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O homem desde que se pensou, sonhou a mulher, e exprimiu-o de forma artística. Nesta busca pela essência do feminino imaginou-a divina, e em Vénus cristalizou poder, beleza e prazer do sexo, origem e destino da humanidade toda, ou como escreveu aos 22 anos num Hino a Vénus o nosso poeta de hoje, Almeida Garrett (1799-1854):
“Tudo o que amável / Encerra o mundo,
Vem do teu espírito / Doce e fecundo.”
A Garrett ofereceu a vida bastas oportunidades de experiência, e dela tivemos esse poema maior da nossa literatura Aquela Noite, incluído em Folhas Caídas, livro único de obsessão carnal, sem rodeios de complicações madrigalescas, nem mantos de impostura … como o define José Gomes-Ferreira numa notável introdução à edição comemorativa do centenário da publicação do livro, e onde o Poeta-com-remorsos-de-amar dá conta de uma certa noite que:
“Não deixou outra memória / Dessa noite de loucura, /
De sedução, de prazer… / Que os segredos da ventura /
Não são para se dizer.”
E agora, o poema:
AQUELA NOITE
Era a noite da loucura,
Da sedução do prazer,
Que em sua mantilha escura
Costuma tanta ventura,
Tantas glórias esconder.
Os felizes… e ai! São tantos!…
– Eu por tantos os contava!
Eu que o sinal de meus prantos
Do aflito rosto lavava –
Os felizes presunçosos
Iam nos coches ruidosos
Correndo aos salões doirados
De mil fogos alumiados,
Donde em torrentes saía
A clamorosa harmonia
Que a festa, ao prazer tangia.
Eu sentia esse ruido
Como o confuso bramar
De um mar ao longe movido
Que à praia vem rebentar;
E disse comigo: – “Vamos,
Os lutos d’alma dispamos,
À festa hei-de ir também eu!”
E fui; e a noite era bela,
Mas não vi a minha estrela
Que eu sempre via no céu:
Cobriu-a de espesso véu
Alguma nuvem a ela,
Ou era que já vendado
Me levava o negro fado
Onde a vida me perdeu?
Fui; meu rosto macerado,
A funda melancolia
Que todo o meu rosto revia,
Qual o ataúde levado
A egípcio festim, dizia:
– “Como vós fui eu também;
Folgai que a morte aí vem!”
Dizia-o, sim, meu semblante,
Que, onde eu chegava, o prazer
Cessava no mesmo instante;
E o lábio que ia a dizer
Doçuras de amor gelava;
E o riso que ia a nascer
Na face linda, expirava.
Era eu – e a morte em mim,
Que só ela espanta assim!
Quantas mulheres tão belas
Ébrias de amor e desejos,
Quantas vi saltar-lhe os beijos
Da boca ardente e lasciva!
E eu, que ia chegar-me a elas…
Para logo a fronte esquiva
De recatos se envolvia
E, toda pudor, tremia.
Quantas o seio anelante,
Nu, ardente e palpitante
Andavam como entregando
À cobiça mal desperta,
Gasta já e desdenhosa,
Dos que as estavam mirando
Com vaga luneta incerta
Que diz: – “Aquela é formosa,
Não se me dava de a ter.
E esta? É só baronesa,
Vale menos que a duquesa:
Não sei a qual atender.”
E a isto chamam prazer!
A grande ventura é esta?
Vale a pena vir à festa
E vale a pena viver.
Como então quis à tristura
Do meu viver isolado!
Fique-se embora a ventura,
Que eu quero ser desgraçado.
Levantei alto a cabeça,
Senti-me crescer – e a frente
Desanuviar-se contente
Do feio negrume espesso
Que assustava aquela gente.
Logo os sorrisos caiam
Para o meu lado também;
Já como um dos seus me viam,
Que em mim não viam ninguém.
Eu, de olhos desencantados,
A elas, como as eu via!
Meus entusiasmos passados,
Oh! Como eu deles me ria!
Frio o sarcasmo saia
Dos meus lábios descorados,
E sem dó e sem pudor
A todas falei de amor…
Do amor bruto, degradante
Que no seio palpitante,
Na espádua nua se acende…
Amor lascivo que ofende,
Que faz corar … Elas riam
E oh que não, não se ofendiam!
Mas a orquestra bradou alta:
– “Festa, festa! E salta, salta!”
Os seus guizos delirantes
Sacode louca a Folia…
Adeus, requebros de amantes!
Suspiros, quem nos ouvia?
As palavras meias ditas,
Meias nos olhos escritas,
Voavam todas perdidas
Dispersas, rotas no ar;
Que se foram almas, vidas,
Tudo se foi a valsar.
Quem é esta que mais voltas
Gira, gira sem cessar?
Como as roupas leves, soltas,
Aéreas leva a ondular
Em torno à forma graciosa,
Tão flexível, tão airosa,
Tão fina! – Agora parou,
E tranquila se assentou.
Que rosto! Em linhas severas
Se lhe desenha o perfil;
E a cabeça, tão gentil,
Como se fora deveras
A rainha dessa gente,
Como a levanta insolente!
Vive Deus! Que é ela… aquela,
A que eu vi na tal janela,
E que triste me sorria
Quando passando me via
Tão pasmado a olhar para ela.
A mesma melancolia
Nos olhos tristes – de luz
Oblíqua, viva mas fria;
A mesma alta inteligência
Que da face lhe transluz;
E a mesma altiva impaciência
Que de tudo, tudo cansa,
De tudo o que foi, que é,
E na erma vida só vê
O raio da vaga esp’rança.
– “Pois isto sim que é mulher”
Disse eu – “e aqui há que ver”.
Já vinha a pálida aurora
Anunciando a manhã fria,
E eu falava e eu ouvia
O que até àquela hora
Nunca disse, nunca ouvi…
Toda a memória perdi
Das palavras proferidas…
Não eram destas sabidas,
Nem quais eram não no sei…
Sei que a vida era outra em mim,
Que era outro ser o meu ser,
Que uma alma nova me achei
Que eu bem sabia não ter.
E daí? – Daí, a história
Não deixou outra memória
Dessa noite de loucura,
De sedução, de prazer…
Que os segredos da ventura
Não são para se dizer.