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Não lamentes, ó Nise, o teu estado — soneto de Bocage ou tradução do castelhano?

24 Sábado Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Espanhola, Poesia Portuguesa antiga

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Antoine Watteau, Bocage, Tomás de Iriarte

Hoje trago um desafio aos estudiosos da obra de Bocage (1765-1805) com uma questão de autoria de um dos seus sonetos burlescos. Trata-se do soneto cujo primeiro verso é “Não lamentes, ó Nise, o teu estado” publicado por Inocêncio na primeira edição das Poesias Eróticas Burlescas e Satíricas com o nº6. Refere o editor em nota que o soneto, muito popular à época, embora tendo circulado sempre como de Bocage, o próprio nunca o reconheceu como seu e poderia, por isso, ser de João Vicente Pimentel Maldonado (1773-1838) e não de Bocage. O moderno editor destas poesias, Daniel Pires, diz taxativamente: “Julgamos tratar-se de um poema de Bocage.” em nota na sua edição, onde o soneto traz o nº23. Até aqui tudo bem.

Acontece que lendo eu poesias burlescas e satíricas em castelhano deparei com um soneto atribuído a Tomás de Iriarte (1750-1791), cujo primeiro verso é “No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado”. Não só o primeiro verso em português e castelhano é idêntico, como o desenvolvimento dos sonetos é o mesmo com as adaptações de rima e métrica necessárias em cada língua, como o leitor pode constatar pelas transcrições respectivas a seguir.

A atribuição a Tomás de Iriarte sendo mais frequente, não é unânime, e diferentes edições de poesias burlescas castelhanas o dão ora como anónimo (ex. no “Álbum de Príapo (1820)), ou como de Francisco de Quevedo (1580-1645), ou ainda de Felix Maria de Samaniego (1745-1801). Sendo incerta a autoria de Iriarte, os modernos editores espanhóis da colecção escolhida por Barbadillo (ver nota bibliográfica) consideram como provável ser o soneto do séc. XVII. Tanta autoria atribuída em Espanha, e constando o soneto das mais variadas antologias antigas compiladas a partir de manuscritos os mais diversos, pode concluir-se da extrema popularidade do soneto em Espanha.

Como Bocage teria 26 anos em 1791 quando Iriarte morreu, para não falar em Pimentel Maldonado que teria 18 anos, parece-me difícil que Bocage tivesse escrito o soneto antes e este fosse tão popular que Iriarte ou outro em Espanha o tivesse traduzido e o fizesse circular como seu. Fica assim a única possibilidade plausível de o soneto ser um original castelhano e alguém em Portugal, Bocage ou outro, tentou a tradução e a fez circular eventualmente como original. Comparando os dois sonetos encontra-se uma elegância no soneto em castelhano que em português desaparece substituída por alguma grosseria.

Eis os sonetos:

 

 

Soneto atribuído a Bocage/Pimentel Maldonado

 

Não lamentes, ó Nise, o teu estado; 

Puta tem sido muita gente boa,

Putissimas fidalgas tem Lisboa, 

Milhões de vezes putas têm reinado:

 

Dido foi puta, e puta dum soldado; 

Cleopatra por puta alcança a c’roa; 

Tu, Lucrecia, com toda a tua proa, 

O teu cono não passa por honrado;

 

Essa da Rússia imperatriz famosa,

Que inda há pouco morreu (diz a Gazeta)

Entre mil porras expirou vaidosa.

 

Todas no mundo dão a sua greta: 

Não fiques pois, ó Nize, duvidosa 

Que isto de virgo e honra é tudo peta.

 

 

 

Soneto de Tomás de Iriarte (?)

 

 

Extención y fama del oficio de puta

 

No te quejes, ¡oh, Nise!, de tu estado

aunque te llamen puta a boca llena,

que puta ha sido mucha gente buena

y millones de putas han reinado.

 

Dido fue puta de un audaz soldado

y Cleopatra a ser puta se condena

y el nombre de Lucrecia, que resuena,

no es tan honesto como se ha pensado;

 

esa de Rusia emperatriz famosa

que fue de los virotes centinela,

entre más de dos mil murió orgullosa;

 

y, pues todas lo dan tan sin cautela,

haz tú lo mismo, Nise vergonzosa;

que aquesto de honra y virgo es bagatela.

 

 

Nota bibliográfica

Bocage, Obra Completa, vol VII, edição de Daniel Pires, Caixotim Edições, 2004.

Bocage, Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, Bruxellas, MDCCCLXL.

Barbadilho, Joaquín López, Cancionero de Amor y de Risa, Ediciones Espuela de Plata, Sevilla, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de um detalhe de uma pintura de Antoine Watteau (1684-1721), Uma mulher caprichosa (1718), pertença da colecção do museu Hermitage de São Petersburgo.




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A Noite e Cançonetas Báquicas para a Mesa escritas por Bocage

02 Quarta-feira Out 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Bocage, Charles André van Loo

Regresso à ligeireza e despreocupação, com o mundo da poesia neo-clássica e o poema A Noite, cançoneta anacreontica, escrito por Bocage (1765-1805). 

Trata-se de um poema inserido na tradição anacreontica, embora de muito maior extensão que o habitual. Esta tradição respeita a uma poesia codificada, com assunto e forma perfeitamente delineados pela convenção, e inspirada na colecção de poesias anacreonticas gregas de autores desconhecidos, provavelmente do periodo helenístico, cantando a despreocupação e uma atitude edonista perante a vida, privilegiando os prazeres do amor e da boa mesa. A colecção foi por longo tempo atribuída a Anacreonte, daí o nome genérico do género. Em A Noite, Bocage foge a este quadro temático, dando antes conta de uma traição de amor e do seu efeito devastador, mantendo no entanto, o ambiente da natureza como cenário, e a população mitológica como protagonista. 

Com um desenvolvimento e vocabulário em desuso, comecemos por conhecer a história relatada no poema para contornar eventuais dificuldades de leitura.

Na natureza, passava da noite a metade e a tranquilidade instalava-se. O lobo dormia, a rã rouquejava, esvoaçavam insectos e o mocho piava. O vento suave (favónio) amainara, era a hora de saciar o amor. O sussurro do rio desfazia a tristeza da noite sombria.

Um namorado trocado, sózinho, aos penedos clamava dos seus desgostos. Alagado em suores frios e da vida desiludido, alto pedia o fim ao destino: De que me aproveita / Viver desta sorte? / A vida é aos tristes / Mais agra*, que a morte. 

E vem agora a história do porquê de tão grande desgosto: Feliza, depois de promessas de fidelidade, trocou o poeta (Elmano) por um Vaqueiro que agora a acaricia, a beija, e ela retribui, e mais: Cedendo aos assaltos / De impuras carícias, / Também lhe franqueias / Vedadas delícias! 

Percebemos com facilidade o que acontece e o poeta com as Vedadas delícias eufemisticamente refere.

No auge do desespero pede o enamorado aos céus que o vinguem, e desmaia. Os ecos destes clamores chegaram aos deuses e estes, condoídos, levaram-nos à morada do deus Amor. Encontraram-no que dormia risonho, no regresso de uma aventura em que causara a humanos, sofrimentos de amor. Afastados aguardavam e vigiavam: desdéns, esperanças, sorrisos, prantos e mordazes suspeitas (afinal a panóplia de sentimentos contraditórios que amor inspira). Esperam que o deus Cupido com os clamores de Elmano acorde, mas o deus não desperta. É então que esses ecos dos clamores do desdenhado amante:

… pasmados 

O corpo lhe abalam, 

E apenas o acordam,

D’esta arte lhe falam: 

 

— É crível, Menino, 

Que durmas em paz 

Ao som de um gemido, 

Que penhas desfaz?

 

— Deixai-me, importunos, 

(Lhes brada o Travesso) 

Que ao som de suspiros 

É que eu adormeço.

 

 

Temos, pois, como lição nesta história de desespero de amor (q.b.) que resumi, como Amor só sossega quando faz suspirar, e Bocage conta, com o encanto da poesia anacreontica, usando a elegância e mestria versificatória que são suas. 

Segue o poema em ortografia modernizada.

 

 

A Noite 

 

A deusa, que esmalta 

De estrelas o céu, 

Ja tinha dobrado 

Metade do véu; 

 

O fero Inimigo 

Da ovelha medrosa 

Jazia ululando 

Na serra fragosa: 

 

A rã rouquejava 

No túrbido lago, 

Carpia entre as moitas 

O mocho aziago: 

 

De alados insectos 

Nos ares vagava 

Caterva lustrosa, 

Que as sombras doirava:

 

Os lassos favónios 

Dormiam nas flores, 

Enquanto velavam

Famintos amores: 

 

Susurro aprazível, 

Que o Tejo fazia, 

Coarctava a tristeza 

Da noite sombria. 

 

Então, solitário, 

Seu mal, seus segredos 

O lânguido Elmano 

Contava aos penedos. 

 

De gélidas gotas 

O rosto orvalhado, 

De zelos mordido, 

Da vida enjoado, 

 

Destinos! (clamava) 

Que assim retardais 

O termo infalível, 

Que imploram meus ais. 

 

De que me aproveita 

Viver desta sorte? 

A vida é aos tristes 

Mais agra(*), que a morte. 

 

Feliza deixou-me, 

Fugiu-me a perjura, 

Depois de votar-me 

Perene ternura: 

 

Fugiu-me, deixou me 

Curtindo a ansiedade, 

Que geram, que nutrem 

Ciúme, e saudade: 

 

Entre estes dois males 

Meu peito se sente, 

Qual entre dois lobos 

Cordeiro inocente. 

 

Ah céus! Tu, minha alma 

Tu, idolo meu, 

Manchando teus olhos 

No torpe Silêu! *

 

A mão, que no peito 

Me abriu funda chaga, 

Nojoso vaqueiro 

Te beija, te afaga! 

 

C’os bracos macios, 

Apoio das graças, 

O colo rugoso 

Lhe amimas, lhe enlaças 

 

Consentes-lhe, ingrata, 

Que libe, que empeste 

Nos teus doces lábios 

O néctar celeste! 

 

Cedendo aos assaltos 

De impuras carícias, 

Também lhe franqueias 

Vedadas delícias! 

 

Ah! Vinguem-me, estorvem 

Seus júbilos ternos 

Com raios, com fúrias 

Os céus, e os infernos. 

 

Aqui os sentidos 

Nas asas de um ai 

Lhe escapam, lhe fogem, 

E o mísero cai. 

 

Nas grutas os ecos 

Ao grito espertaram, 

E, dele doídos, 

A Amor, o levaram. 

 

Voando ao fragrante 

Vergel de Cythera, 

Por ti frequentado, 

Louçã Primavera, 

 

Encontram Cupido, 

Que há pouco voltara 

De empresa brilhante, 

Que ufano acabara. 

 

Folgavam do numen 

As carne mimosas

Em mole alcatifa 

De goivos, e rosas; 

 

Dormia, e na ideia 

Morfeo Ihe pintava 

Sanguíneos triunfos, 

Que o mundo chorava; 

 

Não longe, em silêncio, 

Pousavam encantos, 

Desdens, esperanças, 

Sorrisos, e prantos; 

 

Mordazes suspeitas, 

Que o deus vigiavam, 

Raivando, em si mesmas: 

Os dentes cevavam; 

 

Do tronco de um mirto 

Pendia o luzente 

Carcaz, salpicado 

De sangue inda quente; 

 

Nas pontas ervadas 

Dos áureos arpões 

Ainda arquejavam

Fiéis corações. 

 

A gárrula turma 

Rodeia cupido, 

Repete, anelante, 

De Elmano o gemido. 

 

Eis fremem os ventos, 

Eis aves alerta, 

Convulsos os montes, 

E Amor não desperta. 

 

Os Ecos, pasmados 

O corpo lhe abalam, 

E apenas o acordam,

D’esta arte lhe falam: 

 

— É crível, Menino, 

Que durmas em paz 

Ao som de um gemido, 

Que penhas desfaz?

 

— Deixai-me, importunos, 

(Lhes brada o Travesso) 

Que ao som de suspiros 

É que eu adormeço.

 

*

agra — amarga

Silêu — por facínora (Cf. mitologia os trabalhos de Heracles exigidos por Onfala).

 

Porque a vida são dois dias, e traições de amor que as leve o vento, passemos a algumas Cançonetas Báquicas para a Mesa escritas também por Bocage. Fazem elas a associação entre o amor e o vinho:

…

Amor, oh Baco, 

Tem por costume 

Juntar seu lume 

Com teu ardor. 

…

 

Inocentes brincadeiras poéticas, agora sim no espírito padrão da poesia anacreontica amplamente cultivada pelos poetas neo-clássicos do século XVIII português, nestes poemas elogiam-se os prazeres de beber vinho, e de caminho elucidam-nos da vantagem da sua associação ao amor:

…

Ambos se adorem 

Com igualdade, 

Tenha a vontade 

Mais de um Senhor. 

   Baco triunfe,

   Triunfe Amor.

 

Este Ambos se adorem / Com igualdade, / Tenha a vontade / Mais de um Senhor. com que a terceira canção acaba, é o resumo da postura edonista que esta poesia advoga como essencial numa filosofia de vida.

Eis as canções:

 

 

I

 

Amor é fonte 

De riso, e graça, 

Porém não passa 

De um só sabor: 

   O doce Baco 

   Tempera Amor. 

 

 

II

Baco entre o coro 

Das lindas Graças 

Exaure as taças 

De almo elixir: 

   Dum deus o exemplo 

   Cumpre seguir. 

 

 

III

Descuida-se Jove 

Na olímpica mesa 

Da suma grandeza, 

Do eterno poder; 

 

Consente um sorriso 

Nos lábios, que molha, 

E humano se antolha 

No gesto, no ser; 

 

A monotonia 

Dos bens, em que impera,

O néctar lhe altera, 

Lhe faz esquecer: 

 

O néctar, que adoça 

Mortais azedumes, 

Até entre os numes 

Matiza o prazer. 

   Se Jupiter. bebe, 

   Não hei-de eu beber? 

 

De Baco opulento 

Compõe-se o tesoiro, 

De pérolas, de oiro, 

Topázio, rubi. 

 

Do néctar sentindo 

Nas fauces o travo,

Misérrimo escravo 

Desdenha o Sufi. 

 

Lustrosas quimeras 

Lhe vagam na mente, 

Do mundo é contente, 

Contente de si. 

 

Amigos, libemos 

O pico sagrado, 

Tão mal condenado 

Na seita de Ali. 

 

Teimosos cuidados, 

Caterva importuna, 

Visões da fortuna, 

Deixai-nos, fugi.

   O nosso universo 

   Não passa daqui. 

 

Em torno a Baco 

Sussurra, adeja, 

Ri-se, graceja, 

Cintila Amor. 

 

Ao deus Idálio*

Baco é preciso, 

Dobra-lhe o riso, 

Lhe acende a cor. 

 

Amor, oh Baco, 

Tem por costume 

Juntar seu lume 

Com teu ardor. 

 

Ambos se adorem 

Com igualdade, 

Tenha a vontade 

Mais de um Senhor. 

   Baco triunfe,

   Triunfe Amor.

 

* deus Idálio — deus do Amor. Idálio, cidade de Chipre onde se praticou o culto a Afrodite, deusa do amor, e mãe de Eros.

Poemas transcrito de Rimas de Manoel Maria Barbosa du Bocage, Tomo I, segunda edição corrigida e aumentada, na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1800.

Modernizei a ortografia.

Carlos Mendonça Lopes

Abre o artigo a imagem do pormenor de uma pintura atribuída a Charles André van Loo (1705-1765), Mercúrio e Argus.

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O sonho, pintura de Picasso, para um soneto – adivinha de Bocage

09 Domingo Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Bocage, Picasso

Pablo Picasso - O sonhoEm momentos de desenfado dá-me para a brejeirice. Fujam os leitores para quem a vida só vale se for sempre a sério.

Hoje cá vem um soneto de Bocage (1765-1805) em forma de adivinha, ou uma adivinha em forma de soneto, como preferirem, e cuja solução se encontra na cabeça da mulher pintada por Picasso (1881-1973) mostrada enquanto se entrega a prazeres solitários.

 

 

Soneto XIII

 

É pau, e rei dos paus, não marmelleiro,

Bem que duas gamboas lhe lombrigo;

Dá leite, sem ser arvore de figo,

Da glande o fructo tem, sem ser sobreiro:

 

Verga, e não quebra, como o zambujeiro;

Occo, qual sabugueiro tem o umbigo;

Brando às vezes, qual vime, está comsigo;

Outras vezes mais rijo que um pinheiro:

 

Á roda da raiz produz carqueja:

Todo o resto do tronco é calvo e nú;

Nem cedro, nem pau-sancto mais negreja!

 

Para carvalho ser falta-lhe um u;

Adivinhem agora que pau seja,

E quem adivinhar metta-o no cu.

 

Nota talvez desnecessária

O verso 12 só faz sentido se tivermos presente que no século XVIII tanto o som u como o som v se escreviam de igual forma com u.

 

Transcrevi este Soneto XIII da 1ª edição das Poesias Eroticas, Burlescas e Satyricas de M. M. de Barbosa du Bocage, respeitando integralmente a sua ortografia.

Trata-se de uma edição clandestina de 1854, feita em Lisboa, e datada de Bruxellas — MDCCCLXL, a qual é dos mais estimados exemplares da minha biblioteca.

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O poeta salvo pelo amor – 6 sonetos de Bocage

17 Domingo Jun 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Bocage, Francois Boucher

De Bocage, contemporâneo de Goethe de quem deixei antes o livro do amor, chegam hoje alguns sonetos escritos na graça peculiar da poesia arcádica, dando conta dos transtornos da paixão.
Sonetos onde a música do verso e a exemplaridade da construção estrófica se sobrepõem à estranheza para os nosso ouvidos do século XXI, desta particular forma de dizer.

De suspirar em vão já fatigado, o poeta sonha que a morte o visita. Mas não será aí o fim do poeta.

Ao ver a morte erguer Curva foice no punho descarnado, enquanto lhe dizia:

“Eu venho terminar tua agonia: / Morre, não penes mais, ó desgraçado.”

surge o deus Amor, e imperioso ordena à Morte:

“Emprega noutro objecto os teus rigores,
Que esta vida infeliz está guardada
Para vitima só de meus furores.”

Para aqui chegarmos, vamos primeiro acompanhar o poeta na descoberta do amor,

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

e no desejo da sua consumação:

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.

(e já noutro dia, com o poema de Parny, vimos o que nesta poesia do século XVIII significa Destas copadas árvores o abrigo.)

Enquanto espera, consome-se nas ânsias loucas da paixão:

Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido,
De ti só trago cheia, ó Jónia, a mente:
Do mais e de mim mesmo ando esquecido.

Leremos do sofrimento sem esperança a que o amor conduz, fazendo o sofredor apenas desejar a morte:

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio, com que está minha alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.

para que no final, salvo dela pelo deus Amor, possamos participar da ansiedade com que aguarda a consumação sexual da sua paixão.

Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz: longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores
Hei-de, enfim, possuir; porém segredo.

Durante a espera pede segredo aos ventos, Zéfiros, para que não levem a Júpiter o eco dos frouxos ais, brandos queixumes ouvidos durante o sexo, pois Júpiter, com a sua reputação de come tudo, irá querer reservar para si o banquete do amor de Nise:

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Nao leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o Pai dos numes:

Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

Nos sonetos temos Marília, Nise, Jónia, nomes convencionais para uma mesma ou varias paixões. É irrelevante. São poesias desligadas de destinatário, onde apenas a forma de dar corpo ao sentimento conta. E esse, no século XVIII como agora, é o mesmo. Tal como é a mesma, a forma de o viver. Apenas como o exprimimos mudou.

Vamos então aos poemas que já é tempo.

I

Ó tranças de que Amor prisões me tece,
Ó mãos de neve, que regeis meu Fado!
Ó tesouro! Ó mistério! Ó par sagrado,
Onde o menino alígero adormece!

Ó ledos olhos, cuja luz parece
Ténue raio do Sol! Ó gesto amado,
De rosas e açucenas semeado,
Por quem morrera esta alma, se pudesse!

Ó lábios, cujo riso a paz me tira,
E por cujos dulcíssimos favores
Talvez o próprio Júpiter suspira!

Ó perfeições! Ó dons encantadores!
De quem sois? Sois de Vénus? É mentira:
Sois de Marília, sois dos meus Amores.

II

Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus húmidos vapores,
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste.

Varrendo os ares o subtil Nordeste,
Os torna azuis: as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste.

Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo.

Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!

III

Enquanto o Sábio arreiga o pensamento
Nos fenómenos teus, ó Natureza,
Ou solta árduo problema, ou sobre a mesa
Volve o subtil geométrico instrumento;

Enquanto alçando a mais o entendimento,
Estuda os vastos céus, e com certeza
Reconhece dos astros a grandeza,
A distância, o lugar, e o movimento;

Enquanto o Sábio, enfim, mas sabiamente
Se remonta nas asas do sentido
À corte do Senhor omnipotente;

Eu louco, eu cego, eu mísero, eu perdido,
De ti só trago cheia, ó Jónia, a mente:
Do mais e de mim mesmo ando esquecido.

IV

Já sobre o coche de ébano estrelado
Deu meio giro a Noite escura e feia:
Que profundo silêncio me rodeia
Neste deserto bosque, à luz vedado!

Jaz entre as folhas Zéfiro abafado,
O Tejo adormeceu na lisa areia;
Nem o mavioso rouxinol gorjeia,
Nem pia o mocho, às trevas costumado.

Só eu velo, só eu, pedindo à Sorte
Que o fio, com que está minha alma presa
À vil matéria lânguida, me corte.

Consola-me este horror, esta tristeza,
Porque a meus olhos se afigura a Morte
No silêncio total da Natureza.

V

De suspirar em vão já fatigado,
Dando tréguas a meus males, eu dormia;
Eis que junto de mim sonhei que via
Da Morte o gesto lívido e mirrado.

Curva foice no punho descarnado
Sustentava a cruel e me dizia:
“Eu venho terminar tua agonia:
Morre, não penes mais, ó desgraçado.”

Quis ferir-me, e de Amor foi atalhada,
Que armado de cruentos passadores
Aparece, e lhe diz com voz irada:

“Emprega noutro objecto os teus rigores,
Que esta vida infeliz está guardada
Para vitima só de meus furores.”

VI

Grato silêncio, trémulo arvoredo,
Sombra propícia aos crimes e aos amores,
Hoje serei feliz: longe, temores,
Longe, fantasmas, ilusões do medo.

Sabei, amigos Zéfiros, que cedo
Entre os braços de Nise, entre estas flores,
Furtivas glórias, tácitos favores
Hei-de, enfim, possuir; porém segredo.

Nas asas frouxos ais, brandos queixumes
Nao leveis, não façais isto patente,
Que nem quero que o saiba o Pai dos numes:

Cale-se o caso a Jove omnipotente,
Porque se ele o souber, terá ciúmes,
Vibrará contra mim seu raio ardente.

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Dois sonetos de Bocage sobre o amor

05 Quarta-feira Out 2011

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada, Poesia Antiga

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Bocage

Lendário é o nome do poeta, menos conhecida é a sua poesia, sendo pesquisa de alfarrabista procurar a sua obra.

Arquivo no blog dois sonetos de Bocage (1765-1805) sobre o amor físico:

Um, remate da paixão:

Mais doce é ver-te de meus ais vencida, / Dar-me em teus brandos olhos desmaiados / Morte, morte de amor, melhor que a vida!

A Anália

Se é doce no recente, ameno estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
De entre os aromas de pomar sombrio;

Se é doce mares, céus, ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados,

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida!

Outro, desta vez gozo imaginado:

Que pode contra Amor a tirania, / Se as delicias que a vista não consente, / Consegue a temerária fantasia?

Debalde um véu cioso, ó Nize, encobre
Intactas perfeições ao meu desejo;
Tudo o que escondes, tudo o que não vejo
A mente audaz e alígera descobre.

Por mais e mais que as sentinelas dobre
A sisuda Modéstia, o cauto Pejo,
Teus braços logro, teus encantos beijo,
Por milagre da ideia afouta e nobre.

Inda que prémio teu rigor me negue,
Do pensamento a indómita porfia
Ao mais doce prazer me deixa entregue.

Que pode contra Amor a tirania,
Se as delicias que a vista não consente,
Consegue a temerária fantasia?

 

Nota sobre a fotografia:

Desconheço o autor da foto que encima o artigo. Encontrei-a num desses blogs que arquivam fotografias ao gosto dos seus promotores, sem nenhuma indicação de autoria. É pena. A foto convida-nos a adivinhar a perfeição do rosto a partir do desenho da boca, encaminhando a imaginação pela harmonica curvatura da cabeça. Escolhi-a a pensar com o poeta: Debalde um véu cioso, ó Nize, encobre / Intactas perfeições ao meu desejo;

Se é verdade que nas coisas de sexo importam sobretudo os lugares onde entramos e renascemos de prazer, o rosto dá uma iluminação inefável a cada morte de amor, melhor que a vida!

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Eis Bocage

28 Domingo Fev 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Bocage

Eis Bocage

 

Magro, de olhos azuis, carão moreno.

Bem servido de pés, meão de altura

Triste de facha, o mesmo de figura.

Nariz alto no meio e não pequeno,

 

 

Incapaz de assistir num só terreno;

Mais propenso ao furor do que à terura;

Bebendo em niveas mãos por taça escura,

De zelos infernais letal veneno;

 

 

Devoto incensador de mil deidades

(Digo de moças mil) num só momento,

E somente no altar amando os frades,

 

 

Eis Bocage, em quem luz algum talento.

Sairam dele mesmo estas verdades

Num dia em que se achou mais pachorrento.

 

O homem é hoje talvez mais conhecido que o poeta. Dele apenas proliferam as edições da Poesia Erótica Burlesca e Satírica, permanecendo o restante da obra no quase esquecimento. Uma nova edição da obra completa encontra-se em curso de publicação, da responsabilidade de Daniel Pires, nas Edições Caixotim.

Embora as cartas de Olinda e Alzira sejam do melhor da poesia portuguesa, sobretudo a Epístola VI, há mais poesia de Bocage para além da erótica e satírica, e não é de somenos. O conjunto de sonetos e epistolas escritos no cárcere são de uma pungência difícil de igual, qual seja este:

Aqui onde arquejando estou curvado

À lei, pesada lei, que me agrilhôa,

De lugubres ideias se povoa

Meu triste pensamento horrorizado;

 

E dando conta do peso do isolamento em que se encontra continua, terminando com:

 

Só me cercam fantasmas da tristeza.

Que silencio! Que horror! Que escuridade!

Parece muda, ou morta a natureza.

 

Bocage, como outros poetas maiores de setecentos e oitocentos, levados pela luta entre a razão e a crença, confrontaram-se com Deus na sua poesia. Estou a lembrar-me de Guerra Junqueiro e Gomes Leal entre os maiores. Chegados ao fim da vida protagonizaram estrondosos arrependimentos e Bocage não foi excepção acabando, quando sentiu próximo o fim, a gritar:

Deus! Ó Deus!…quando a morte a luz me roube,

Ganhe um momento o que perderam anos,

Saiba morrer o que viver não soube.

 

Na consciência da finitude exclamou a crença na eternidade:

 

Já Bocage não sou!… À cova escura

Meu estro vai parar desfeito em vento…

Eu aos céus ultrajei! O meu tormento

Leve me torne sempre a terra dura.

 

 

Conheço agora já quam vã figura

Em prosa ou verso fez meu louco intento.

Musa!… tivera algum merecimento

Se um raio da razão seguisse pura.

 

 

Eu me arrependo! A língua quase fria

Brade em alto pregão à mocidade,

Que atrás do som fantástico corria:

 

 

Outro Aretino fui… A santidade

Manchei!… Oh! Se me creste, gente ímpia,

Rasga meus versos, crê na eternidade!

 

Felizmente podemos crer na eternidade e conviver com os versos de Bocage. E atrever-me-ia a dizer que foi mais que Aretino, de quem a humanidade conserva apenas os 26 sonetos luxuriosos, deixando no quase esquecimento o resto que também criou.

Conta a tradição sobre este último soneto Já Bocage não sou!… À cova escura, referida por Rebelo da Silva no estudo biográfico e literário que acompanha a edição das Poesias de Bocage preparada por Inocêncio e editada em 1853, que o poeta“dictou ainda o ultimo soneto, que o morgado de Assentis colheu dos seus lábios trémulos, e escreveu todo de seu punho. O derradeiro suspiro foi portanto um grito de arrependimento”.

 

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