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Ao ler a poesia que nos legou a antiguidade clássica vale a pena ter uma visão prévia dos valores e modos de vida por lá adoptados. Não é aqui o lugar para o fazer, mas tenhamos sempre presente que as palavras usadas nas línguas modernas para traduzir essa poesia nem sempre abarcam o completo ou exacto sentido do que significavam à época, conduzindo tantas vezes a interpretações enviesadas de como foi a vida nessas sociedades. Para o poema de hoje a necessidade desse enquadramento para a íntegra interpretação da moral que encerra é paradigmática. Em nota faço apenas uma pequena observação sobre vida casta e outra a propósito da imagem que abre o artigo. As considerações de prostituição e homossexualidade têm sido objecto de vasta produção universitária, sobretudo anglo-americana, nem sempre distante da militância dos seus autores nas lutas sociais e ideológicas dos nossos dias.

 

É um curioso e atípico poema da antiguidade greco-romana o fragmento 328 West, em tempos atribuído a Arquíloco (séc. VII a.C) que hoje trago aos leitores do blog. Nele se lê de início uma violenta diatribe contra a prostituição masculina ou feminina. 

 

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

 

Sem eufemismos nem pruridos de linguagem, a qual podemos também encontrar em Marcial (40-104), o poeta latino, ficamos elucidados do juízo do poeta, actualmente desconhecido. O poema prossegue no mesmo tom até que o autor nos esclarece sobre as suas escolhas ao rematar o poema com o propósito de vida casta* e temperança caros à sociedade grega e sobretudo aos estóicos:

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta* 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

 

* vida casta não tem aqui o significado cristão de castidade, mas é no sentido de dosear desejos, emoções, etc, por valores de dignidade humana, reflectir sobre eles e agir de acordo.

 

 

É a tradução brilhante do poema a partir do original grego por Carlos A. Martins de Jesus antes citada que os leitores podem ler a seguir na totalidade:

 

 

Poema

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

A ambos não os satisfaz nunca um só garanhão,

antes dos devassos, um atrás do outro, 

toda e qualquer verga com gosto devoram; 

provam os maiores e mais grossos paus, 

para que, ao cavalgá-los, explorem 

todas as suas entranhas, para que lhes rasguem a funda 

abertura do horrível abismo e sem cessar 

avancem mesmo até ao centro do umbigo. 

Por isso, vá para o diabo a devassa meretriz

e com ela a raça dos debochados de cu aberto.

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

(Fra. 328)

 

in Arquíloco, Fragmentos Poéticos, introdução, tradução e notas de Carlos A. Martins de Jesus, INCM, Lisboa, 2008.

 

 

Abre o artigo a imagem de um vaso grego (kilix) de cerca de 520 a.C cuja pintura é atribuída a Amasis. O vaso pertence à colecção do museu de belas-artes de Boston. 

Na pintura dos vasos gregos que chegaram até nós, a representação de orgias com humanos é rara. Sabedores do lado animal da natureza humana, para a representar criaram na mitologia seres híbridos, parte animal, parte homem, dos quais os sátiros estão entre eles. Na sua representação distinguem-se de humanos por uma longa cauda de cavalo e surgem habitualmente com uma gigantesca erecção. Não surgem em representações homoeróticas. Tidos como criaturas incapazes de continência e segurar a urgência no que aos prazeres respeita, é essa uma leitura possível dos dois sátiros masturbando-se representados na taça da imagem de abertura.