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Hoje trago um desafio aos estudiosos da obra de Bocage (1765-1805) com uma questão de autoria de um dos seus sonetos burlescos. Trata-se do soneto cujo primeiro verso é “Não lamentes, ó Nise, o teu estado” publicado por Inocêncio na primeira edição das Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas com o nº6. Refere o editor em nota que o soneto, muito popular à época, embora tendo circulado sempre como de Bocage, o próprio nunca o reconheceu como seu e poderia, por isso, ser de João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838) e não de Bocage. O moderno editor destas poesias, Daniel Pires, diz taxativamente: “Julgamos tratar-se de um poema de Bocage.” em nota na sua edição, onde o soneto traz o nº23. Até aqui tudo bem.
Acontece que lendo eu poesias burlescas e satíricas em castelhano deparei com um soneto atribuído a Tomás de Iriarte (1750-1791), cujo primeiro verso é “No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado”. Não só o primeiro verso em português e castelhano é idêntico, como o desenvolvimento dos sonetos é o mesmo com as adaptações de rima e métrica necessárias em cada língua, como o leitor pode constatar pelas transcrições respectivas a seguir.
A atribuição a Tomás de Iriarte sendo mais frequente, não é unânime, e diferentes edições de poesias burlescas castelhanas o dão ora como anónimo (ex. no “Álbum de Príapo (1820)), ou como de Francisco de Quevedo (1580-1645), ou ainda de Felix Maria de Samaniego (1745-1801). Sendo incerta a autoria de Iriarte, os modernos editores espanhóis da colecção escolhida por Barbadillo (ver nota bibliográfica) consideram como provável ser o soneto do séc. XVII. Tanta autoria atribuída em Espanha, e constando o soneto das mais variadas antologias antigas compiladas a partir de manuscritos os mais diversos, pode concluir-se da extrema popularidade do soneto em Espanha.
Como Bocage teria 26 anos em 1791 quando Iriarte morreu, para não falar em Pimentel Maldonado que teria 18 anos, parece-me difícil que Bocage tivesse escrito o soneto antes e este fosse tão popular que Iriarte ou outro em Espanha o tivesse traduzido e o fizesse circular como seu. Fica assim a única possibilidade plausível de o soneto ser um original castelhano e alguém em Portugal, Bocage ou outro, tentou a tradução e a fez circular eventualmente como original. Comparando os dois sonetos encontra-se uma elegância no soneto em castelhano que em português desaparece substituída por alguma grosseria.
Eis os sonetos:
Soneto atribuído a Bocage/Pimentel Maldonado
Não lamentes, ó Nise, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa,
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas têm reinado:
Dido foi puta, e puta dum soldado;
Cleopatra por puta alcança a c’roa;
Tu, Lucrecia, com toda a tua proa,
O teu cono não passa por honrado;
Essa da Rússia imperatriz famosa,
Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)
Entre mil porras expirou vaidosa.
Todas no mundo dão a sua greta:
Não fiques pois, ó Nize, duvidosa
Que isto de virgo e honra é tudo peta.
Soneto de Tomás de Iriarte (?)
Extención y fama del oficio de puta
No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado
aunque te llamen puta a boca llena,
que puta ha sido mucha gente buena
y millones de putas han reinado.
Dido fue puta de un audaz soldado
y Cleopatra a ser puta se condena
y el nombre de Lucrecia, que resuena,
no es tan honesto como se ha pensado;
esa de Rusia emperatriz famosa
que fue de los virotes centinela,
entre más de dos mil murió orgullosa;
y, pues todas lo dan tan sin cautela,
haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;
que aquesto de honra y virgo es bagatela.
Nota bibliográfica
Bocage, Obra Completa, vol VII, edição de Daniel Pires, Caixotim Edições, 2004.
Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Bruxellas, MDCCCLXL.
Barbadilho, Joaquín López, Cancionero de Amor y de Risa, Ediciones Espuela de Plata, Sevilla, 2007.
Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Antoine Watteau (1684-1721), Uma mulher caprichosa (1718), pertença da colecção do museu Hermitage de São Petersburgo.