesia, vol II, INCM, Lisboa, 2004.

 

 

 

*Nota Final
Deliberadamente não escrevi tolerância, a qual pressupõe também condescendência sobre os erros dos outros e que aceitamos, e não é essa a condição do respeito mútuo. O respeito mútuo é a equivalência das verdades em que cada um acredita.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O sucesso editorial do livro de Hitler, poemas de Nelly Sachs e Hans Magnus Enzensberger com passagem pelo filme The book thief

24 Sexta-feira Jun 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Felix Nussbaum, Hans Magnus Enzensberger, Nelly Sachs

Felix Nussbaum 4 - O segredo 1939 500pxÉ provável que a coragem dos ingleses em enfrentar o risco, uma vez mais salve a Europa. Não tanto do Holocausto de que falam os poemas de hoje, mas de um colapso induzido pela embriaguez da burocracia europeia empapado no seu próprio poder.

Não sou eurocéptico. Conheci a proibição de sair de Portugal sem autorização militar especial. Experimentei a restrição de apenas poder viajar para o estrangeiro com pouquíssimo dinheiro. Vivi algum tempo, até sufocar, a “felicidade” do sistema soviético na Polónia; por isso, sinto-me o mais feliz entre os homens ao viver a condição de cidadania que Portugal na União Europeia permite. Isto não significa que aprecie a possibilidade de alguém escolher por mim a cor do papel higiénico, forçando a caricatura do caminho para onde a burocracia de Bruxelas aponta, a qual está a conduzir a um processo em vias de extinção o projecto europeu saído das cinzas da guerra contra a Alemanha Nazi.

Assistimos por estes dias ao espectáculo surpreendente de uma multidão esgotar edições do livro de Hitler. Se de alguma coisa é sintoma o sucesso editorial do livro de Hitler, para além de uma legítima curiosidade intelectual, será seguramente preocupante para todos.

Felix Nussbaum 1 - Auto-retrato no atelier 1938 500pxPor um daqueles cruzamentos de acaso, vi uma destas noites o filme The book thief, A rapariga que roubava livros. Como é sabido, no filme a ligação aos livros da menina que não sabia ler começa com um manual de coveiro recolhido por ela junto à campa do irmão, e por onde aprende as primeiras letras. Esta ligação simbólica entre a morte e o renascer pelo livro irão atravessar o filme.

A história desenvolve-se na Alemanha de Hitler, e a etapa seguinte com livros leva-nos à fogueira onde são queimados, e ardem, os livros considerados perigosos pelos sequazes de Hitler, no que foi um momento histórico marcante da Alemanha hitleriana. Abandonado o local pela multidão entre obrigada e entusiasta, a menina aproxima-se da fogueira e retira um livro ainda fumegante, que esconde. Era O Homem Invisível do escritor inglês H. G. Wells (1866-1946), o qual atravessará a história como metáfora, sendo instrumento de esperança e da liberdade de espírito que a doutrina hitleriana pretendeu matar.

Lembrá-lo uma vez e outra nos testemunhos de memória e no estudo da história é tarefa de humanidade para que o horror não se repita.

O Holocausto colocou à literatura alemã o desafio da linguagem: como expressar o horror e o seu tempo. Paulatinamente os escritores foram percorrendo o caminho expressivo que permite na distância sentir o inominável materializado. Escolho dois poemas que dessa expressão são exemplo. Primeiro um poema que Hans Magnus Enzensberger (1929) dedica a Nelly Sachs (1891-1970), Os Desaparecidos, depois, um poema desta, O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar, ambos em tradução de Paulo Quintela.

Felix Nussbaum 3 - Auto-retrato com passaporte judeu 1943 500pxAcompanham os poemas imagens de pinturas de Felix Nussbaum (1904-1944), pintor de génio com uma biografia exemplar: nasceu judeu e foi parar a Auschwitz em 2 de Agosto de 1944, depois de ter vivido fugitivo e escondido durante o período nazi.

Felix Nussbaum 5 - Casal de luto 1943 450pxOs Desaparecidos

 

a terra não os engoliu, foi o ar?

como a areia eles são numerosos, mas não em areia

se tornaram, sim em nada, em bandos

estão esquecidos. aos montes e de mãos dadas,

como os minutos, mais do que nós,

mas sem lembrança. não inventariados,

impossíveis de ler no pó, sim desaparecidos

estão os seus nomes, colheres e solas.

 

não nos dão pena. ninguém se pode

lembrar deles: nasceram,

fugiram, morreram? ninguém os achou

menos. sem falha

é o mundo, mas unido

por aquilo que ele não abriga,

pelos desaparecidos. estão por toda a parte.

 

sem os ausentes nada existiria.

sem os fugitivos nada era firme.

sem os imensuráveis nada mensurável.

sem os esquecidos nada seguro.

 

os desaparecidos são justos.

assim nos desvanecemos também.

Felix Nussbaum 2 - Tocador de orgão da Barbária 1942-43 500px

O Teu Corpo Em Fumo Pelo Ar

 

E quando esta minha pele estiver desfeita

eu verei Deus sem a minha carne.

Job

 

OH AS CHAMINÉS

Sobre as moradas da morte engenhosamente inventadas

Quando o corpo de Israel desfeito em fumo partiu

Pelo ar —

Como limpa-chaminés uma estrela o recebeu

Que se fez negra

Ou era um raio de sol?

 

Oh as chaminés!

Vias da liberdade para o pó de Jeremias e de Job —

Quem vos inventou e compôs pedra sobre pedra

De fumo o caminho aos fugitivos?

 

Oh as moradas da morte,

De arranjo convidativo

Para o hospedeiro, outrora hóspede —

Ó dedos,

Pondo a soleira de entrada

Como uma faca entre vida e morte —

 

Ó vós chaminés,

Ó vós dedos,

E o corpo de Israel em fumo pelo ar!

in Poemas de Nelly Sachs, antologia, versão portuguesa e introdução de Paulo Quintela, Portugália Editora, Lisboa, 1967.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Iconografia da Paixão de Cristo e um poema de Ibn Gabirol

25 Sexta-feira Mar 2016

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Derick BAEGERT, Fra Angelico, Gerard David, GIOVANNI di PAOLO, Hans PLEYDENWURFF, Ibn Gabirol, Pietro da Rimini, Quentin MASSYS

Pietro da Rimini (1300-1350) - Descida da cruz 1325-1330 500pxPietro da Rimini (1300-1350) – Descida da cruz 1325-1330

 

Nesta semana de Páscoa, quando a cristandade celebra a morte e ressurreição de Cristo, reúno imagens de alguns mestres antigos da pintura ocidental evocativas da Paixão de Cristo, e transcrevo um poema de Salomão Ibn Gabirol (1021-1058), judeu de Málaga ao tempo do Al-Andaluz, dando conta de um conceito de Deus.

1 Quentin MASSYS - Ecce Homo 1515 detalhe 600pxQuentin MASSYS (1465-1530) – Ecce Homo 1515

2 BAEGERT, Derick - Cristo carregando a cruz detalhe 600pxDerick BAEGERT (1440-1515) – Cristo carregando a cruz 1490

3 Gerard DAVID - Cristo pregado na cruz - 1480 600pxGerard DAVID (1460-1523) – Cristo a ser pregado na cruz 1480

4 Mestre húngaro desconhecido - Cristo cruxificado 1476 700pxMestre húngaro desconhecido – Cristo crucificado 1476

5 PLEYDENWURFF, Hans 1420-1472 Descida da cruz 1465detalhe 600pxHans PLEYDENWURFF (1420-1472) – Descida da cruz 1465

6 GIOVANNI DI PAOLO - Lamentação sobre a morte de Cristo 1430-35 detalhe 600pxGIOVANNI di PAOLO (1399-1482) – Lamentação sobre a morte de Cristo 1430-35

7 Fra Angelico Enterro de Cristo 1438-40 detalhe 600pxFra ANGELICO (1400-1455) – Enterro de Cristo 1438-40

 

 

 

São tempos difíceis os que vivemos hoje, no que à tolerância religiosa respeita. Valham-nos os sucessivos gestos simbólicos do Papa Francisco na construção de um clima de respeito e convivência com a diversidade da fé que em cada um habita.

 

Poema de Salomão Ibn Gabirol

 

Tu és o Vivente

sem que momento algum te determine

sem um tempo

sem um sopro ou uma alma

pois Tu és a alma da alma

Tua vida

não se compara à de um homem

tão semelhante ao nada

 

Quem souber teu segredo

gozará eternas delícias

 

 

Tradução de José Tolentino Mendonça

Transcrito de Rosa do Mundo, 2001 poemas para o futuro, Assírio e Alvim, Lisboa 2001.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Televisão e mais poemas de John Updike

12 Sábado Dez 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

John Updike, Lucien Freud

ib-and-her-husband-1992Num último livro com poemas, John Updike (1932-2009) vai-nos dando conta do mundo em redor, sem retórica ou moralidades escusadas. Apenas o olhar de quem por uma vida observou o mundo e sobre ele escreveu com mediania, riscada às vezes por traços geniais, o que afinal devolve os homens à sua verdadeira dimensão.

Com benevolência e alguma desilusão fui lendo parte do que John Updike escreveu desde um juvenil encontro com Rabitt Run, Corre Coelho, numa fascinante tradução de Fiama Hasse Pais Brandão, nos idos anos 60 (edição Europa-America). Hoje encontro um escorreito livro de poemas, o último escrito, numa competente tradução da poetisa Ana Luisa Amaral, e do qual transcrevo alguns poemas.

São poemas sobre um sentir que nos é próximo, como próximas são as realidades de que falam. Da medicina à arte, passando pela televisão, se compõe a escolha que transcrevo. São assuntos de difícil tratamento poetico: transmitir a ambivalência de sentimentos que nos provocam ao incomodar-nos o seu convívio ou necessidade; e o poeta vai para lá do relato-pretexto, dando-nos poemas com uma dimensão que nos toca intimamente.

naked-man-back-viewColonoscopia

 

E falam eles de intimidade! Preferia que o não fizessem.

No dia anterior, uma luta com a náusea

(BEBE-ME: um litro de líquido doce e enjoativo)

e a diarreia, para nos apresentarmos imaculados

como noiva ao noivo e aos seus instrumentos,

à sua inspecção, uma minúscula câmara de TV,

as palavras delicodoces. Está bronzeado, ele,

voltou de umas férias merecidas

das já familiares partes baixas.

 

Em traje apropriado, reclinados,

vemos, rolando os olhos, o ecrã por onde

o intestino longo, sedado, serpenteia,

os segmentos marcados por pontos de construção

anelar, limpos, como em túnel pré-fabricado

lançado pelo genro do governador.

Um súbito jorro de líquido cintilante brilha

na luz introduzida, e curvas como ganchos de cabelo

surgem mais à frente, para logo fugirem,

impalpáveis; flutuamos, caímos, rodopiamos

nesses corredores suaves e dóceis, explorados

por tudo o que comemos.

Depois, tudo escurece,

tal como Deus o queria, quando selou no abdômen

de Adão o milagre da vida, viscoso, retorcido, de mau

cheiro. A voz do noivo, abaixo do nível de visão,

como tesouro enterrado, anuncia:

“Perfeito. Nem um pólipo. Vemo-nos daqui a

cinco anos.” Cinco anos? Já a feira pode ter sido levantada.

benefits-supervisor-sleeping-also-known-as-big-sue

Lucien Freud

 

(Uma exposição em Veneza, Setembro de 2005)

 

Sim, o corpo é uma coisa hedionda, sobretudo

os pés e os genitais, e não menos a face humana.

Veias azuis desenham serpentes nas costas

das mãos e desfiguram a solidez de mármore

brilhante que têm as coxas. Vale a pena

ver esse peso coalhado depois de séculos

(de Pigmalião a Canova) do nu como a forma

exterior do espírito, uma chama branca: a Psyche.

 

De que forma maravilhosa a elegante Diana

de Saint-Gaudens se equilibra num só pé, no ar,

distante como a lua, e para sempre! Mas não,

a carne arrasta-nos para baixo, a sua terra salpicada,

terreno ávido para o pintor, terra inocentemente feia,

adormecida, pobre nudez, anjo afundado, saco de fleuma.

grand-interior-notting-hill

Televisão

 

Ligo-a como se fosse uma torneira,

nem frio nem quente, só tépido infotenimento,

e dela jorram as provas cintilantes

de conflitos, misérias, concupiscência,

desatrelados pouco a pouco, em remissões

de publicidade ansiosa que antecipa

para nosso bem a melhor vida dependente

de uma compra, de alguma aquisição indispensável.

 

Um carro lustroso dá curvas na chuva murmurante,

uma praia de alvura óssea acolhe peles bronzeadas,

um toalhete acalma as rugas de uma bela enrugada,

um unguento consola a dor sedentária,

dentes falsos resplandecem, a cerveja provoca alegria,

e cabelos pintados arremessam a cor pelo ecrã:

erupções de luz bebidas pelo meu cérebro,

que depressa se cansa, até ficar sequioso outra vez.

 

in John Updike, Ponto Último e outros poemas, tradução de Ana Luisa Amaral, Civilização Editora, Porto, 2009.

Acompanham o artigo imagens de pinturas de Lucien Freud (1922-2011).

self-portrait-reflection-2004.jpg!Large

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Prazeres — de Brecht a Lucrécio

17 Sábado Out 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Bertolt Brecht, Lucrécio, Picasso

Guernica 600px

PRAZERES

O primeiro olhar da janela de manhã

O velho livro de novo encontrado

Rostos animados

Neve, o mudar das estações

O jornal

O cão

A dialética

Tomar duche, nadar

Velha música

Sapatos cómodos

Compreender

Música nova

Escrever, plantar

Viajar, cantar

Ser amável.

 

Nem todos partilharemos da hierarquia, nem da enunciação dos prazeres descritos neste poema de Bertolt Brecht (1898-1956), datado de 1954.

Poema da meia-idade, e para o poeta, perto do fim da vida; vida que viu as duas guerras mundiais, conheceu o sucesso entre guerras na Alemanha, experimentou exílio com a chegada do nazismo, primeiro europeu e depois nos EUA, e terminou os dias num regresso à então Alemanha comunista. Dir-se-á: de tanta experiência, que mínimos prazeres para lembrar…

Na verdade, a vida vivida, para além da intensidade das experiências profissionais e afectivas, conduz-nos a certa altura à evidência do que todos os dias é realmente importante.

A pressão do consumo, a posse material de coisas, o quadro social quotidiano com os seus valores onde a presença do dinheiro pesa, tudo faz perder de vista o que na verdade é simples: vivemos bem com muito, mas precisamos de muito pouco para viver bem.

Termino com alguns versos do epicurista Lucrécio (sec. I a. C.), extraídos desse poema maior, Da Natureza das Coisas [De rerum natura], a que outro dia voltarei.

 

Ó infelizes mentes dos homens, ó corações cegos!

Em que tenebrosa existência e em quantos perigos se passa

esta breve vida! Então não vêem que a natureza

nada reclama para si, com impetuosos gritos,

senão que a dor fique afastada do corpo e que se usufrua

de uma mente livre de cuidados e do medo, com um sentimento de prazer?

Portanto, vemos que poucas coisas são absolutamente necessárias

à natureza do corpo: todas as que eliminam a dor

e também as que possam proporcionar muitos deleites.

 

Livro II, vv 14-22

Notícia bibliográfica

Bertolt Brecht, Poemas, versão portuguesa de Paulo Quintela, Asa Editores, Porto, 2007.

Lucrécio, Da Natureza das Coisas, tradução de Luís Manuel Gaspar Cerqueira, Relogio D’Água, Lisboa, 2015.

Nota

A imagem de abertura reproduz a pintura Guernica (1937), de Picasso (1871-1973).

Tendo como pretexto directo bombardeamentos alemães à aldeia Basca de Guernica durante a Guerra Civil Espanhola, a pintura é para o século XX o ícone contra a barbárie o e terror da guerra.

É preciso lembrá-lo sempre.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Retratos extraordinários — uma jovem pintada por Ghirlandaio

02 Quarta-feira Set 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

≈ 2 comentários

Etiquetas

GHIRLANDAIO

Domenico GHIRLANDAIO - retrato de uma jovem - colecção Gulbenkian 600pxNos nossos dias, quando as sociedades se encontram iconicamente impregnadas do erótico, retratos como este são imagens pouco prezadas.

Se se pretender ilustrar a modéstia, o recato, a perfeição de alma até, numa jovem mulher, este retrato da jovem Sassetti, ao que se supõe, pintado por Ghirlandaio (1449-1494), é uma demonstração eloquente: na limpidez do olhar, na atitude de corpo e elegante discrição no vestir.

Retrato onde não existe malícia, nem sombra de sedução, ainda que não se possa dizer que o olhar é de uma mulher ingénua, vemos apenas no conjunto a força tranquila do conhecimento de si, no rosto a firmeza de carácter, e, sobretudo, num olhar limpo, franqueza com que se deve olhar o mundo.

A pintura pertence à colecção Gulbenkian e pode ver-se no respectivo museu em Lisboa.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Entreacto – poema Ángel González

24 Sexta-feira Jul 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Angél Gonzalez, Piero di Cosimo

Piero di Cosimo - Perseu ataca o monstro - detalhe de Andrómeda libertada por PerseuUm destes dias veio ao meu encontro o poema de Ángel González (1925-2008) que hoje transcrevo, Entreacto, em tradução de Egito Gonçalves (1920-2001).

A campanha eleitoral anima-nos o dia-a-dia televisivo. Nas pausas que o trabalho permite tenho olhado a televisão à hora das notícias.  Perante a conversa e os personagens que fazendo pela vida tentam convencer-nos do que é bom para cada um de nós com:

 

…

Aqueles

ineficazes e tortuosos diálogos

com referências a ontem, a um tempo

ido,

completam, no entanto,

o panorama esfarrapado que ante nós

se depara, e talvez

então expliquem muitas coisas, sejam

a chave que no final justifique

tudo.

…

 

(fim de citação), invade-me uma melancolia inaudita, afinal resultado dos tantos anos em que os personagens repetem a peça.

 

Como luva que calça a atmosfera política do Portugal de hoje, é do que talvez alguns também sintam que o poema fala.

Após o fragmento anterior, eis o poema na totalidade da tradução e no original.

 

Entreacto

 

Não acaba aqui a história.

Isto é só

uma pequena pausa para que descansemos.

A tensão é tão grande,

a emoção que a trama desprende é tão

intensa,

que todos,

bailarinos e actores, acrobatas

e o distinto público,

agradecemos

a trégua convencional do entreacto,

e comprovamos

alegremente que tudo era mentira,

enquanto os músicos afinam os violinos.

Até agora, vimos

várias cenas rápidas que preludiavam a morte,

conhecemos o rosto de certos personagens

e sabemos

algo que inclusivamente muitos deles ignoram:

o móbil

da traição e o nome

de quem a praticou.

Não ocorreu ainda nada de definitivo

mas

o desespero e os intérpretes

tentam evitar o rigor do destino

pondo demasiado calor nos seus exuberantes

ademanes, demasiado colorido nos seus sorrisos

falsos,

com que — é evidente — dissimulam

a sua covardia, o terror

que dirige

os seus movimentos no cenário.

Aqueles

ineficazes e tortuosos diálogos

com referências a ontem, a um tempo

ido,

completam, no entanto,

o panorama esfarrapado que ante nós

se depara, e talvez

então expliquem muitas coisas, sejam

a chave que no final justifique

tudo.

Não esqueçamos também

as palavras de amor junto ao tanque

o gesto demudado, a violência

com que alguém disse:

                                     “não”

                                               olhando o céu,

e a surpresa que produz

o torvo jardineiro quando anuncia:

“chove, senhores,

chove

ainda”.

Mas talvez seja cedo para conjecturas:

deixemos

que a tramóia se prepare,

que os que hão-de morrer recuperem o alento,

e pensemos,

quando o drama prosseguir e a dor

fingida

se torne verdadeira em nossos corações,

que nada se pode fazer, que está próximo

o fim que tememos de antemão,

que a aventura acabará, sem dúvida,

como deve acabar, como está escrito,

como é inevitável que suceda.

 

 

Original em castelhano
Entreacto

 

No acaba aquí la historia.

Esto es solo

una pequeña pausa para que descansemos.

La tensión es tan grande,

la tensión que desprende la trama es tan

intensa,

que todos,

bailarines y actores, acróbatas

y distinguido público,

agradecemos

la convencional tregua del entreacto,

y comprobamos

alegremente que todo era mentira,

mientras los músicos afinan sus violines.

Hasta ahora hemos visto

várias escenas rápidas que preludiaban muerte,

conocemos el rostro de ciertos personajes

y sabemos

algo que incluso muchos de ellos ignoran:

el móvil

de la traición y el nombre

de quién la hizo.

Nada definitivo ocurrió todavía

pero

la desesperación está nítidamente

dibujada, y los intérpretes

intentan evitar el rigor del destino

poniendo

demasiado calor en sus exuberantes

ademanes, demasiado carmín en sus sonrisas

falsas,

con lo que -es vidente- disimulan

su cobardía, el terror

que dirige

sus movimientos en el escenario.

Aquellos

ineficaces y tortuosos diálogos

refiriéndose a ayer, a un tiempo

ido,

completan. sin embargo,

el panorama roto que tenemos

ante nosotros, y acaso

expliquen luego muchas cosas, sean

la clave que al final lo justifique

todo.

No olvidemos tampoco

las palabras de amor junto al estanque,

el gesto demudado, la violencia

con que alguien dijo:

«no»,

mirando al cielo,

y la sorpresa que produce

el torvo jardinero cuando anuncia:

«Llueve, señores,

llueve

todavía.»

Pero tal vez sea pronto para hacer conjeturas:

dejemos

que la tramoya se prepare,

que los que han de morir recuperen su aliento,

y pensemos,

cuando el drama prosiga y el dolor

fingido

se vuelva verdadero en nuestros corazones,

que nada puede hacerse, que está próximo

el final que tenemos de antemano,

que la aventura acabará, sin duda,

como debe acabar, como está escrito,

como es inevitable que suceda.

 

Notas bibliográfica e iconográfica

 

O poema foi transcrito de Poesia Espanhola do Após-Guerra, Portugália, Lisboa, s/data.

O poema original foi publicado no segundo livro de poesia de Ángel González, Sin Esperanza Con Convencimiento (1961) e pode ser encontrado na sua Obra Poética (1956-2001), Palabra sobre palabra, Seix Barral, Barcelona, 2004.

A imagem que abre o artigo é um detalhe de Andrómeda libertada por Perseu, pintura a óleo sobre madeira de (1510-1513), pintada por Piero di Cosimo (1461-1522) que pertence à colecção da Galeria Uffizi de Florença.

Alegoricamente a imagem conduz à sobre-humana força temperada da ajuda divina proveniente do Olimpo europeu, que não grego, e aqui personificada em Perseu, de que o governo deu provas ao derrotar o monstro, nas diversas capas que vestiu.

Sarcasmo? Talvez…

…

agradecemos

a trégua convencional do entreacto,

e comprovamos

alegremente que tudo era mentira,

enquanto os músicos afinam os violinos.

…

e pensemos,

quando o drama prosseguir e a dor

fingida

se torne verdadeira em nossos corações,

que nada se pode fazer, que está próximo

o fim que tememos de antemão,

que a aventura acabará, sem dúvida,

como deve acabar, como está escrito,

como é inevitável que suceda.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Quadras: do Povo a Fernando Pessoa para a Dança camponesa de Bruegel

17 Sexta-feira Abr 2015

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Heterónimos de Fernando Pessoa, Pieter Bruegel, Quadras Populares

Bruegel - danças camponesasAEncanta-me a pintura de Pieter Bruegel (1520-1569) no seu colorido e detalhe descritivo. Dando conta de um mundo extinto, muito do que lá se vê ainda por cá acontece. Por exemplo, a festa de camponeses. À parte a roupa, que diferenças de atmosfera encontramos na pintura que não se repitam hoje, logo que a ocasião se proporcione? No fixo da representação a alegria transborda e as gentes conversam, dançam e namoram à nossa frente como se ali estivéssemos a um par de metros.

Na verdade, uma das proezas técnicas da pintura é a localização do observador. Pintada a cena ao nível do nosso olhar, com o uso de uma perspectiva rigorosa, apenas usual em paisagem e não em multidão, é essa posição que nos dá a ilusão de presenciar a festa no momento em que ela decorre.

É uma pintura de onde a ironia, a sátira, e mesmo a metáfora estão ausentes. Representa-se apenas gente vivendo os seus costumes, e o uso da perspectiva central coloca o pintor e nós como parte desta humanidade.

Na representação das figuras, o desenho usa da mais pura técnica clássica, tal qual como se de uma representação religiosa, mística ou de altos personagens se tratasse, e não de gente simples (que à época não era assunto de pintura), dispensando em absoluto o maneirismo ou o anedótico.

A pintura é de grandes dimensões (114x164cm) e vê-la proporciona um imenso prazer. Pintou-a o artista no final da vida, por volta de 1568, e guarda-se no museu de arte antiga de Viena.

Acrescento alguns detalhes para seu maior prazer, leitor.

Bruegel - danças camponesas 1

Bruegel - danças camponesas 2

Bruegel - danças camponesas 3

Bruegel - danças camponesas 4Termino com um grande plano do beijo que na pintura surge ao cimo, à esquerda, acompanhado por populares declarações de amor em quadra, a que entremeio a inspiração de Fernando Pessoa.

Bruegel - danças camponesas 5

Apalpei meu lado esquerdo

Nao achei o coração,

Chegou-me a feliz notícia

Que estava na tua mão.

(Popular)

Quando passo um dia inteiro

Sem ver o meu amorzinho,

Corre um frio de Janeiro

No Junho do meu carinho.

Fernando Pessoa (1920)

Tenho dentro do meu peito

Duas escadas de flores,

Por uma descem suspiros,

Por outra sobem amores.

(Popular)

Se morrendo eu acabar

E nada restar de mim,

Não te esqueças de lembrar

Que só te esqueci assim.

Fernando Pessoa (1934)

O papel em que te escrevo

Tenho-o na palma da mão:

A tinta sai-me dos olhos

E a pena do coração.

(Popular)

Até breve!

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...
← Older posts

Visitas ao Blog

  • 2.036.192 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 873 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • Beijos mil - o poema V de Catulo
  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Bem me cuidei eu, Maria Garcia — um poema de Afonso Eanes do Cotom

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 873 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: