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Category Archives: Poesia Grega Antiga

Fragmento 328 West, em tempos atribuído a Arquíloco

27 Terça-feira Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Grega Antiga

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Amasis, Arquíloco

Ao ler a poesia que nos legou a antiguidade clássica vale a pena ter uma visão prévia dos valores e modos de vida por lá adoptados. Não é aqui o lugar para o fazer, mas tenhamos sempre presente que as palavras usadas nas línguas modernas para traduzir essa poesia nem sempre abarcam o completo ou exacto sentido do que significavam à época, conduzindo tantas vezes a interpretações enviesadas de como foi a vida nessas sociedades. Para o poema de hoje a necessidade desse enquadramento para a íntegra interpretação da moral que encerra é paradigmática. Em nota faço apenas uma pequena observação sobre vida casta e outra a propósito da imagem que abre o artigo. As considerações de prostituição e homossexualidade têm sido objecto de vasta produção universitária, sobretudo anglo-americana, nem sempre distante da militância dos seus autores nas lutas sociais e ideológicas dos nossos dias.

 

É um curioso e atípico poema da antiguidade greco-romana o fragmento 328 West, em tempos atribuído a Arquíloco (séc. VII a.C) que hoje trago aos leitores do blog. Nele se lê de início uma violenta diatribe contra a prostituição masculina ou feminina. 

 

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

…

 

Sem eufemismos nem pruridos de linguagem, a qual podemos também encontrar em Marcial (40-104), o poeta latino, ficamos elucidados do juízo do poeta, actualmente desconhecido. O poema prossegue no mesmo tom até que o autor nos esclarece sobre as suas escolhas ao rematar o poema com o propósito de vida casta* e temperança caros à sociedade grega e sobretudo aos estóicos:

…

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta* 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

 

* vida casta não tem aqui o significado cristão de castidade, mas é no sentido de dosear desejos, emoções, etc, por valores de dignidade humana, reflectir sobre eles e agir de acordo.

 

 

É a tradução brilhante do poema a partir do original grego por Carlos A. Martins de Jesus antes citada que os leitores podem ler a seguir na totalidade:

 

 

Poema

 

Do devasso e da reles rameira igual é o espírito.

Alegram-se ambos em levar dinheiro 

para serem penetrados e rasgados, 

para serem fodidos e montados, 

para lhes meterem a cavilha e os abrirem, 

para lhes enfiarem a salsicha e os revolver no pó. 

A ambos não os satisfaz nunca um só garanhão,

antes dos devassos, um atrás do outro, 

toda e qualquer verga com gosto devoram; 

provam os maiores e mais grossos paus, 

para que, ao cavalgá-los, explorem 

todas as suas entranhas, para que lhes rasguem a funda 

abertura do horrível abismo e sem cessar 

avancem mesmo até ao centro do umbigo. 

Por isso, vá para o diabo a devassa meretriz

e com ela a raça dos debochados de cu aberto.

Quanto a mim, os dons das Musas e da vida casta 

são preferíveis, convicto de que aí sim 

está a delícia, a graça verdadeira,

de que nisso reside a alegria: nunca conviver 

com esses a quem apraz o vergonhoso prazer.

(Fra. 328)

 

in Arquíloco, Fragmentos Poéticos, introdução, tradução e notas de Carlos A. Martins de Jesus, INCM, Lisboa, 2008.

 

 

Abre o artigo a imagem de um vaso grego (kilix) de cerca de 520 a.C cuja pintura é atribuída a Amasis. O vaso pertence à colecção do museu de belas-artes de Boston. 

Na pintura dos vasos gregos que chegaram até nós, a representação de orgias com humanos é rara. Sabedores do lado animal da natureza humana, para a representar criaram na mitologia seres híbridos, parte animal, parte homem, dos quais os sátiros estão entre eles. Na sua representação distinguem-se de humanos por uma longa cauda de cavalo e surgem habitualmente com uma gigantesca erecção. Não surgem em representações homoeróticas. Tidos como criaturas incapazes de continência e segurar a urgência no que aos prazeres respeita, é essa uma leitura possível dos dois sátiros masturbando-se representados na taça da imagem de abertura.




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Íbico — Para mim o amor não descansa em nenhuma estação

12 Quarta-feira Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Grega Antiga

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Íbico, Rafael

É um fogoso poeta que nos surge neste fragmento poético (fr. 286 PMG) de Íbico (séc. VI a.C.), poeta da Grécia arcaica, numa tradução de Frederico Lourenço, a que o tradutor chamou Primavera:

… Mas para mim o amor

não descansa em nenhuma estação;

ardendo sob o relâmpago 

como o Bóreas da Trácia,

lança-se de junto de Cípris com sedentas

insânias, …

 

Estas sedentas insânias são o vórtice da paixão que acomete alguns em amores sem medida, e, como refere o poeta: com força, de cima a baixo, sacode / o meu espírito.

Que o S. Valentim traga a todos o amor assim…

 

 

Primavera (fr. 286 PMG)

 

Na Primavera, os marmeleiros

da Cidónia, regados pelas correntes 

dos rios, lá onde das Virgens

está o puro jardim; e os pâmpanos

a crescerem sob folhagens sombrias,

rebentos de vinha. Mas para mim o amor

não descansa em nenhuma estação;

ardendo sob o relâmpago 

como o Bóreas da Trácia,

lança-se de junto de Cípris com sedentas

insânias, tenebroso, desavergonhado,

e com força, de cima a baixo, sacode

o meu espírito.

 

Tradução de Frederico Lourenço

in Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

E agora, para os leitores com mais tempo e curiosidade, duas outras versões do mesmo poema, uma em português, outra em inglês.

 

O amor não dorme

 

Na primavera, regados

pelas águas dos regatos, os marmeleiros 

florescem no inviolado 

jardim das Virgens e as flores 

da videira despontam e crescem 

sob os talos umbrosos dos pâmpanos.

Mas para mim o amor 

em nenhuma estação repousa, antes como 

o tracio Bóreas, inflamado 

pelo relâmpago, irrompendo

da morada de Cípris, com fúria 

abrasadora, obscuro 

e intrépido, com força 

de alto a baixo sacode 

o meu coração.

 

Tradução de Albano Martins

in Antologia da Poesia Grega Clássica, Edições Afrontamento, 2011.

Termino com a tradução inglesa de M. L. West:

286

In spring the Cydonian quince-trees 

watered from freshets of rivers

where Nymphs have their virginal gardens 

blossom, and vine-shoots are growing 

under the shade of the branches;

but Love in me at no season is laid to rest.

 

Like the North Wind of Thrace that comes blazing 

with lightning, he rushes upon me,

sent by the Cyprian goddess

with withering frenzies, dark-lowering,

undaunted, and from the foundations

he overwhelms and devastates my heart.

 

Tradução M. L. West

in Greek Lyric Poetry, Oxford World Classics, 2008.

Abre o artigo a imagem de um fragmento de uma pintura de Rafael (1483-1520), The Sistine Madonna, 1513-14, pertencente à colecção da Gemäldegalerie de Dresden.

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Marotices num poeta anónimo da Antologia Grega

26 Domingo Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Grega Antiga

≈ 2 comentários

Como não sou alvo, nem pratico, não faço ideia se os piropos de passagem ainda são de uso numa forma agressiva de alardear masculinidade. Prática antiga tomada como técnica de sedução, as mulheres foram dela o alvo nas circunstâncias mais variadas.

Ao sabor das leituras variadas que me ocupam, encontro numa elegante e galanteadora forma, uma manifestação ancestral dos piropos que não há muitos anos também se praticavam.

Um poeta anónimo incluído na Antologia Grega transmite a uma certamente bela mulher, como os seus seios o desafiam e atraem. Para isso, manifesta o desejo de se mimetizar primeiro no vento, depois em rosa, e finalmente em cítara. Na elegância da forma e conteúdo estamos nos antípodas dos piropos de esquina de rua, frequentemente grosseiros, que a abrir referi. Por isso, para sublinhar a malícia dos epigramas que transcrevo a seguir, no título do artigo escolhi marotices.

 

 

O vento

 

Fosse eu o vento e pudesses tu, chegando a tua casa

de campo, desnudar o peito e receber meu sopro.

 

 

A rosa

 

Fosse eu uma rosa púrpura e que tu, tomando-me nas mãos,

me concedesses a graça dos teus seios de neve!

 

 

A cítara

 

Quando estou ao pé de ti, ó tocadora de cítara, eu queria

ser como tu: tocar de leve ao alto e percutir no meio.

 

Anónimo

Tradução de Albano Martins

in Antologia da Poesia Grega Clássica, Edições Afrontamento, Porto, 2011.

 

 

Nota talvez desnecessária

 

No Brasil não sei se piropo é usado com o significado de galanteio que tem em Portugal. Consultado o Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa não o vi referido.

Por outro lado, marotice usa-se no Brasil com o significado de brejeirice que mantém em Portugal. Acresce que após a independência do Brasil, nos estados do Norte, maroto era alcunha de português, a qual não sei se ainda é de uso.

Abre o artigo a imagem de uma criação digital minha a partir de um desenho original que fiz por volta de 2005.

Carlos Mendonça Lopes

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