O homem desde que se pensou, sonhou a mulher, e exprimiu-o de forma artística. Nesta busca pela essência do feminino imaginou-a divina, e em Vénus cristalizou poder, beleza e prazer do sexo, origem e destino da humanidade toda, ou como escreveu aos 22 anos num Hino a Vénus o nosso poeta de hoje, Almeida Garrett (1799-1854):
“Tudo o que amável / Encerra o mundo,
Vem do teu espírito / Doce e fecundo.”
A Garrett ofereceu a vida bastas oportunidades de experiência, e dela tivemos esse poema maior da nossa literatura Aquela Noite, incluído emFolhas Caídas,livro único de obsessão carnal, sem rodeios de complicações madrigalescas, nem mantos de impostura … como o define José Gomes-Ferreira numa notável introdução à edição comemorativa do centenário da publicação do livro, e onde o Poeta-com-remorsos-de-amar dá conta de uma certa noite que:
“Não deixou outra memória / Dessa noite de loucura, /
De sedução, de prazer… / Que os segredos da ventura /
A vida, a nossa vida, e a outra, a que os media relatam, têm habitualmente muito pouco a ver entre si.
A poesia de Frank O’Hara (1926-1966) dá frequentemente conta dessa evidência, e no poema que hoje escolhi, eleva-a a caricatura no relato entre a importância do desmaio de Lana Turner e o que o preocupa.
Poema
Lana Turner desmaiou! Eu deambulava e de repente começou a chover e a nevar e tu disseste que caía granizo mas o granizo acerta na cabeça com força por isso estava a nevar e a chover e eu tinha tanta pressa ia ao teu encontro mas o tráfego comportava-se exactamente como o céu e subitamente vi um cabeçalho LANA TURNER DESMAIOU! não há neve em Hollywood não há chuva na California eu estive numa data de festas e portei-me de forma desgraçada mas nunca tive um desmaio oh Lana Turner amamos-te levanta-te
Tradução de José Alberto Oliveira
Poem
Lana Turner has collapsed! I was trotting along and suddenly it started raining and snowing and you said it was hailing but hailing hits you on the head hard so it was really snowing and raining and I was in such a hurry to meet you but the traffic was acting exactly like the sky and suddenly I see a headline LANA TURNER HAS COLLAPSED! there is no snow in Hollywood there is no rain in California I have been to lots of parties and acted perfectly disgraceful but I never actually collapsed oh Lana Turner we love you get up
1962
Para os menos familiarizados com o cinema clássico de Hollywood, Lana Turner (1921-1995) foi uma das mais famosas louras platinadas produzidas pelo cinema e arquétipo da mulher fatal ao protagonizar o filme O carteiro toca sempre duas vezes (1946) (foto de abertura). Noutro registo, o do melodrama, foi a vedeta de Imitação da vida (1959), verdadeira máquina de fazer chorar, para os não apreciadores. Por outro lado, para os adolescestes amantes do filme de aventuras, Lana Turner foi a terrível Milady de Winter na história de Os Três Mosqueteiros filmado em 1948 por George Sidney (1916-2002), com o inesquecível D’Artagnan de Gene Kelly (1912-1996) e a sua dança nas lutas de espada.
Faz parte da glória dos anos clássicos do cinema de Hollywood o acervo de fotografia a preto e branco, onde a mitificação das actrizes e actores da época se concretizou, e comummente referido como fotografia de glamour. Chegada a cor à fotografia, o esplendor de cores puras na vivacidade e brilho do papel deu lugar a outro tipo de mitificação, não já no etéreo e difuso de sombras e clarões, mas na precisão das formas a que o jogo do colorido acrescentava impacto.
Reúno um pequeno grupo de fotos da época, anos 50/60 com algumas, porventura, menos conhecidas fotos.
Judy Garland
Ava Gardner
Bette Davis
Audrey Hepburn
Kim Novak
Termino com o espectáculo da herança biológica em mãe e filha:Ingrid Bergman e Isabella Rossellini
Ingrid Bergman
Isabella Rossellini
E como já estamos na Europa, onde Deus criou a mulher, acrescento em post scriptum Brigitte Bardot,
A cidade transformou-se e a avenida da Liberdade já não é o que era quando Fernando Assis Pacheco (1937-1995) escreveu o soneto As putas da Avenida.
Hoje percorre a avenida o luxo da alta costura e das marcas com que o dinheiro se perfuma, escondendo os cheiros da sua origem. Mas as artérias não se libertam tão facilmente da vida que durante anos a elas se agarrou e, avançada a noite, regressam os ecos deste passado contado com mão de mestre na concisão do soneto.
AS PUTAS DA AVENIDA
Eu vi gelar as putas da Avenida ao griso da Janeiro e tive pena do que elas chamam em jargão a vida com um requebro triste de açucena
vi-as às duas e às três falando como se fala antes de entrar em cena o gesto já compondo a voz de mando do director fatal que lhes ordena
essa pose de flor recém-cortada que para as mais batidas não é nada senão fingirem lírios da Lorena
mas a todas o griso ia aturdindo e eu que do trabalho vinha vindo calçando as luvas senti tanta pena
Este soneto de Fernando Assis Pacheco encontra-se no livro Variações em Sousa de 1987, republicado em A Musa Irregular, 3ªedição com as correcções do autor, por Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.
A mais antiga profissão do mundo tem sido assunto poético, de que o século XIX deixou numerosos exemplos, muitos deles de um moralismo repelente. As referências poéticas mais antigas à prostituição feminina são raras. Este poema de António Beccadelli (1394-1471) dito o Panormita por ter nascido em Palermo na Sicília, conta-nos, pela vós da protagonista, do orgulho de uma profissão onde os juízos morais estão ausentes: apenas a ênfase no gosto de sexo por dinheiro se nota. Leia-se então esteEpitáfio de Niquita de Flandres, meretriz egrégia
Se te demoras lendo estes gravados versos, conhecerás a croia que é sepulta aqui. Da pátria em que nasci, por vãs promessas falsas, raptada fui, donzela, em tenra idade, um dia. A Flandres me gerou, andei o mundo inteiro até estabelecer-me nesta Siena plácida. Meu nome, e conhecido, era Niquita. Fui a estrela do bordel, entre as demais primeira. Fui bela e fui graciosa, e perfumada, e tinha mais alvo do que a neve o deslumbrante corpo. Taís nenhuma em Siena melhor que eu movia em sábios movimentos as vibrantes ancas. Os homens minha língua em beijos exauria dados ainda depois de consumado o gozo. Coberto era o meu leito de uma colcha vasta, e a minha mão aos nervos percutia branda. Para lavar-me tinha uma bacia sempre, e os flancos me lambia cadelinha mansa. Uma noite, assaltou-me um bando de rapazes, que me teve cem vezes, sem me saciarem. Fui doce e amena, e a muitos minha arte era grata. Mas mais doce me foi o quanto me pagavam.
Tradução de Jorge de Sena.
Entre os grandes mestres da pintura ocidental antiga, foi o nosso já conhecido Lucas Cranach o Velho (1472-1553), quem deixou algumas pinturas figurando a prostituição. Uma abre o artigo, com outras o fecho.
Termino com o que é um caso raro na pintura ocidental, a figuração provável da prostituição maculina.
… e em sua incalculável imperfeição Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
Infatigável cantor da mulher, Vinicius de Moraes (1913-1980) dá-nos neste Receita de Mulher um retrato ideal do feminino, onde alguma ironia perpassa a espaços.
Simultaneamente retrato, desejo e conselhos, à medida que lemos o poema somos enviados para Arte de Amar de Ovídio, não por qualquer imitação, mas por uma semelhante qualidade de inspiração sobre o ser e o fazer do amor, onde certa afinidade de assunto se revela.
Receita de mulher
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança,
qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize
elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso
que súbito tenha-se a
impressão de ver uma
garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só
encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas
que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso,
é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que
umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas,
e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras:
uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
O poema Receita de Mulher foi publicado em plaquette em 1957.
Deixo AQUI a ligação para a sua edição original disponibilizada on-line por Brasiliana USP, biblioteca digital mantida pela Universidade de S. Paulo no Brasil.
Nota
A fotografia é de Ruth Bernhard (1905-2006), autora de algumas das mais belas fotos de nus femininos da história da fotografia. Viveu 101 anos. A foto foi tirada provavelmente em 1962.
Os 4 posters que seguem têm uma história que vou contar de forma telegráfica e púdica.
Recebi de uma leitora do blog correio com o poema POSSE que transcrevo, e o convite para um encontro.
POSSE
Vem cá! Assim, verticalmente!
Achega-te… Docemente…
Vou olhar-te… E, no teu olhar, colher
Promessas do que quero prometer,
Até à síncope do amor na alma!
Colemos as mão, palma a palma!
A minha boca na tua, sem beijo…
Desejo-te, até o desejo
Se queixar que dói…
E sou tua, assim, como nenhuma foi!
Dei comigo a sonhar com a anónima escritora, daí um primeiro poster.
Muni-me de Viagra e parti para o encontro. Ao chegar tenho a imagem que se pode depreender deste 2º poster.
Avançados nos preliminares, vinha preparado para o prometido Desejo-te, até o desejo / Se queixar que dói…mas o Viagra é um problema sério para as mulheres de meia idade ou nem tanto. A certa altura, a fuga foi inevitável, ainda que feliz e satisfeita como este 3º poster elucida.
O blogger depois do encontro que se relata ficou no estado que segue, visto de forma brilhante por Dave Murray
Termino com o escritor, de costas para o mundo, a inventar esta história. Reparem nos coraçõezinhos a subir dos prédios imaginados pelo escritor. Tão q’rido não é?
Nota séria
O poema é de Leonor de Almeida (1915) e foi publicado no livro Caminhos Frios em 1947.
Da poetisa pouco se sabe no passado recente, a não ser que publicou pelo menos quatro livros de poesia: além do já referido Caminhos Frios (1947), Luz do Fim (1950), Rapto (1953), Terceira Asa (1960), onde o erótico ressuma. Terá vivido longamente na Dinamarca, e daí a escolha dos posters.
Os posters com figuras femininas são de Mads Berg (Copenhague). O primeiro poster do artigo é de autor não identificado. O poster do escritor é de Borja Bonaque
Lendário é o nome do poeta, menos conhecida é a sua poesia, sendo pesquisa de alfarrabista procurar a sua obra.
Arquivo no blog dois sonetos de Bocage (1765-1805) sobre o amor físico:
Um, remate da paixão:
Mais doce é ver-te de meus ais vencida, / Dar-me em teus brandos olhos desmaiados / Morte, morte de amor, melhor que a vida!
A Anália
Se é doce no recente, ameno estio Ver toucar-se a manhã de etéreas flores, E, lambendo as areias os verdores, Mole e queixoso deslizar-se o rio;
Se é doce no inocente desafio Ouvirem-se os voláteis amadores, Seus versos modulando e seus ardores De entre os aromas de pomar sombrio;
Se é doce mares, céus, ver anilados Pela quadra gentil, de Amor querida, Que esperta os corações, floreia os prados,
Mais doce é ver-te de meus ais vencida, Dar-me em teus brandos olhos desmaiados Morte, morte de amor, melhor que a vida!
Outro, desta vez gozo imaginado:
Que pode contra Amor a tirania, / Se as delicias que a vista não consente, / Consegue a temerária fantasia?
Debalde um véu cioso, ó Nize, encobre Intactas perfeições ao meu desejo; Tudo o que escondes, tudo o que não vejo A mente audaz e alígera descobre.
Por mais e mais que as sentinelas dobre A sisuda Modéstia, o cauto Pejo, Teus braços logro, teus encantos beijo, Por milagre da ideia afouta e nobre.
Inda que prémio teu rigor me negue, Do pensamento a indómita porfia Ao mais doce prazer me deixa entregue.
Que pode contra Amor a tirania, Se as delicias que a vista não consente, Consegue a temerária fantasia?
Nota sobre a fotografia:
Desconheço o autor da foto que encima o artigo. Encontrei-a num desses blogs que arquivam fotografias ao gosto dos seus promotores, sem nenhuma indicação de autoria. É pena. A foto convida-nos a adivinhar a perfeição do rosto a partir do desenho da boca, encaminhando a imaginação pela harmonica curvatura da cabeça. Escolhi-a a pensar com o poeta: Debalde um véu cioso, ó Nize, encobre / Intactas perfeições ao meu desejo;
Se é verdade que nas coisas de sexo importam sobretudo os lugares onde entramos e renascemos de prazer, o rosto dá uma iluminação inefável a cadamorte de amor, melhor que a vida!
Publicado pela primeira vez em PESSOA POR CONHECER, Carta da Corcunda para o Serralheiro é um texto pungente e na elegância aterradora da sua sinceridade, aperta o coração ouvi-lo lido por Maria do Céu Guerra.
Hoje tenho a honra e o enorme privilégio de poder facultar aos leitores do blog uma gravação dessa leitura.
A carta da Corcunda para o Serralheiro
Senhor António:
O senhor nunca ha de ver esta carta. Nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o nao saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto á janella quando o senhor passa para a officina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarella, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquella rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja d’ella mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir á rua e fallar comsigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecel-o de fallar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguem que gostasse de mim como se gosta das pessoas que teem o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e tambem tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguem.
Eu gostava de morrer depois de lhe fallar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe fallar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quiz mal a ninguem. Alem d’isso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove annos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta edade, e doente, e sem ninguem que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me doe, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter – e agora menos que nem vida tenho – gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vae ler isto, e mesmo que lesse nem sabia que era comsigo e nao ligava importancia em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só á janella, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguem que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a familia, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos ás avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a officina e um gato se pegou á pancada com um cão aqui defronte da janella, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim para a janella, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a unica vez que o senhor esteve a sós commigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei á espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar á altura da janella.. passo todo o dia a ver illustrações e revistas de modas que emprestam á minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquella saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu ás vezes me envergonha de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguem julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distrahida.
Ainda me lembro d’aquelle dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o proprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ella mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi porisso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre á janella, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de rheumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralytica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me acceitar que o senhor não imagina. Eu ás vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janella abaixo, mas eu que figura teria a cahir da janella? Até quem me visse cahir ria e a janella é tam baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas á vela e a corcunda a sahir pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não como tinha vontade de ser.
(…)
– e emfim porque lhe estou eu a escrever se lhe não vou mandar esta carta? [texto não lido]
O senhor que anda de um lado para o outro não sabr qual é o peso de a gente não ser ninguem. Eu estou á janella todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gosar e fallar a esta e áquella, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui á janella por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saude o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornaes o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e teem baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos medicos, e outros partem para as suas casas aqui e alli, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e ha artigos assignados por outros e retratos e annuncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isso o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janella de limpar o signal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da agua.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de de vez em quando me dizer adeus na rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vae se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe fallou uma vez, que lhe fallou torto porque o senhor se metteu com ella na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque metter-se alguem comnosco é a gente ser mulher, e eu não sou mulher nem homem, porque ninguem acha que eu sou nada a não ser uma especie de gente que está para aqui a encher o vão da janella e a aborrecer tudo que me vê, valha me Deus.
O Antonio (é o mesmo nome que o seu, mas que differença!) o Antonio da officina de automoveis disse uma vez a meu pae que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não ha direito a viver, que quem não trabalha não come e não ha direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar á janella com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralytica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir á vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor Antonio, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Ahi tem e estou a chorar.
Maria José
Este impressionante texto que Pessoa, ao contrário do que habitualmente lhe acontecia, completou e dactilografou é, se bem que inesperado, o auto-retrato mais acabado – e terrivel! – dessa “grande alma” que se sentia “ninguém”., são palavras da editora do texto, Teresa Rita Lopes, que um pouco antes escrevia:
A comiseração de Pessoa por si próprio vai atingir o seu mais alto grau e a sua expressão mais despersonalizada no monólogo duma Maria José, que incarna de forma extrema, metaforicamente, o ser aleijado, aborto do destino, que se vê ser na Carta da Corcunda para o Serralheiro.
Maria José é a voz feminina que, como tal, mais longamente se faz ouvir no universo pessoano. É a metáfora de uma alma “à janela”, como a do monólogo em situação incluído no Livro do Desassossego mas que é muito mais que a página de um diário:
Se a nossa vida fosse um eterno estar à janela, se assim ficassemos, como um fumo parado, sempre, tendo sempre o mesmo momento de crepusculo dolorindo a curva dos montes. Se assim ficassemos para além de sempre! (LD, 1,p.312, Atica 1982)
E acrescenta, mais longe, evocando como se o esquecesse um tu ausente:
Dói-me a alma… Um traço lento de fumo ergue-se e dispersa-se lá longe… um tédio inquieto faz-me não pensar mais em ti…
A voz feminina da Carta da Corcunda para o Serralheiro, assim mesmo intitulada, atinge o ponto máximo nessa escala da despersonalização que Pessoa percorria em todos os sentidos, estacionando em todos os degraus. Incarna esse “ninguém” que, na sua própria pessoa, Pessoa sofria sentir-se ser e que mima em Marcos Alves, Vicente Guedes (o da vida nulla), Bernado Soares (que todos os dias se proclama “ninguém”), Frederick Wyatt (o “coitadinho”), Barão de Teive (cuja vida é uma “batalha perdida no mapa”) e em todos esses outros que são estilhaços do espelho partido que se tornou.
Transcrevi longamente o texto em que Teresa Rita Lopes apresenta a Carta da Corcunda para o Serralheiro no vol. I de PESSOA POR CONHECER, sobretudo por se tratar de uma publicação rara e serem escassos ou nulos os comentários de enquadramento do texto na obra do poeta.
Enquanto leitor não especialista, interessam-me menos os aspectos de personalidade do poeta e de que forma se encontram disseminados na sua obra, que o impacto em mim provocado pela força do texto. Depois de o ler, e sobretudo depois de o ter ouvido lido por Maria do Céu Guerra, não mais olhei a deficiência com a indiferença distante que involuntariamente era a minha.
É uma daquelas obras-primas absolutas de que não saimos incólumes quando com elas nos cruzamos. Um enorme obrigado à Maria do Céu Guerra por a ter trazido até nós.
Noticia Bibliográfica
PESSOA POR CONHECER I e II, é um conjunto em 2 volumes subtitulados: volume I –Roteiro para um expedição, e volume II –Textos para um novo mapa. Foram publicados por Editorial Estampa em 1990, e neles Teresa Rita Lopes deu o ponto de partida para a divulgação organizada da obra de Pessoa, como hoje a conhecemos na sua maior parte.
Nota: Na transcrição da Carta… conservei a ortografia da edição, a qual é a do dactiloescrito do poeta.
Os transportes de paixão abundam na poesia romântica e pós-romantica até à fragorosa chegada do modernismo à poesia, no inicio do século XX.
Não constituindo o seu único assunto, nem sequer, diria, o mais importante, são quase sempre formas encapotadas de dirigir declarações de amor a alguém, pois nestas gerações, os poetas foram-no, quase sempre, apenas enquanto moços.
Quando não estamos perante a louvação dos encantos de quem se ama, surgem-nos retratos da mulher idealizada por estes jovens no século XIX, que acabam por nos transmitir uma imagem de mulher sonhada, num paradigma que hoje nos é estranho.
No poema que escolhi, Sonhei-a! temos no inicio, como componentes do retrato: Era triste, mas serena,
e a terminar
Era triste como eu gosto; / Era linda como aposto / Que não havia outra igual;
…
Sonhei-a como uma fada, / Que tem vivido encantada / Sozinha – na solidão!
Que ficaremos a saber desta mulher?
Era tão linda a donzela, / Que eu ficaria ao pé dela / A minha vida…, a sonhar!
e ainda
Rezava que quem a visse, / Pode ser que a confundisse / Com algum anjo do céu.
Descrita de forma impalpável, a mulher sonhada pelo poeta mostra-se um ser etéreo, em quem não são perceptíveis qualidades que não corar ao dizerAlgumas falas de amor:
Já de mansinho dizia / Algumas falas de amor.
…
Dizia-as sempre corando, / Repetia-as soluçando /D’olhos pregados no chão;
…
E depois envergonhada, / De não ser mais recatada, / Corava ainda outra vez!
Transtornado por este quadro diz-nos o nosso poeta o que fez:
Beijei-lhe a mão com respeito; / Arfava-lhe o lindo peito, / Batia-lhe o coração.
Aqui chegados, fica por perceber com quem sonhou o poeta.
Talvez a leitura integral do poema ajude, e ele aí fica.
Sonhei-a!
Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração.
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha na solidão.
Sonhei-a d’olhos pisados,
Porque os prantos magoados
Lh’os tinham pisado assim:
Era triste, mas serena,
Como a gentil açucena,
Rainha do meu jardim.
Sonhei-a triste: – a tristeza
Tem nos olhos da beleza
Encantos qu’eu não direi.
Sonhei-a linda – trigueira,
Como se pinta a ceifeira,
Como eu pintá-la não sei.
Sonhei-a no fim do dia,
Quando tudo é melodia,
Quando tudo fala em Deus.
Vi-a sozinha pensando,
Talvez com prantos regando
Alguns pobres versos meus.
Sonhei-a como eu pequeno,
Naquele sonhar ameno,
Sonhava tudo o que é bom.
Cuidei vê-la que me olhava,
Tão triste que não falava
Nem da voz lhe ouvia o som.
Sonhei-a vindo da guerra,
A falar da minha terra
Como fala o trovador;
Mas então já se sorria,
Já de mansinho dizia
Algumas falas de amor.
Dizia-as como quem sente,
Não altas, mas como a gente
As diz em coisas assim:
Dizia-as como as diria
Beatriz quando as sentia
Falando de Bernardim.
Dizia-as sempre corando,
Repetia-as soluçando
D’olhos pregados no chão;
Dizia-as como eu jurara,
Que ninguém ainda amara
No mundo com tal paixão.
E depois envergonhada,
De não ser mais recatada,
Corava ainda outra vez!
Corava… corava ainda
Cada vez era mais linda,
Mais linda, que Deus a fez!
Qu’ria falar não podia,
Que a vergonha lh’impedia
De poder usar a voz.
Era então que se lembrava
De que o mundo a censurava
De nos ver falar a sós.
Sonhei-a depois rezando,
Talvez em segredo orando
Pela terra em que nasceu;
Rezava que quem a visse,
Pode ser que a confundisse
Com algum anjo do céu.
Tinha as tranças desprendidas,
Levemente sacudidas
Por ligeira viração.
Dos labios lhe baloiçava
Uma oração que rezava
Do fundo do coração.
Vista assim, em tal postura,
Crescia-lhe a formusura,
Se ela pudesse crescer.
Não podia, nem num canto
Se pode tamanho encanto
Com verdade descrever.
Sonhei em sonho fagueiro
Que era um amor verdadeiro
Aquele tão casto amor;
Costumado à desventura,
Só em sonhos a ventura
Visitou o trovador!
Falei-lhe tão meigas falas,
Que nunca as damas das salas
M’as podem ouvir assim:
Ela era linda, inocente,
Falei-lhe como quem sente,
Falei-lhe pouco de mim.
Beijei-lhe a mão com respeito;
Arfava-lhe o lindo peito,
Batia-lhe o coração.
Jurei-lhe… não digo a jura;
Tenho medo que a ventura
Me não deixe a discrição!
Sonhei-a então pensativa,
Como fica a sensitiva
Se lhe vão no pé tocar:
Era tão linda a donzela,
Que eu ficaria ao pé dela
A minha vida…, a sonhar!
Era triste como eu gosto;
Era linda como aposto
Que não havia outra igual;
Sendo tantas como as rosas,
As filhas belas, mimosas,
Das terras de Portugal!
Sonhei-a: se foi mentira
Cantei-a de mais na lira,
Morri por ela de mais.
Se o sonho foi verdadeiro,
Nem o canto é lisonjeiro,
Nem as trovas desleais.
Sonhei-a! Tenho na mente
O seu retrato inocente
A falar-me ao coração!
Sonhei-a como uma fada,
Que tem vivido encantada
Sozinha – na solidão!
Esta mulher sonhada, foi-o na pena de Luis Augusto Palmeirim (1825-1893).
Embora cronologica e estilisticamente poeta da segunda geração romântica, Luis Augusto Palmeirim não integrou nem o grupo de O Trovador, nem o grupo de O Bardo, ou sequer o grupo de O Novo Trovador. A poesia Sonhei-a! foi publicada em Poesias, pela primeira vez em 1851 com um retrato do poeta que reproduzo a seguir.