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Category Archives: Poesia Portuguesa antiga

Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís

23 Segunda-feira Nov 2020

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≈ 3 comentários

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Infante D. Luís, Simone Martini

…

Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

Que eu saiba, está por editar a obra poética atribuível ao Infante D. Luís (1506-1555). Este filho do rei D. Manuel I, irmão do rei D. João III, e pai de D. António Prior do Crato, homem de armas, (combateu na expedição de Carlos V a Tunes contra o corsário Barba-Roxa em 1535), foi escritor e poeta na linha dos espíritos renascentistas do tempo. É-lhe atribuída a autoria, não sem controvérsia, de alguns sonetos, quase todos incluídos por Manuel de Faria e Sousa na obra poética de Camões, com o conhecido argumento: obra tão formosa não pode ser senão de Camões! 

 

Com a curiosidade espicaçada sobre a obra provável do Infante D. Luís, quando andei às voltas com o soneto Horas breves do meu contentamento, alvo de um circunstanciado artigo anterior, decidi, para a minha inteligência de leitor, reunir aqui o que de essencial fui tendo notícia. O que encontrei, além do soneto referido, foram 15 outros sonetos repassados de um pensar filosófico com a crença religiosa em pano de fundo. 

 

De atribuição quase unânime, e publicado em  A Fenix Renascida III é o soneto À rédea solta corre o pensamento. Acrescentam os estudiosos (1), com base nos diversos manuscritos conhecidos, a autoria muito provável de mais cinco sonetos publicados por Manuel de Faria e Sousa na sua edição comentada das Rimas Várias de Luís de Camoens. São eles os sonetos da Centúria III com os números 31, 33, 37, 38, 39. 

Carolina Michaelis de Vasconcelos no artigo O texto das Rimas de Camões e os apócrifos, recolhido numa edição dos seus artigos dispersos(2) refere, com base numa publicação de Wilhelm Storck, a atribuição provável ao Infante D. Luís, da autoria dos sonetos da Centúria III nºs 31-35, 37-44, 46, onde se incluem, portanto, os anteriores.

Serão estes catorze sonetos acrescentados do soneto de  A Fenix renascida III que a seguir transcreverei.

 

*

À rédea solta corre o pensamento,

Um só cuidado mil cuidados cria,

E quantas Torres arma a fantasia,

Todas vão acabar num fundamento.

 

Se quem me prometeu contentamento,

As ocasiões dele me desvia,

Como poderei crer, que em algum dia

Verei ao que desejo o cumprimento.

 

Bem vejo eu dos enganos os finais,

Porém como à vontade amor se entrega,

Querer desenganar-se é por demais.

 

Ah liberdade presa, ah razão cega,

Não vês que é doudice esperar mais

Bem, que sempre está perto, e nunca chega.

 

in A Fenix Renascida III.

 

Os sonetos que seguem constam todos da edição das Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa com ortografia actualizada. A numeração que os antecede é a usada na Centúria III desta edição.

 

31

Imagens vãs me imprime a fantesia;

discursos novos acha o pensamento,

com que dão à minh’ alma grão tormento

cuidados de cem anos num só dia.

 

Se fim grande tivessem, bem seria

responder a esperança ao fundamento;

mas o Fado não corre tanto a tento

que reserve à razão sua valia.

 

Caso e Fortuna podem acertar;

mas se por acidente, dão vitória,

sempre o favor da Fama é falsa historia.

 

Excede ao saber determinar;

e a constância se deve toda a gloria,

o ânimo livre é digno de memoria.

 

32

Quanta incerta esperança, quanto engano!

Quanto viver de falsos pensamentos,

pois todos vão fazer seus fundamentos

só no mesmo em que está seu próprio dano!

 

Na incerta vida estribam de um humano;

dão crédito a palavras que são ventos;

choram depois as horas e os momentos

que riram com mais gosto em todo o ano.

 

Não haja em aparências confianças;

entende que o viver é de emprestado;

que o de que vive o mundo são mudanças.

 

Mudai, pois, o sentido e o cuidado,

somente amando aquelas esperanças

que duram pera sempre com o amado.

 

33

Mal que de tempo em tempo vás crecendo,

quem te visse de um bem acompanhado

a vida passaria descansado;

da morte não temera o rosto horrendo.

 

Se os vãos cuidados fora convertendo

em suspiros que dão outro cuidado,

oh, quão prudente! Oh, quão afortunado

a capela de louro irá tecendo!

 

Tempo é já de esquecer contentamentos

passados, co a esperança que passou,

e de que triunfem novos pensamentos.

 

A fé, que viva na alma me ficou,

dê já fim aos caducos ardimentos

a que o passado bem se condenou.

 

34

Oh! quanto melhor é o supremo dia

da mansa morte que o do nascimento!

Oh! quanto melhor é um só momento

que livra de anos tantos de agonia!

 

De alcançar outro bem cesse a porfia;

cesse todo aplicado pensamento

de tudo quanto dá contentamento,

pois só contenta ao corpo a terra fria.

 

O que do seu fez Deus seu despenseiro

tem mais estreita conta que lhe dar:

então parece rico o ovelheiro.

 

Triste de quem no dia derradeiro

tem o suor alheio por pagar,

pois a alma há-de vender pelo dinheiro!

 

35

Como podes, ó cego pecador,

estar em teus errores tão isento,

sabendo que esta vida é um momento,

se comparada com a eterna for?

 

Não cuides tu que o justo Julgador

deixará tuas culpas sem tormento,

nem que passando vai o tempo lento

do dia de horrendíssimo pavor.

 

Não gastes horas, dias, meses, anos,

em seguir de teus danos a amizade,

de que depois resultam mores danos.

 

E pois de teus enganos a verdade

conheces, deixa já tantos enganos,

pedindo a Deus perdão com humildade.

 

37

De Babel sobre os rios nos sentámos,

de nossa doce pátria desterrados;

as mãos na face, os olhos derribados,

com saudades de ti, Sião, chorámos.

 

Os órgãos nos salgueiros pendurámos,

em outro tempo bem de nós tocados;

outro era ele, por certo, outros cuidados.

Mas, por deixar saudades, os deixámos.

 

Aqueles que cativos nos traziam,

por cantigas alegres perguntavam.

«Cantai – nos dizem – hinos de Sião».

 

Sobre tal pena, pena tal nos dão;

pois tiranicamente pretendiam

que cantassem aqueles que choravam.

 

38

Sobre os rios do Reino escuro, quando

tristes, quais nossas culpas o ordenaram,

lágrimas nossos olhos derramaram

por ti, Sião divina, suspirando;

 

os que iam nossas almas infestando

de contino em error, as cativaram,

e em vão por nossos salmos perguntaram,

que tudo era silêncio miserando.

 

Dizendo estamos: «Como cantaremos

as aceitas canções a Deus benino,

quando a contrários seus obedecemos?»

 

Mas já, Senhor só Santo, determino,

deixando viciosíssimos extremos,

os cantos prosseguir de amor divino.

 

39

Em Babilónia, sobre os rios, quando

de ti, Sião sagrada, nos lembramos,

ali com grão saudade nos sentamos,

o bem perdido, míseros, chorando.

 

Os instrumentos músicos deixando,

nos estranhos salgueiros pendurámos,

quando aos cantares, que já em ti cantámos,

nos estavam imigos incitando.

 

Às esquadras dizemos inimigas:

«Como hemos de cantar em terra alheia

as cantigas de Deus, sacras cantigas?

 

Se a lembrança eu perder que me recreia

cá nestas penosíssimas fadigas,

oblivioni detur dextra mea».

 

40

Aponta a bela Aurora, luz primeira,

que a grão nova nos deu do claro dia.

Vesti-vos, corações, já de alegria,

e recebei da vida a Mensageira.

 

Da humana redenção nace a terceira.

Alegra-te, divina monarquia;

da terra terás sempre a companhia,

do Céu verás também a nossa feira.

 

De tal obra se espanta a Natureza,

confuso fica de temor o inferno,

vendo a que nace isenta da defesa.

 

Lei geral era posta desde eterno.

Mas o Senhor da lei, toda limpeza,

para o sacrário seu guardou materno

 

41

Porque a Terra no Céu agasalhasse,

o Céu na Terra Deus agasalhou;

lá não cabendo, cá se acomodou,

por que lá, de cá indo, se alargasse.

 

Por que o homem a ser deus por Deus chegasse

por o homem a ser homem Deus chegou;

seu divino poder tanto humanou,

por que o humano em divino se tornasse.

 

Vede bem o que deu e recebeu:

não se perca um bem tanto da memória.

Deu-nos a vida; a morte padeceu.

 

Trocou por nossa pena a sua glória.

Deu-nos o triunfo que ele mereceu:

porque Amor foi autor desta vitória.

 

42

«Que estila a Árvore sacra?» — «Um licor santo».

«Para quem?» — «Para o género é humano».

«Que faz dele?»— «Um remédio soberano».

«Para quê?» – «Para a culpa e triste pranto».

 

«E que obra?» — «Reduzir Luzbel a espanto».

«Porquê?» — «Porque cum pomo fez grão dano».

«Que foi?» — «A morte deu com um engano».

«Tanto pôde?» — «Sem falta pode tanto».

 

«Quem sobe a ela?» — «Quem do Céu deceu».

«A que dece?» — «A subir a criatura».

«Que quis da terra?» — «Só levá-la ao Céu».

 

«É escada para ir lá?» — «É a más segura».

«Quem o obrigou?» — «De Amor só se venceu».

«Que amava este Feitor?»– «Sua feitura».

 

43

Ó arma unicamente só triunfante.

propugnáculo só de nossas vidas,

com que foram ganhadas as perdidas

com que o Tártaro horrendo andava ovante!

 

Siga-se esta bandeira militante,

por quem são tais vitórias conseguidas,

por quantas almas, delas divertidas,

no Ponente erram cá, lá no Levante.

 

Ó árvore sublime e marchetada

de branco e carmezi, de ouro embutida,

dos rubis mais preciosos esmaltada,

 

de troféus mais claros guarnecida!

A vida à Morte vimos em ti dada,

para que em ti se desse a Morte à vida.

 

44

Aos homens um só Homem pôs espanto,

e o pôs a toda a humana natureza,

que de homem teve o ser, de anjo a pureza,

porque antes que nacesse era já santo.

 

Profeta foi na Mãe e, enfim, foi tanto

que entre os nacidos houve a mor alteza;

que a luz, sem a ver, viu a Grandeza,

tendo por trompa o Verbo Sacrossanto.

 

Aquela voz foi ele, sonorosa,

no côncavo dos orbes ressonante,

e que a Carne inculpável bautizou.

 

Quem do mor Pai ouviu a voz amante;

quem a sutil pregunta, industriosa,

com sincera reposta sossegou.

 

46

Como louvarei eu, Serafim santo,

tanta humildade, tanta penitência,

castidade, e pobreza, e paciência,

com este meu inculto e rudo canto?

 

Argumento que às Musas pões espanto,

que faz muda a grandíloqua eloquência.

Ó imagem, que a Divina Providência

de si, viva, em vós fez para bem tanto!

 

Fostes de santos uma rara mina;

almas de mil a mil ao Céu mandastes

do mundo que, perdido, reformastes.

 

E não roubáveis só com a doutrina

as vontades mortais, mas a divina,

pois os seus rubis cinco lhe roubastes.

 

Nota bibliográfica

Sonetos transcritos em ortografia modernizada de Luís de Camões, Lírica Completa II, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980. São muito úteis as notas  de fim de página em cada soneto.

 

Servindo o artigo apenas propósitos de leitor e não atitude de estudioso, poupo-me, e poupo os leitores, à bibliografia exaustiva de edições e manuscritos de cancioneiros de mão e outras fontes. Fica, pois, a bibliografia essencial a partir da qual o leitor interessado pode voar para outras paragens:

Rimas Várias de Luís de Camoens, comentadas por Manuel de Faria y Sousa, Tomo I y II, Lisboa, Año 1685. Preciosos os comentários a cada poema.

A Fenix Renascida III, ou Obras Poéticas dos melhores engenhos portugueses, segunda vez impresso e acrescentado por Mathias Pereira da Sylva, Lisboa, 1746. Existe edição recente com ortografia actualizada segundo o novo acordo ortográfico, edição da Fundação Calouste Gulbenkian, Série Cultura Portuguesa, Lisboa, 2017.

(1) Dicionário de Luís de Camões, coordenação Vitor Aguiar e Silva, Editorial Caminho, 2011, artigo Infante D. Luís.

(2) Carolina Michaelis de Vasconcelos, Disperso, Originais Portugueses III, Estudos camonianos, Edição da Revista Ocidente, Lisboa, s/d, pg 19.



Abre o artigo a imagem de um fresco em Siena por Simone Martini (1280/85-1344) representando Guidoriccio da Fogliano executado c. 1330.

 

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Uma graçola setecentista pelo Halloween

31 Sábado Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Richard Hamilton

Na minha quase infinita capacidade de compreensão o entusiasmo das gentes hoje pelo fenómeno Halloween (ou Dia das Bruxas nos países católicos) não cabe. Se nas raízes e na sua história a explicação da sua existência tem um fundo perceptível como esconjuro, o nosso mundo hoje não lhe presta atenção. É apenas o folclore do horror o que o entusiasma. Como prefiro o riso ao medo, a minha resposta a tudo este espectacular fenómeno é o poema que hoje aqui arquivo e mais à frente o leitor encontra. Para a semana regresso ao sério.

Habitualmente é o conteúdo do artigo que determina a escolha da(s) imagem(s) que o acompanha(m). Raramente é o contrário. Hoje é um desses casos. Ao ler uma monografia sobre a obra pictórica de Richard Hamilton (1922-2012), tantas vezes sarcástica como o evidencia a colagem “Just what is it that makes today’s homes so different, so appealing?” de 1956, e já reproduzida no blog, deparei-me com a imagem da obra que abre este artigo, o que me levou a memória para um poema setecentista que a seguir transcrevo, graçola fecal há anos encontrado numa colecção de poemas escatológicos setecentistas editada por Francisco Topa, e que o editor sub-titulou: “versos de entrudo em metáforas fedorentas”, de modo nenhum único à época: lembremo-nos de alguns sonetos atribuídos a Bocage (1765-1805) por Inocêncio nas suas Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas, nomeadamente aquele “Cagando estava a dama mais formosa”, que o moderno editor da obra, Daniel Pires, especula poder ser do Abade de Jazente, Paulino da Costa Cabral (1719-1789).

É apenas tornar evidente a variedade temática que a poesia de todas as épocas e latitudes oferece que por vezes me leva a transcrever poemas que, se tomasse a vida sempre pelo lado sério, nunca o faria. Felizmente não acontece e volta e meia aqui vão aparecendo exemplares dessa poesia marginal.

 

 

Décima setecentista

 

No convento caga a Freira,  

O Algarve* na falua**,  

O pobre caga na rua,  

O mochila*** na cocheira. 

Também caga a cozinheira,  

Cagam moças, cagam amas,  

Cagam mariolas e damas,  

Cago eu e cagas tu;  

Não só caga quem tem cu, 

Também caga quem tem mamas.

 

* Algarve — indivíduo natural do Algarve

** falua — barco de pesca à vela

*** mochila — indivíduo que seguia de pé, atrás, numa carruagem.

As notas são minhas e não constam da edição.

 

 

Será certamente do âmbito da psicologia de grupo a explicação para que o relato destas manifestações fisiológicas continue a desencadear o riso sempre que em ambiente de desenfado a anedota surge.

 

 

Nota bibliográfica

Francisco Topa, Folguedos escatologicos inéditos do séc.XVIII — versos de entrudo em metáforas fedorentas, edição do autor, Porto, 1998.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma obra de Richard Hamilton (1922-2012), Girl with skirt up, de 1972. Técnica mista: colagem,lápis, acrílico e óleo s/papel impresso, 56×40,5cm, de colecção partícular.

A obra vem reproduzida em Richard Hamilton, Tate Publishing, London, 2014.

 

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O mito dos andróginos e um epigrama de Filinto Elísio

29 Quinta-feira Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Bernard van Orley, Filinto Elísio, mito dos andróginos, O Banquete, Platão

Se no artigo anterior sobre o Fragmento 328 West se condenava violentamente a promiscuidade sexual e o seu comércio, a busca da metade que nos falta tomando à letra o mito dos andróginos narrado por Aristófanes no diálogo O Banquete  (189d-193-d) de Platão (428/27-348/47 a.C.) não sai beliscada. Ou seja a demanda sexual do outro é perfeitamente justificável à luz da vida casta dos estóicos, salvaguardadas que sejam temperança e dignidade humana.

Na floresta imensa das composições poéticas de Filinto Elísio (1734-1819) tantas delas datadas no assunto e no estilo para o leitor de hoje, surgem alguns poemas que pelo tema continuam a falar-nos, sendo sempre servidos por uma arte poética de enorme sofisticação. 

Hoje trago aos leitores um seu epigrama com a leitura poética do mito dos andróginos que acima mencionei. Nele, e para quem conheça o discurso de Aristófanes no diálogo O Banquete de Platão, o epigrama aborda apenas a busca heterossexual, enquanto Aristófanes (ou antes Platão pela boca daquele) é mais abrangente e inclui também a explicação para a busca homossexual. 

Filinto Elísio não resiste à ironia e no último verso mostra o seu cepticismo sobre a veracidade do mito:

…

—Ei-la — (nos diz o coração ) — É aquela —

Mas vamos a prová-Ia, e nunca é ela.

 

 

EPIGRAMA

 

Prometeu, quando fez o homem primeiro,

Macho e fêmea, dous corpos fez, pegados:

Porém Jóve um composto assim inteiro

Partiu em dous ternissimos bocados.

Daqui nos vem andarmos sempre ao cheiro

Dos membros, que nos foram arrancados.

—Ei-la — (nos diz o coração ) — É aquela —

Mas vamos a prová-Ia, e nunca é ela.

in Filinto Elysio, Obras Completas, tomo 1.º, Paris, Na oficina de A. Bobée, 1817.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Bernard van Orley (1492?-1542) também conhecido como Bernard, Barent, ou Barend, pintor flamengo chamado o Rafael do Norte. A pintura, para lhe ser dada legitimidade icónica pretende representar Júpiter e a Ninfa.

 

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Não lamentes, ó Nise, o teu estado — soneto de Bocage ou tradução do castelhano?

24 Sábado Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Espanhola, Poesia Portuguesa antiga

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Antoine Watteau, Bocage, Tomás de Iriarte

Hoje trago um desafio aos estudiosos da obra de Bocage (1765-1805) com uma questão de autoria de um dos seus sonetos burlescos. Trata-se do soneto cujo primeiro verso é “Não lamentes, ó Nise, o teu estado” publicado por Inocêncio na primeira edição das Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas com o nº6. Refere o editor em nota que o soneto, muito popular à época, embora tendo circulado sempre como de Bocage, o próprio nunca o reconheceu como seu e poderia, por isso, ser de João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838) e não de Bocage. O moderno editor destas poesias, Daniel Pires, diz taxativamente: “Julgamos tratar-se de um poema de Bocage.” em nota na sua edição, onde o soneto traz o nº23. Até aqui tudo bem.

Acontece que lendo eu poesias burlescas e satíricas em castelhano deparei com um soneto atribuído a Tomás de Iriarte (1750-1791), cujo primeiro verso é “No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado”. Não só o primeiro verso em português e castelhano é idêntico, como o desenvolvimento dos sonetos é o mesmo com as adaptações de rima e métrica necessárias em cada língua, como o leitor pode constatar pelas transcrições respectivas a seguir.

A atribuição a Tomás de Iriarte sendo mais frequente, não é unânime, e diferentes edições de poesias burlescas castelhanas o dão ora como anónimo (ex. no “Álbum de Príapo (1820)), ou como de Francisco de Quevedo (1580-1645), ou ainda de Felix Maria de Samaniego (1745-1801). Sendo incerta a autoria de Iriarte, os modernos editores espanhóis da colecção escolhida por Barbadillo (ver nota bibliográfica) consideram como provável ser o soneto do séc. XVII. Tanta autoria atribuída em Espanha, e constando o soneto das mais variadas antologias antigas compiladas a partir de manuscritos os mais diversos, pode concluir-se da extrema popularidade do soneto em Espanha.

Como Bocage teria 26 anos em 1791 quando Iriarte morreu, para não falar em Pimentel Maldonado que teria 18 anos, parece-me difícil que Bocage tivesse escrito o soneto antes e este fosse tão popular que Iriarte ou outro em Espanha o tivesse traduzido e o fizesse circular como seu. Fica assim a única possibilidade plausível de o soneto ser um original castelhano e alguém em Portugal, Bocage ou outro, tentou a tradução e a fez circular eventualmente como original. Comparando os dois sonetos encontra-se uma elegância no soneto em castelhano que em português desaparece substituída por alguma grosseria.

Eis os sonetos:

 

 

Soneto atribuído a Bocage/Pimentel Maldonado

 

Não lamentes, ó Nise, o teu estado; 

Puta tem sido muita gente boa,

Putissimas fidalgas tem Lisboa, 

Milhões de vezes putas têm reinado:

 

Dido foi puta, e puta dum soldado; 

Cleopatra por puta alcança a c’roa; 

Tu, Lucrecia, com toda a tua proa, 

O teu cono não passa por honrado;

 

Essa da Rússia imperatriz famosa,

Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)

Entre mil porras expirou vaidosa.

 

Todas no mundo dão a sua greta: 

Não fiques pois, ó Nize, duvidosa 

Que isto de virgo e honra é tudo peta.

 

 

 

Soneto de Tomás de Iriarte (?)

 

 

Extención y fama del oficio de puta

 

No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado

aunque te llamen puta a boca llena,

que puta ha sido mucha gente buena

y millones de putas han reinado.

 

Dido fue puta de un audaz soldado

y Cleopatra a ser puta se condena

y el nombre de Lucrecia, que resuena,

no es tan honesto como se ha pensado;

 

esa de Rusia emperatriz famosa

que fue de los virotes centinela,

entre más de dos mil murió orgullosa;

 

y, pues todas lo dan tan sin cautela,

haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;

que aquesto de honra y virgo es bagatela.

 

 

Nota bibliográfica

Bocage, Obra Completa, vol VII, edição de Daniel Pires, Caixotim Edições, 2004.

Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Bruxellas, MDCCCLXL.

Barbadilho, Joaquín López, Cancionero de Amor y de Risa, Ediciones Espuela de Plata, Sevilla, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Antoine Watteau (1684-1721), Uma mulher caprichosa (1718), pertença da colecção do museu Hermitage de São Petersburgo.




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O coração dividido — sonetos de Alvarenga Peixoto e Tomás António Gonzaga

17 Segunda-feira Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Alvarenga Peixoto, Jean-Frédéric Bazille, José Anastácio da Cunha, Tomás António Gonzaga

As histórias à volta das poesias que hoje transcrevo envolvem três rapazes mais ou menos da mesma idade (nascidos em 1742/44). Mas antes faço uma pequena digressão.

Acontece-me, se tenho pouco tempo disponível, tirar um livro da estante ao acaso, ler por um bocado, e quando preciso ir à vida, volta para o lugar. Se, entretanto algo me chamou a atenção, deixo um sinal, geralmente um post-it ou uma tirinha de papel. Podem passar-se anos até que volte ao livro, o que, com os autores de hoje aconteceu. Encontrado assinalado o poema de Alvarenga Peixoto (1742-1793), um soneto (1) que a seguir transcrevo, sobre um coração dividido, ocorreu-me uma canção há anos famosa numa interpretação do cantor de flamengo Diego el Cigala, Corazón loco. Irresistível na sincera angústia com que o artista relata o coração dividido entre dois amores, e a subjacente convenção moral de amar apenas uma de cada vez. Nunca deixo de sorrir ao ouvi-la, e sobretudo ao ver a sua interpretação num vídeo de um concerto ao vivo com Bebo Valdés em Maiorca, filmado com mão de mestre por Fernando Trueba.

A natureza polígama do género humano é uma evidência biológica que tarda a fazer o seu caminho moral e social, com o cortejo de angustias e infelicidade que acompanham tanta gente, e são matéria frutífera para a ficção romanesca de todos os tipos.

Voltando ao soneto, temos assim que o poeta se sente atraído por uma Jónia e por uma Nise. E é essa luta pela necessidade da monogamia que o poema relata, levando o pobre homem de coração dividido a rematar:

…

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:

Ou faze destes dois um só semblante, 

Ou divide o meu peito em dois pedaços!

 

 

Este mesmo problema tem o amigo de Alvarenga Peixoto, Tomás António Gonzaga (1744-1810), que num outro soneto(2), há anos transcrito no blog, se divide na atracção entre uma Alteia e uma Dirceia, e perante o mesmo dilema pede:

…

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou forma de Lorino dous sujeitos,

Ou forma desses dous um só semblante.

 

 

Para o mesmo pedido encontraram os dois poetas diferentes soluções versificatórias.

 

 

Aventa o editor da edição crítica da obra destes dois poetas,  M. Rodrigues Lapa, que a Alteia que partilha o coração dividido de Gonzaga, deve ser a mesma Altea por quem Alvarenga Peixoto parece estar caído de amor não correspondido, o que este relata num outro soneto (3) do livro. Diz o editor que, sendo os poetas amigos, e vivendo na mesma cidade, não é improvável serem atraídos pela mesma mulher. Talvez! Não esqueçamos que os nomes escolhidos são mais vezes determinados por razões de rima e métrica que por correspondência humana.

Transcrevo a seguir os sonetos. A numeração entre () permite identificar os sonetos referidos no texto.

 

 

Primeiro os 2 sonetos do coração dividido:

 

 

Soneto  6 de Alvarenga Peixoto (1)

Eu vi a linda Jónia e, namorado,

Fiz logo eterno voto de querê-la; 

Mas vi depois a Nise, e é tão bela, 

Que merece igualmente o meu cuidado. 

 

A qual escolherei, se, neste estado 

Eu não sei distinguir esta daquela? 

Se Nise agora vir, morro por ela,

Se Jónia vir aqui, vivo abrasado. 

 

Mas, ah! que aquela me despreza, amante, 

Pois sabe que estou preso em outros braços, 

E aquela me não quer por inconstante. 

 

Vem, Cupido, soltar-me destes laços:

Ou faze destes dois um só semblante, 

Ou divide o meu peito em dois pedaços!

 

 

Soneto 15 de Tomás António Gonzaga (2)

É gentil, é prendada a minha Altéia;

As graças, a modéstia do seu rosto

Inspiram no meu peito maior gosto

Que ver o próprio trigo quando ondeia.

 

Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia,

A nova sujeição me vejo exposto;

Ah! que é mais engraçado, mais composto

Que a pura Esfera, de mil astros cheia!

 

Prender as duas com grilhões estreitos

É uma acção, (ó Deuses), inconstante,

Indigna dos sinceros, nobres peitos.

 

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou forma de Lorino dous sujeitos,

Ou forma desses dous um só semblante.

 

 

Agora a paixão não correspondida de Alvarenga Peixoto pela Alteia do soneto anterior (?), e por quem Gonzaga tem o coração dividido:

 

Soneto 7 de Alvarenga Peixoto (3)

Não cedas, coração; pois nesta empresa 

O brio só domina; o cego mando 

Do ingrato Amor seguir não deves, quando 

Já não podes amar sem vil baixeza: 

 

Rompa-se o forte laço, que é fraqueza 

Ceder a amor, o brio deslustrando; 

Vença-te o brio, pelo amor cortando, 

Que é honra, que é valor, que é fortaleza.

 

Foge de ver Altea; mas se a vires, 

Porque não venhas outra vez a amá-la, 

Apaga o fogo, assim que o pressentires; 

 

E se inda assim o teu valor se abala, 

Não lho mostres no rosto, ah, não suspires!

Calado geme, sofre, morre, estala! 

 

 

Não termino sem uma nota à recorrente preterição amorosa relatada por Alvarenga Peixoto na sua poesia. Se acima foi Altea, desta vez é uma Jónia, que segundo o editor M. Rodrigues Lapa, terá preterido o nosso poeta Alvarenga em favor de José Anastácio da Cunha (1744-1787), também ele poeta, além de cientista notável, e cuja poesia também pode ser encontrada no blog (ex: Uma ode ao orgasmo simultâneo e a tradução da carta de Heloisa a Abelardo por Pope).

Guarda este soneto de Alvarenga Peixoto o comovente verso com que termina:

… dia de vitória / Sempre o mais triste foi para os vencidos!

 

Soneto 13 de Alvarenga Peixoto

Ao mundo esconde o Sol seus resplendores,

E a mão da noite embrulha os horizontes;

Não cantam aves, não murmuram fontes,

Não fala Pã na boca dos pastores.

 

Atam as Ninfas, em lugar das flores,

Mortais ciprestes sobre as tristes frontes;

Erram chorando nos desertos montes,

Sem arcos, nem aljavas, os Amores.

 

Vénus, Palas e as filhas da Memória,

Deixando os grandes templos esquecidos,

Não se lembram de altares nem de glória.

 

Andam os elementos confundidos:

Ah, Jónia, Jónia, dia de vitória

Sempre o mais triste foi para os vencidos!

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de:

— M. Rodrigues Lapa, Vida e Obra de Alvarenga Peixoto, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1960.

—Tomás António Gonzaga, ed. crítica de M. Rodrigues Lapa, Instituto Nacional do Livro, Rio de Janeiro, 1957.

Adoptei a maiúscula a iniciar em cada verso, como segue a edição A Poesia dos Inconfidentes, Poesia Completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás António Gonzaga e Alvarenga Peixoto, Editora Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2002.

Pontualmente esta edição diverge da lição de M. Rodrigues Lapa. Adoptei sempre a escolha deste último.

Abre o artigo a imagem de um reunião de família pintado por Jean-Frédéric Bazille (1841-1870), de 1867, pertença da colecção do Museu de Orsay, Paris.

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Um soneto de João António dos Santos

14 Sexta-feira Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Guido Reni, João António dos Santos

Um peito em fogo ardente incendiado

Qual jamais existiu, por ti se inflama,

…

 

Que tal como declaração de amor?

Há uma geração de vozes poéticas nascidas em finais do século XVIII e formadas no que talvez se possa chamar uma escola bocagiana, cuja obra ao ser publicada em pleno romantismo ou mesmo já em florescimento do pós-romantismo associado a O Trovador, por fora de época, foram e permanecem completamente ignoradas. Escapou Pato Moniz (1781-1826) graças ao seu poema herói-cómico Agostinheida onde zurzia José Agostinho de Macedo (1761-1831). Mas da poesia original de um José Maria da Costa e Silva (1788-1854), ou mesmo de um Francisco Evaristo Leoni (1804-1874), nomes que ainda ressoam graças a estudos literários notáveis, ou ainda João António dos Santos (1791-1837) de quem hoje transcrevo um poema, nada se conhece.

Da poesia de João António dos Santos escreve Inocêncio no seu Dicionário Bibliográfico: “… os seus versos são fluentes, e bem medidos, e a sua metrificação sempre cadente, e harmoniosa; posto que às vezes retumbante em demasia. …”. Não será o retumbante que encontramos no soneto que a seguir transcrevo, mas sim a metrificação harmoniosa.

Trata o soneto de uma apaixonada declaração de amor e fidelidade tanto na ventura como na adversidade. Já estamos longe da volubilidade amorosa da poesia neo-clássica exemplificada nos sonetos gémeos de Alvarenga Peixoto e Tomás António Gonzaga que proximamente trarei ao blog. Neste soneto é a continuidade da poesia amorosa maneirista devedora de Camões e seus herdeiros que encontramos.

 

Soneto

Um peito em fogo ardente incendiado

Qual jamais existiu, por ti se inflama,

Um peito, que no mundo a ti só ama

Em ti deve encontrar benigno agrado.

 

Se contra mim se armar adverso fado

Tentando amortecer dest’alma a chama,

Debalde lida, que a paixão me clama

Amar-te, ou venturoso, ou desgraçado.

 

Tudo caduca: meu amor não passa…

Com o sangue tanto afecto rubricara…

A tal paixão propicia amor te faça!

 

Se num trono da terra eu dominara, 

E tivesses nascido em sorte escassa,

O trono, por gozar-te, abandonara.

 

in José António dos Santos, Ensaios Poéticos, Imprensa de Cândido António da Silva Carvalho, Lisboa, 1836.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Guido Reni (1575-1642), Baco e Ariadne (1620), da colecção do LACMA (Los Angeles County Museum of Art). A pintura actualmente está fora de exposição.

Levados pelo poema a ler a imagem, longe do seu propósito original, poderíamos pensar que perante a indiferença, se não mesmo alheamento da dama, face a tão ardente declaração, o rapaz está verdadeiramente estupefacto, a ponto de ficar completamente desmotivado no seu ardor.

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O cheiro de Lisboa e poesia popular a Santo António

14 Domingo Jun 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

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Augusto Gil, Francisco Xavier da Silva, J. Leite de Vasconcelos, Maria Helena Vieira da Silva

Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

…

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

…

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

…

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

…

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.

 

 

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Martim de Castro do Rio — Perdi-me dentro em mim como em deserto

02 Domingo Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Lorenzo Lotto, Martim de Castro do Rio

Depois da controvérsia com o tempo num soneto em artigo anterior, mais alguma poesia de Martim de Castro do Rio (1548-1613), cristão-novo, poeta contemporâneo de Camões e mais uma voz da poesia maneirista portuguesa que tanta influência teve na poesia portuguesa posterior.

A obra de Martim de Castro do Rio encontrava-se dispersa por manuscritos com atribuições de autoria ausente, ou erróneas, até à sua edição recente por Mafalda Ferin da Cunha, de onde extraí os sonetos que a seguir transcrevo.

Poesia reflexiva sobre a existência e a vida, qual o soneto com que abro:  Perdi-me dentro em mim como em deserto, / …, entre ela surgem alguns poemas em que discretamente se alude aos sofrimentos e desenganos do amor, que privilegiei na escolha. Entre eles encontramos um original e interessante poema sobre os encantos e armadilhas associados à cor dos olhos: Aos olhos vestidos de esperança [olhos verdes] / …, concluindo o poeta sobre a sedução que olhos negros sobre si exercem. Pelo meio alguns belos sonetos sobre os anseios e sofrimentos de amor: Acho-me da fortuna salteado, / … ou este outro soneto: Acostumado tinha o sofrimento / … . Escolho ainda um soneto/interrogação sobre o que seja amor, Que cousa seja amor não se compreende, / …, assunto de vasta representação poética na poesia portuguesa antiga como já antes referi no blog. 

Vamos então aos poemas:

 

*

Perdi-me dentro em mim como em deserto,

Minha alma está metida em labirinto 

E posto em tal perigo já me sinto

Cair noutro maior nele encoberto.

 

Vejo o socorro longe e a morte perto,

Pois vivo do que temo e do que sinto 

Se alguém me quer valer não lho consinto,

Por vir o que desejo de ser mais certo.

 

Nova invenção de mal, novo tormento,

Ser cutelo da vida a mesma vida,

Ser desatino usar do entendimento.

 

Vingai-vos dor cruel, mal conhecida,

Que a vosso pesar sei do pensamento 

Que em grande dor não há vida comprida.

 

 

*

Aos olhos vestidos de esperança 

Não me rendi, pois muitas leva o vento,

E dos pardos, indícios de tormento,

Fugi, que em fim qualquer tormento cansa.

 

Dos azuis que do Céu são semelhança,

Com cautela fugiu meu peito isento 

Que, inda que de vista dá contentamento,

Nesses periga muito a esperança.

 

Mas pouco me durou esta vanglória,

Que outros olhos me roubaram, feiticeiros,

Vontade, entendimento e a memória;

 

Porém de frecha uns negros sorrateiros 

Alcançam de meu peito alta vitória,

Pois só negros tem mão para frecheiros.

 

 

*

Doce despojo de meu bem passado

Testemunha de dor que me deixou 

Aquela cujo foste e cujo sou,

Por quem chorei e agora sou chorado.

 

Como pode viver em tal estado 

Quem noutro tão contente se enganou 

De que somente a mágoa me ficou 

Do bem que foi em vindo arrebatado.

 

Fortuna que mo deu não mo deixara

Ou já que mo tirou, tão desumana,

Saber o que perdi não mo tirara.

 

Ah quão depressa o tempo desengana,

Se me temera dele eu me guardara

Mas quem mais se assegura mais se engana.

 

 

*

Que cousa seja amor não se compreende,

Quão caro custa amar minha alma o sente,

Um lhe chama afeição, outro acidente,

Mas quem mais o tratou menos o entende.

 

Quando se não receia, então ofende,

Entra dissimulado e não se sente.

Encobre no desejo a frecha ardente 

E o peito que é mais frio, mais acende.

 

Gasta a vida, esperança e sofrimento,

À sombra de um engano que sujeita 

Qualquer baixo ou altivo pensamento.

 

Triste de quem aprovou sua mão direita 

E o trouxe a tal estado seu tormento 

Que já de aborrecido a vida enjeita.

 

*

Acho-me da fortuna salteado,

O tempo vai correndo furioso,

Deixando-me da vida duvidoso 

E a cada hora mais desesperado.

 

Trocou-se meu descuido num cuidado 

Triste, grave, importuno, trabalhoso,

Nem vivo de perder-me receoso,

Nem de alcançar remédio confiado.

 

Qualquer ave nos vales mais agrestes,

Qualquer fera na cova repousando,

Tem horas de alegria, eu todas tristes.

 

Pois com tormento amor me está pagando,

Vós saudosos olhos pois quisestes 

Chorai o mal que tenho e o bem que vistes.

 

 

*

Acostumado tinha o sofrimento

Um mal que já de antigo não sentia 

E posto que era grave nele via 

Que o uso diminui o sentimento.

 

Ordenaram-me os céus novo tormento 

No tempo que esperei nova alegria 

Dantes somente amor me perseguia

E agora amor, fortuna e pensamento.

 

E a lembrança do bem que no outro estado 

Teve este peito meu, que em chamas arde,

E está cevando sempre meu cuidado.

 

Choro a noite, a manhã, a sesta e a tarde,

Mas não devo de estar desesperado 

Pois não se escusa a morte, ainda que tarde.

 

Poemas transcritos de A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Universidade de Coimbra, edição digital.

Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Lorenzo Lotto (1480-1556), Retrato de um ourives em três posições, de 1530. A pintura pertence à colecção do museu de arte antiga de Viena. A pintura completa surge acima, no final do artigo. Ao longo deste encontramos mais dois detalhes (vistas laterais esquerda e direita do rosto do retratado).

A escolha desta pintura prende-se com o facto de o retratado ser desconhecido, e, não sendo conhecidas imagens do poeta, este retrato de um provável judeu de Veneza aproximadamente seu contemporâneo (e o poeta era de origem judaica) ajudar a situar no tempo, e dar rosto humano, à sua poesia.

A pintura, original à época na sua concepção (mais tarde teremos o triplo retrato do cardeal Richelieu, já mostrado no blog), permite reflectir sobre o igual e diferente de cada rosto conforme o ângulo do nosso olhar, e simultaneamente dar continuidade à reflexão poética sobre o rosto desenvolvida por Marianne Moore, e que antes aqui trouxe.

 

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Martim de Castro do Rio e Frei António das Chagas às voltas com as contas do tempo e seu uso

10 Sexta-feira Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Frei António das Chagas, Martim de Castro do Rio, Salvador Dalí

Ganhou nos nossos dias divulgação acrescida um soneto atribuído a Frei António das Chagas, no século António da Fonseca Soares, (1631-1682), Conta e tempo, ao ser cantado por Camané com música de fado. 

Aborda o soneto, na peculiaridade formal da poesia barroca, a questão que a certa altura da vida todos nos colocamos: que fiz com o tempo que me foi dado viver? 

O assunto vem tratado no soneto de Frei António das Chagas na perspectiva religiosa e da vida no além, questionando as contas que é preciso prestar a Deus sobre a forma de viver o tempo de uma vida. Acontece que cerca de meio século antes, a mesma questão: que fiz com o tempo que me foi dado viver?, foi formulada em idênticos termos poéticos, que não teológicos, por Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), poeta maneirista entre os poetas menores contemporâneos de Camões. Refere o soneto de Martim de Castro do Rio esta prestação de contas a si próprio e não a Deus, colocando, portanto, a ênfase na responsabilidade individual sobre as consequências das escolhas do viver, e não como as pedras do caminho para um qualquer prémio ou castigo, a que a perspectiva religiosa conduz.

O poema de Frei António das Chagas é no vocabulário e desenvolvimento da ideia idêntico ao soneto de Martim de Castro do Rio, e hoje dificilmente escaparia a ser considerado um flagrante plágio, a que nem o desvio da reflexão introduzida no poema pela presença de Deus salvaria. Eram outros tempos e o poema passou à história com inteira propriedade como de Frei António das Chagas, permanecendo o poema de Martim de Castro do Rio, que lhe é anterior, no esquecimento dos manuscritos até à sua edição recente.

Nunca é demais realçar ser o tempo o único bem que a cada indivíduo verdadeiramente pertence. E é na compatibilização das escolhas, ao vender o tempo que se possui, trabalhando para ganhar o dinheiro que permite viver, com a utilização do seu uso no quadro de valores que nos governam a vida, que reside a responsabilidade do balanço perante si, ou Deus, do que cada um fez e faz com o seu tempo.

 

 

Soneto de Martim de Castro do Rio

 

Ao tempo

O tempo de si mesmo pede conta,

É necessário dar-se conta a tempo,

Que quem gastou sem conta tanto tempo,

Como dará sem tempo tanta conta?

 

Não quer levar o tempo tempo em conta 

Pois conta se não fez de dar-se a tempo,

Onde só pera conta havia tempo,

Se na conta do tempo houvesse conta.

 

Que conta pode dar quem não tem tempo 

Em que tempo a dará quem não tem conta,

Que a quem a conta falta, falta o tempo.

 

Vejo-me sem ter tempo, com ruim conta,

Sabendo que hei-de dar conta do tempo 

E que se chega o tempo de dar conta.

 

Lição de BN6046

 

 

Soneto de Frei António das Chagas

 

Conta e Tempo

Deus pede estrita conta de meu tempo. 

E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. 

Mas, como dar, sem tempo, tanta conta 

Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? 

 

Para dar minha conta feita a tempo, 

O tempo me foi dado, e não fiz conta, 

Não quis, sobrando tempo, fazer conta, 

Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. 

 

Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, 

Não gasteis vosso tempo em passatempo. 

Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! 

 

Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, 

Quando o tempo chegar, de prestar conta 

Chorarão, como eu, o não ter tempo… 

 

 

Nota bibliográfica

O soneto de Martim de Castro do Rio encontra-se em  A Poesia de Martim de Castro do Rio (c.1548-1613), Mafalda Ferin da Cunha, Imprensa da Unicersidade de Coimbra, edição digital. 

Edição modelar que pela primeira vez reúne a poesia atribuível ao poeta, e até esta edição distribuída por numerosos manuscritos. 

Deste soneto, Ao tempo, encontrou a compiladora 28 versões manuscritas, com ligeiras divergências, como sempre acontece nestes manuscritos, por desvio da recolha oral ou erro do copista. A compiladora escolheu a lição do manuscrito da Biblioteca Nacional BN6046, que transcrevi, dando conta em notas e anexo das variações encontradas.

 

Não possuo edição impressa do soneto Conta e Tempo. Correm na internet variadíssimas publicações com este soneto atribuído a Frei António das Chagas (1631-1682). Não encontrei referência sobre a sua publicação original impressa, ou manuscrita para confirmar a validade da atribuição, mas assumo que esteja correcta. 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Persistence of Memory, de 1931, pertencente à colecção do MoMA de New York.

Uma leitura possível da pintura, é vê-la como uma medida do tempo desperdiçado e interrogar-se o espectador se gosta do que vê.

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D. Francisco de Sá e Meneses — pago sempre em tristeza / os sonhos do pensamento

31 Terça-feira Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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D. Francisco de Sá e Meneses, Joan Miró

Os sonhos, porta de entrada da esperança, umas vezes realizam-se, outras ficam pelo caminho nos acidentes de percurso da vida vivida. Não que os sonhos do pensamento sempre se esboroem virando a esperança em tristeza, ou como poeticamente escreve D. Francisco de Sá e Meneses (1515-1584), 1.º Conde de Matosinhos(*), no poema que a seguir transcrevo: pago sempre em tristeza / os sonhos do pensamento. Esta desilusão permanente é talvez uma imagem de abismo decorrente de desilusões sucessivas, a ponto de o poeta desabafar: 

…

Que até de ter esperança

Tenho a esperança perdida. 

…

 

Embora suponhamos poder ter mão no destino, em verdade só a temos no que da nossa vontade depende, como bem lembra Epicteto (séc. I-II) em Encheiridion (Manual). O que nos é alheio atinge-nos sem fuga. E se esse acontecer, a que chamamos pouca sorte, persiste, então talvez sintamos como o poeta que ao terminar o poema se lamenta:

…

E eu, por não mudar a sorte,

Nem morro nem tenho vida.

 

Que nem todos tenhamos tamanha desilusão com o viver, desejo.

 

 

Poema

 

Mote

 

Já não posso ser contente:

Tenho a esperança perdida!

Ando perdido entre a gente;

Nem morro, nem tenho vida.

 

Glosa

 

A tudo quanto desejo

Acho atalhadas as vias;

Em tentos e fantasias

Mui mau caminho me vejo.

Se do passado e presente

O porvir se pode crer,

Já não há que pretender:

Já não posso ser contente.

 

Que de tudo quanto quero

Chego a tara triste estremo

Que vejo tudo o que temo 

E nem sombra do que espero,

Desengano-me da vida

E fiz nela tal mudança 

Que até de ter esperança

Tenho a esperança perdida.

 

Cuidei um tempo que havia

Na fortuna o que buscava,

E posto que o não dava,

O mesmo tempo o daria.

Achei tudo diferente,

Fiquei desencaminhado, 

E como em despovoado, 

Ando perdido entre a gente.

 

De que farei fundamento

Pois em nada acho firmeza

E pago sempre em tristeza

Os sonhos do pensamento?

Abrande esta dor crescida

Vivendo em pena de morte,

E eu, por não mudar a sorte,

Nem morro nem tenho vida.

 

Fonte do poema

As cem melhores poesias (líricas) da língua portuguesa escolhidas por Carolina Michaëlis de Vasconcelos, editado simultaneamente em Lisboa, Rio de Janeiro, Berlim, Bruxelas, Lausanne, Londres, 1910.

Actualizei a ortografia.

 

(*) Não confundir com o sobrinho de nome homónimo e autor do poema épico Malaca conquistada e poemas diversos.

Com esta publicação concluem-se dez anos de blog e quase mil artigos publicados.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Joan Miró (1893-1983), A Esperança.

Possa o contemplá-la ser um estímulo para manter a esperança vida fora.

 

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