Etiquetas

,

Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

Que eu saiba, está por editar a obra poética atribuível ao Infante D. Luís (1506-1555). Este filho do rei D. Manuel I, irmão do rei D. João III, e pai de D. António Prior do Crato, homem de armas, (combateu na expedição de Carlos V a Tunes contra o corsário Barba-Roxa em 1535), foi escritor e poeta na linha dos espíritos renascentistas do tempo. É-lhe atribuída a autoria, não sem controvérsia, de alguns sonetos, quase todos incluídos por Manuel de Faria e Sousa na obra poética de Camões, com o conhecido argumento: obra tão formosa não pode ser senão de Camões! 

 

Com a curiosidade espicaçada sobre a obra provável do Infante D. Luís, quando andei às voltas com o soneto Horas breves do meu contentamento, alvo de um circunstanciado artigo anterior, decidi, para a minha inteligência de leitor, reunir aqui o que de essencial fui tendo notícia. O que encontrei, além do soneto referido, foram 15 outros sonetos repassados de um pensar filosófico com a crença religiosa em pano de fundo. 

 

De atribuição quase unânime, e publicado em  A Fenix Renascida III é o soneto À rédea solta corre o pensamento. Acrescentam os estudiosos (1), com base nos diversos manuscritos conhecidos, a autoria muito provável de mais cinco sonetos publicados por Manuel de Faria e Sousa na sua edição comentada das Rimas Várias de Luís de Camoens. São eles os sonetos da Centúria III com os números 31, 33, 37, 38, 39

Carolina Michaelis de Vasconcelos no artigo O texto das Rimas de Camões e os apócrifos, recolhido numa edição dos seus artigos dispersos(2) refere, com base numa publicação de Wilhelm Storck, a atribuição provável ao Infante D. Luís, da autoria dos sonetos da Centúria III nºs 31-35, 37-44, 46, onde se incluem, portanto, os anteriores.

Serão estes catorze sonetos acrescentados do soneto de  A Fenix renascida III que a seguir transcreverei.

 

*

À rédea solta corre o pensamento,

Um só cuidado mil cuidados cria,

E quantas Torres arma a fantasia,

Todas vão acabar num fundamento.

 

Se quem me prometeu contentamento,

As ocasiões dele me desvia,

Como poderei crer, que em algum dia

Verei ao que desejo o cumprimento.

 

Bem vejo eu dos enganos os finais,

Porém como à vontade amor se entrega,

Querer desenganar-se é por demais.

 

Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

in A Fenix Renascida III.

 

Os sonetos que seguem constam todos da edição das Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa com ortografia actualizada. A numeração que os antecede é a usada na Centúria III desta edição.

 

31

Imagens vãs me imprime a fantesia;

discursos novos acha o pensamento,

com que dão à minh’ alma grão tormento

cuidados de cem anos num só dia.

 

Se fim grande tivessem, bem seria

responder a esperança ao fundamento;

mas o Fado não corre tanto a tento

que reserve à razão sua valia.

 

Caso e Fortuna podem acertar;

mas se por acidente, dão vitória,

sempre o favor da Fama é falsa historia.

 

Excede ao saber determinar;

e a constância se deve toda a gloria,

o ânimo livre é digno de memoria.

 

32

Quanta incerta esperança, quanto engano!

Quanto viver de falsos pensamentos,

pois todos vão fazer seus fundamentos

só no mesmo em que está seu próprio dano!

 

Na incerta vida estribam de um humano;

dão crédito a palavras que são ventos;

choram depois as horas e os momentos

que riram com mais gosto em todo o ano.

 

Não haja em aparências confianças;

entende que o viver é de emprestado;

que o de que vive o mundo são mudanças.

 

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,

somente amando aquelas esperanças

que duram pera sempre com o amado.

 

33

Mal que de tempo em tempo vás crecendo,

quem te visse de um bem acompanhado

a vida passaria descansado;

da morte não temera o rosto horrendo.

 

Se os vãos cuidados fora convertendo

em suspiros que dão outro cuidado,

oh, quão prudente! Oh, quão afortunado

a capela de louro irá tecendo!

 

Tempo é já de esquecer contentamentos

passados, co a esperança que passou,

e de que triunfem novos pensamentos.

 

A fé, que viva na alma me ficou,

dê já fim aos caducos ardimentos

a que o passado bem se condenou.

 

34

Oh! quanto melhor é o supremo dia

da mansa morte que o do nascimento!

Oh! quanto melhor é um só momento

que livra de anos tantos de agonia!

 

De alcançar outro bem cesse a porfia;

cesse todo aplicado pensamento

de tudo quanto dá contentamento,

pois só contenta ao corpo a terra fria.

 

O que do seu fez Deus seu despenseiro

tem mais estreita conta que lhe dar:

então parece rico o ovelheiro.

 

Triste de quem no dia derradeiro

tem o suor alheio por pagar,

pois a alma há-de vender pelo dinheiro!

 

35

Como podes, ó cego pecador,

estar em teus errores tão isento,

sabendo que esta vida é um momento,

se comparada com a eterna for?

 

Não cuides tu que o justo Julgador

deixará tuas culpas sem tormento,

nem que passando vai o tempo lento

do dia de horrendíssimo pavor.

 

Não gastes horas, dias, meses, anos,

em seguir de teus danos a amizade,

de que depois resultam mores danos.

 

E pois de teus enganos a verdade

conheces, deixa já tantos enganos,

pedindo a Deus perdão com humildade.

 

37

De Babel sobre os rios nos sentámos,

de nossa doce pátria desterrados;

as mãos na face, os olhos derribados,

com saudades de ti, Sião, chorámos.

 

Os órgãos nos salgueiros pendurámos,

em outro tempo bem de nós tocados;

outro era ele, por certo, outros cuidados.

Mas, por deixar saudades, os deixámos.

 

Aqueles que cativos nos traziam,

por cantigas alegres perguntavam.

«Cantai – nos dizem – hinos de Sião».

 

Sobre tal pena, pena tal nos dão;

pois tiranicamente pretendiam

que cantassem aqueles que choravam.

 

38

Sobre os rios do Reino escuro, quando

tristes, quais nossas culpas o ordenaram,

lágrimas nossos olhos derramaram

por ti, Sião divina, suspirando;

 

os que iam nossas almas infestando

de contino em error, as cativaram,

e em vão por nossos salmos perguntaram,

que tudo era silêncio miserando.

 

Dizendo estamos: «Como cantaremos

as aceitas canções a Deus benino,

quando a contrários seus obedecemos?»

 

Mas já, Senhor só Santo, determino,

deixando viciosíssimos extremos,

os cantos prosseguir de amor divino.

 

39

Em Babilónia, sobre os rios, quando

de ti, Sião sagrada, nos lembramos,

ali com grão saudade nos sentamos,

o bem perdido, míseros, chorando.

 

Os instrumentos músicos deixando,

nos estranhos salgueiros pendurámos,

quando aos cantares, que já em ti cantámos,

nos estavam imigos incitando.

 

Às esquadras dizemos inimigas:

«Como hemos de cantar em terra alheia

as cantigas de Deus, sacras cantigas?

 

Se a lembrança eu perder que me recreia

cá nestas penosíssimas fadigas,

oblivioni detur dextra mea».

 

40

Aponta a bela Aurora, luz primeira,

que a grão nova nos deu do claro dia.

Vesti-vos, corações, já de alegria,

e recebei da vida a Mensageira.

 

Da humana redenção nace a terceira.

Alegra-te, divina monarquia;

da terra terás sempre a companhia,

do Céu verás também a nossa feira.

 

De tal obra se espanta a Natureza,

confuso fica de temor o inferno,

vendo a que nace isenta da defesa.

 

Lei geral era posta desde eterno.

Mas o Senhor da lei, toda limpeza,

para o sacrário seu guardou materno

 

41

Porque a Terra no Céu agasalhasse,

o Céu na Terra Deus agasalhou;

lá não cabendo, cá se acomodou,

por que lá, de cá indo, se alargasse.

 

Por que o homem a ser deus por Deus chegasse

por o homem a ser homem Deus chegou;

seu divino poder tanto humanou,

por que o humano em divino se tornasse.

 

Vede bem o que deu e recebeu:

não se perca um bem tanto da memória.

Deu-nos a vida; a morte padeceu.

 

Trocou por nossa pena a sua glória.

Deu-nos o triunfo que ele mereceu:

porque Amor foi autor desta vitória.

 

42

«Que estila a Árvore sacra?» — «Um licor santo».

«Para quem?» — «Para o género é humano».

«Que faz dele?»— «Um remédio soberano».

«Para quê?» – «Para a culpa e triste pranto».

 

«E que obra?» — «Reduzir Luzbel a espanto».

«Porquê?» — «Porque cum pomo fez grão dano».

«Que foi?» — «A morte deu com um engano».

«Tanto pôde?» — «Sem falta pode tanto».

 

«Quem sobe a ela?» — «Quem do Céu deceu».

«A que dece?» — «A subir a criatura».

«Que quis da terra?» — «Só levá-la ao Céu».

 

«É escada para ir lá?» — «É a más segura».

«Quem o obrigou?» — «De Amor só se venceu».

«Que amava este Feitor?»– «Sua feitura».

 

43

Ó arma unicamente só triunfante.

propugnáculo só de nossas vidas,

com que foram ganhadas as perdidas

com que o Tártaro horrendo andava ovante!

 

Siga-se esta bandeira militante,

por quem são tais vitórias conseguidas,

por quantas almas, delas divertidas,

no Ponente erram cá, lá no Levante.

 

Ó árvore sublime e marchetada

de branco e carmezi, de ouro embutida,

dos rubis mais preciosos esmaltada,

 

de troféus mais claros guarnecida!

A vida à Morte vimos em ti dada,

para que em ti se desse a Morte à vida.

 

44

Aos homens um só Homem pôs espanto,

e o pôs a toda a humana natureza,

que de homem teve o ser, de anjo a pureza,

porque antes que nacesse era já santo.

 

Profeta foi na Mãe e, enfim, foi tanto

que entre os nacidos houve a mor alteza;

que a luz, sem a ver, viu a Grandeza,

tendo por trompa o Verbo Sacrossanto.

 

Aquela voz foi ele, sonorosa,

no côncavo dos orbes ressonante,

e que a Carne inculpável bautizou.

 

Quem do mor Pai ouviu a voz amante;

quem a sutil pregunta, industriosa,

com sincera reposta sossegou.

 

46

Como louvarei eu, Serafim santo,

tanta humildade, tanta penitência,

castidade, e pobreza, e paciência,

com este meu inculto e rudo canto?

 

Argumento que às Musas pões espanto,

que faz muda a grandíloqua eloquência.

Ó imagem, que a Divina Providência

de si, viva, em vós fez para bem tanto!

 

Fostes de santos uma rara mina;

almas de mil a mil ao Céu mandastes

do mundo que, perdido, reformastes.

 

E não roubáveis só com a doutrina

as vontades mortais, mas a divina,

pois os seus rubis cinco lhe roubastes.

 

Nota bibliográfica

Sonetos transcritos em ortografia modernizada de Luís de Camões, Lírica Completa II, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980. São muito úteis as notas  de fim de página em cada soneto.

 

Servindo o artigo apenas propósitos de leitor e não atitude de estudioso, poupo-me, e poupo os leitores, à bibliografia exaustiva de edições e manuscritos de cancioneiros de mão e outras fontes. Fica, pois, a bibliografia essencial a partir da qual o leitor interessado pode voar para outras paragens:

Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa, Tomo I y II, Lisboa, Año 1685. Preciosos os comentários a cada poema.

A Fenix Renascida III, ou Obras Poéticas dos melhores engenhos portugueses, segunda vez impresso e acrescentado por Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, 1746. Existe edição recente com ortografia actualizada segundo o novo acordo ortográfico, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Série Cultura Portuguesa, Lisboa, 2017.

(1) Dicionário de Luís de Camões, coordenação Vitor Aguiar e Silva, Editorial Caminho, 2011, artigo Infante D. Luís.

(2) Carolina Michaelis de Vasconcelos, Disperso, Originais Portugueses III, Estudos camonianos, Edição da Revista Ocidente, Lisboa, s/d, pg 19.



Abre o artigo a imagem de um fresco em Siena por Simone Martini (1280/85-1344) representando Guidoriccio da Fogliano executado c. 1330.