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Almeida Garrett – Vivamos livres, ou morramos homens

24 Terça-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga

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Almeida Garrett, Anthony Kwan

Numa recolha de poesias para celebrar a derrota da Martinhada a 17 de Novembro de 1820, em sessão da Universidade de Coimbra a 21 e 22 do mesmo mês, encontro um veemente e empolgante poema de Almeida Garrett (1799-1854), então jovem estudante e já fogoso liberal. 

Panfleto de crítica política e social, ditado pelos acontecimentos da época, o poema é, lido hoje, uma vigorosa defesa da liberdade e dos direitos dos desfavorecidos, assumindo que os intelectuais também fisicamente lutarão em sua defesa, se preciso for, como foi o caso na Revolução Liberal, com Garrett e Herculano entre eles:

…

E veja o mundo com terror, e espanto

Em cada filho de Minerva um Marte.

Tremam, caiam perversos aristocratas.

…

 

Mudemos aristocratas por autocratas, e Isto que um jovem estudante proclamava há 200 anos, é de novo a luta travada hoje pelos jovens em Hong-Kong e a que, à distância, assistimos nas televisões, aspirando eles ao mesmo que o nosso poeta com os restantes liberais à época alcançaram:

… Jugo de ferro, que pesava outrora / Sobre nossas cabeças, já desfeito /A pedaços caiu; / …

 

Voltando ao poema, a sessão recolhe testemunhos poéticos de alguns estudantes na altura, entre eles António Feliciano de Castilho e o irmão Augusto Frederico Castilho. Chegada a vez de Garrett, eis o que tem a dizer o moço de vinte anos:

 

Ergo tardia voz, mas ergo-a livre

Ante vós, ante os céus, ante o universo;

Se os céus, se o mundo minha voz ouvirem.

…

 

E esta voz ergue-se para increpar poderosos e submissos à arbitrariedade do poder absoluto. 

Depois de invocar como no passado a poesia cantou os feitos Portugueses, continua:

…

Não posso tanto, não me atrevo, ó sócios;

Mas tenho um coração, que é Lusitano;

Mas tenho um coração, que é livre, e é d’homem.

Livres, como ele, minha voz, meu brado

O que a alma sente vos espalhe n’alma,

E o grito da razão troveje ao mundo.

Livres! … Ah! livre um Português foi sempre.

Sim: que essa infame sórdida caterva,

Esse rebanho vil de vis escravos,

Que ao ceptro da ignorância incensam curvos,

Esses … esses … ó Lusa academia,

Do nome Português vergonha, opróbrio.

Portugueses não são, jamais o foram.

…

 

Para que não restem dúvidas, enumera a quem se refere: todos os beneficiários do antigo regime absolutista:

…

Esses pérfidos monstros, que enfatuados

Das sociais distinções usurpam glória,

Julgam virtude o mérito da sorte,

Do feudalismo atroz cruéis sectários,

Aristocratas bárbaros, insanos,

Que em si pretendem concentrar direitos,

Que ao povo inteiro, que à nação pertencem,

Réus do crime maior, que a terra há visto,

Réus do crime maior, que o céu punira,

Réus do crime maior, que urdiu o inferno;

Estes, Lusos serão, ou serão homens?

E o nome Português, o nome augusto,

Ante quem se prostrou de rojo o mundo 

O nome Português cabe em tais monstros?

…

 

Refere a seguir como o rei se encontra cego por esta corte que vive à sua volta e impedido de ver o sofrimento do povo:

… 

[O nome Português]

Cabe nos monstros, que afumando ao trono

O torpe incenso de venal lisonja,

Abjectos, vis, aduladores, pérfidos,

Olhos no interesse, ao paternal soberano

Lhe impedem ver as públicas desgraças,

Gemer nos males de seu povo aflito?

…

 

O poema continua apelando directamente ao rei:

… / Oh rei! oh pai! oh suspirado! oh caro! / Ah! rompe duma vez da intriga as malhas; / … para já no final se congratular com a conquista da liberdade:

…

Oh flor da pátria! oh mimo de seus filhos!

Oh Lusitana, ilustre juventude!

Jugo de ferro, que pesava outrora

Sobre nossas cabeças, já desfeito

A pedaços caiu; e a mão soberba,

Que os insofridos lábios nos tapava,

Ao golpe audaz jazeu da liberdade.

…

 

A capacidade empolgante da palavra poética na língua portuguesa vive neste poema de forma ímpar:

…

Pode, mais do que a espada, a voz, e a pena;

…

Sejamos sempre heróis, e sempre livres;

Sejamos, como sempre, Portugueses;

Vivamos livres, ou morramos homens.

 

 

São história a sociedade e o tempo de que no poema se fala. Mas esta língua que é nossa, continua viva para nos fazer entender o mundo em redor, e também aquele mundo que conheceu quem antes de nós a usou e burilou, e com ela nos deixou conta das lutas e experiências da vida que lhe coube viver.

 

 

Eis o poema integral:

 

 

Ao Corpo Académico

 

Ergo tardia voz, mas ergo-a livre

Ante vós, ante os céus, ante o universo;

Se os céus, se o mundo minha voz ouvirem.

 

Inda a braços co’a esquálida doença,

Mal posso o brado alçar débil, e frouxo,

Subir aos cumes de estremada glória,

Heróis cantar, que a impulsos formidáveis

De pujante valor, de ardido esforço

Ao chão baquearam bárbaros colossos

Do despotismo atroz, da tirania,

Que a máscara perversa enganadora

Da hipocrisia vil do fanatismo

Com destra mão impávidos rasgaram;

Tão nobres feitos, tão sublime arrojo. 

Assaz dos vates resoou na lira

De sobejo entre vós cisnes do Pindo

Com louro eterno no porvir c’roaram;

Nos peitos vossos de sobejo, há muito

Em caracteres se gravou de fogo.

 

Não posso tanto, não me atrevo, ó sócios;

Mas tenho um coração, que é Lusitano;

Mas tenho um coração, que é livre, e é d’homem.

Livres, como ele, minha voz, meu brado

O que a alma sente vos espalhe n’alma,

E o grito da razão troveje ao mundo.

Livres! … Ah! livre um Português foi sempre.

Sim: que essa infame sórdida caterva,

Esse rebanho vil de vis escravos,

Que ao ceptro da ignorância incensam curvos,

Esses … esses … ó Lusa academia,

Do nome Português vergonha, opróbrio.

Portugueses não são, jamais o foram.

Esses pérfidos monstros, que enfatuados

Das sociais distinções usurpam glória,

Julgam virtude o mérito da sorte,

Do feudalismo atroz cruéis sectários,

Aristocratas bárbaros, insanos,

Que em si pretendem concentrar direitos,

Que ao povo inteiro, que à nação pertencem,

Réus do crime maior, que a terra há visto,

Réus do crime maior, que o céu punira,

Réus do crime maior, que urdiu o inferno;

Estes, Lusos serão, ou serão homens?

E o nome Português, o nome augusto,

Ante quem se prostrou de rojo o mundo 

O nome Português cabe em tais monstros?

Cabe nos monstros, que afumando ao trono

O torpe incenso de venal lisonja,

Abjectos, vis, aduladores, pérfidos,

Olhos no interesse, ao paternal soberano

Lhe impedem ver as públicas desgraças,

Gemer nos males de seu povo aflito?

 

Oh rei! oh pai! oh suspirado! oh caro!

Ah! rompe duma vez da intriga as malhas;

Denso negrume, que te ofusca o ceptro;

Com o ceptro punidor dissipa, e vinga.

JOÃO! . . . Quanto este nome é caro aos Lusos!

JOÃO! . . . Deslembra alguém tão sacro nome?

E cumpre à prepotência a nós lembrá-lo!

E cumpre ao orgulho suscitá-lo aos peitos!

A nós, a Portugueses, quais nós somos,

A filhos de Minerva!… A ofensa é crua,

Barbara a afronta, pérfido o conselho,

Indigna… Ah! perdoemos, sócios caros;

Generoso perdão se outorgue à infâmia:

Das dádivas do céu disponham Lusos.

 

Oh flor da pátria! oh mimo de seus filhos!

Oh Lusitana, ilustre juventude!

Jugo de ferro, que pesava outrora

Sobre nossas cabeças, já desfeito

A pedaços caiu; e a mão soberba,

Que os insofridos lábios nos tapava,

Ao golpe audaz jazeu da liberdade.

Anos de escravidão vingue um só dia;

Séculos ganhem fugitivas horas:

Em livres brados à virtude à gloria

O frouxo peito aos cidadãos movamos.

 

Pode, mais do que a espada, a voz, e a pena;

E, se a espada cumprir, cinja-se a espada;

E veja o mundo com terror, e espanto

Em cada filho de Minerva um Marte.

Tremam, caiam perversos aristocratas.

Sejamos sempre heróis, e sempre livres;

Sejamos, como sempre, Portugueses;

Vivamos livres, ou morramos homens.

 

João Baptista da Silva Leitão d’Almeida Garrett

 

in Collecção das Poesias recitadas na Salla dos Actos Grandes da Universidade de Coimbra nas noites do dia 21 e 22 de Novembro em pública demonstração de regosijo pelo feliz resultado do dia 17, 1820, COIMBRA. NA REAL IMPRENSA DA UNIVERSIDADE, 1821.

Modernizei a ortografia do poema.

Abre o artigo a imagem de uma foto de Anthony Kwan mostrando uma das recentes manifestações em Hong-Kong.

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Saudade! Gosto amargo de infelizes

11 Segunda-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

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Almeida Garrett, António Botto, Bernardim Ribeiro, Bernardo de Passos, Fernando Pessoa, Geza Voros, Marquesa de Alorna, Sebastião da Gama

Saudade, que vos farei?
Pois vos não posso deixar,
por descanso vos busquei:
achei-vos para cansar.
…
(*)

 

A saudade, esse impalpável desejo do que se perdeu, por nós anda, associado à tristeza e ao desgosto.
Subtil e imprecisa, é a palavra perfeita para o complexo de sentimentos que nos assaltam no tempo, ao avivar de recordações e memórias, de pessoas, acontecimentos e lugares, com quem e onde fomos felizes.

Ó sino da minha aldeia,
…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(**)

 

A saudade passa na poesia sem cessar, por vezes de forma consciente e explícita. São sem fim os poemas onde ela transparece.
Se titulei o artigo com um verso de um poema de Almeida Garrett (1799-1854):

Saudade! Gosto amargo de infelizes.
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!

 

agora recuo um pouco no tempo, à poesia de métrica precisa, melodia irresistível, e pendor filosofante da Marquesa de Alorna (1750-1839), de quem não há muito trouxe ao blog uma glosa sobre a saudade.

 

Marquesa de Alorna — Sem título

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

 

Quando a memória o consente, nem sempre a saudade será tristeza, o que Sebastião da Gama (1924-1952) capta no poema Lembrança:

 

Lembrança

Foi naquela tarde,
já distante…

Mas foi tão nítido e tão vivo,
Amor!, o beijo que me deste,
que não consegue ser saudade.

Flor cálida, vermelha flor tenrinha
que nos lábios contentes me deixaste…

Triste, já o Outono se avizinha.

Só essa flor não quer tombar da haste…

 

Deixo-o agora, leitor, com dois poemas em que saudade e melodia do verso se enlaçam, ajudando com isso a sossegar as almas que a saudade atravessa.

Primeiro um poema de Bernardo de Passos (1876-1930), deliciosa brincadeira à volta da palavra pena: pena (desgosto) e pena (revestimento das aves):

 

Saudades…

Saudades de amor são penas
que nascem do coração…
É como a pena das aves,
quanto mais, mais brandas são!

Meu coração fez um ninho
como o das aves, perfeito,
juntando todas as penas
de que ele me encheu o peito…
E nesse ninho, a sonhar,
dorme, assim, horas serenas,
como dorme um passarinho
sobre o seu ninho de penas…

 

E por fim, uma canção de António Botto (1897-1959) escrita com uma mestria de sabor popular:

 

Canção

De saudades vou morrendo
E na morte vou pensando;
Meu amor, porque partiste
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão triste
Ó alegrias cantai!
Mas quem acode ao que eu digo?
— Enchei-vos d’água meus olhos,
Enchei-vos d’água, chorai!

 

Encerro este longo artigo com esperança, esperança de que, qual flor, a saudade há-de murchar como anseia a Marquesa de Alorna neste poema final:

 

Saudade

A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
É produção da tristeza.

Enquanto a saraiva, os Notos
Destes gelados países
Açoutam as plantas, cresce,
Lança profundas raízes;

Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a saudade há-de murchar.

 

Notas:
(*) Atribuído a Bernardim Ribeiro no manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, (cód. 11353).
(**) Fernando Pessoa, 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.
Os restantes poemas encontra-os o leitor em A Saudade na Poesia Portuguesa, seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Portugália editora, 1967.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher em vermelho, de 1933.

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De Almeida Garrett ao filósofo Alain

24 Domingo Set 2017

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga

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Alain, Almeida Garrett

Uma das vantagens do sonho em relação à realidade é a possibilidade de com ele fugir à dor. Isto mesmo escreve Almeida Garrett (1799-1854) no poema Quando Eu Sonhava:

…
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava — mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia …

 

 

Com efeito, enquanto sonhamos, dispensamos as dificuldades da realidade no processo de conseguir o que nos fará feliz.

 

 

Como refere o filósofo francês Émile-Auguste Chartier, conhecido pelo pseudónimo Alain (1868-1951), num dos seus Propos —… sobretudo, o que me parece evidente, é que é impossível ser-se feliz se não se quer sê-lo;—.
A afirmação não é apenas retórica. Se olharmos dentro de nós sem subterfúgios ou desculpas e perguntarmos até onde estamos dispostos a ir para ser felizes, veremos quanto os obstáculos aparentemente intransponíveis nos tolhem o caminho.

 

Esta atitude do pensar explicitada por Alain é a menos comum de todas: a de que é preciso querer ser feliz para eventualmente o ser. E Almeida Garrett no poema Quando Eu Sonhava dá a visão mais comum: a imobilidade como solução para não correr riscos, trocando-os pelos sonhos que os permitem iludir.

 

 

 

Quando Eu Sonhava

 

Quando eu sonhava, era assim
Que nos meus sonhos a via;
E era assim que me fugia,
Apenas eu despertava,
Essa imagem fugidia
Que nunca pude alcançar.
Agora, que estou desperto,
Agora a vejo fixar…
Para quê? — Quando era vaga,
Uma ideia, um pensamento,
Um raio de estrela incerto
No imenso firmamento,
Uma quimera, um vão sonho,
Eu sonhava — mas vivia:
Prazer não sabia o que era,
Mas dor, não na conhecia …

 

in Folhas Caídas.

 

 

 

E retomo a exortação de Alain:
… é sempre difícil ser feliz; é um combate contra muitos acontecimentos e contra muitos homens; pode acontecer que se seja vencido; há sem qualquer dúvida acontecimentos inultrapassáveis e desgraças mais fortes que o estóico aprendiz; mas o dever mais claro é, talvez, nunca se admitir vencido antes de ter lutado com todas as forças. E sobretudo, o que me parece evidente, é que é impossível ser-se feliz se não se quer sê-lo; é preciso portanto querer a própria felicidade e construí-la.

 

 

Aqui ficam as afirmações e o conselho de um homem sábio, para quem a vida foi o desafio de a viver na sua diversidade e prazer, conhecendo a guerra por experiência própria, e os homens nas suas situações limite.
É um filósofo fora de moda para prejuízo de quem se dispensa de pensar pela própria cabeça e se limita a seguir pelos caminhos seguros do já conhecido.

 

 

Não sei de traduções em português de obras do filósofo. Nas colecções de bolso francesas encontram-se algumas compilações temáticas. A colecção dos seu Propos bem como outros textos relevantes encontram-se editados na colecção Pléiade da editora francesa Gallimard.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Matisse, A tristeza do rei.

 

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À volta da cor dos olhos com um poema de Almeida Garrett

20 Quarta-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Almeida Garrett, Janos Balazs, Júlio Diniz

A relação entre olhos, olhar, e poesia, é uma constante na tradição poética portuguesa pelo menos desde Bernardim Ribeiro, e até aos nossos dias, com, por exemplo, a poesia de Sophia de Melo Breyer Andersen.
Ainda que na poesia de Sophia “a cor dos olhos e a argúcia do olhar” marque presença densa, com a, por vezes, implícita assumpção de que os olhos são espelho da alma, é a uma mais ligeira percepção que hoje me dedico: a arreigada crença de que a cor dos olhos dita disposições de carácter.

Recordo eu, de quando era miúdo, uma canção ainda popular à época, Olhos Castanhos, suponho que inicialmente sucesso no Brasil, cantada por Francisco José, que punha os olhos em alvo às miúdas com olhos dessa cor,
…
Olhos bons com coração
Os teus, castanhos leais.
…

e enfurecia a mais ver as belas possuidoras de olhos verdes e azuis, pois a canção rezava assim:
…
Olhos azuis são ciúme
E nada valem pra mim
…
Olhos verdes são traição
São cruéis como punhais
…

Os olhos negros, encanto ocasional para Almeida Garrett, como veremos mais à frente (e escrevo ocasional pois ao que consta o homem ter-se-á encantado com olhos em todas as cores do arco-iris), eram verdadeiramente vilipendiados na canção:
…
Olhos negros são queixume
D’uma tristeza sem fim.

(Quem quer a vida acompanhada de uns olhos queixosos?)

Acontece que os termos em que a canção encomiava os olhos castanhos casavam à maravilha com o que diziam umas quadras que no princípio do romance As Pupilas do Sr. Reitor, Daniel, miúdo de doze para treze anos, cantava em toada popular a Margarida, rapariga da sua idade. E como o livro era leitura adequada à juventude, tudo isto contribuía para o desenvolvimento das mais variadas fantasias entre cor dos olhos e disposições inatas de modos de ser, levando a arrufos e alegrias de incipientes namoros.
São no entanto, estas fantasias e por vezes equívocos, extensíveis a épocas mais recuadas, e nem sei se ainda hoje fazem caminho. Talvez haja poetas a quem os olhos azuis ou verdes encheram de encanto e louvaram em poesia; o que de momento desconheço. Mas veremos o que diz de uns Olhos Negros Almeida Garrett (1799-1854):

…
Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim…
Nunca mais dizem que não.

Ao contrário, o nosso Daniel do romance de Júlio Dinis não cuidava de fidelidades mas tão só de sedução:

Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?
…
São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.
…

E assim andamos à volta do olhar tentando espreitar a alma.
Termino com o poema de Almeida Garrett:

Olhos Negros

Por teus olhos negros, negros
Trago eu negro o coração,
De tanto pedir-lhe amores…
E eles a dizer que não

E mais não quero outros olhos,
Negros, negros como são
Que os azuis dão muita esp’rança
Mas fiar-me eu neles, não.

Só negros, negros os quero;
Que, em lhes chegando a paixão,
Se um dia disserem sim…
Nunca mais dizem que não.
I84…

in Flores sem Fruto

Em nota final, e para quem não o recorde, aqui ficam os olhos castanhos cantados a Margarida por Daniel no romance As Pupilas do Sr. Reitor de Júlio Dinis:

Morena, morena,
Dos olhos castanhos,
Quem te deu, morena,
Encantos tamanhos?

Encantos tamanhos
Não vi nunca assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena,
Dos olhos rasgados,
Teus olhos, morena,
São os meus pecados.

São os meus pecados
Uns olhos assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena
dos olhos galantes,
Teus olhos, morena.
São dous diamantes.

São dous diamantes
olhando-me assim.
Morena, morena,
Tem pena de mim.

Morena, morena.
Dos o!hos morenos,
o olhar desses olhos
Concede-me ao menos.

Concede-me ao menos
não sejas assim.
Morena, morena.
Tem pena de mim.

 

Apêndice musical

Completo esta ligeira digressão com as letras de duas canções: Olhos Castanhos e Olhos Negros (Ochi cherniye).
Primeiro a canção famosa em Portugal na voz de Francisco José entre outros; finalmente os olhos negros de uma famosa canção russa: Ochi cherniye.

Olhos Castanhos

Teus olhos castanhos de encantos tamanhos
São pecados meus
São estrelas fulgentes, brilhantes, luzentes
Caídas dos céus
Teus olhos risonhos, são mundos, são sonhos
São a minha cruz
Teus olhos castanhos de encantos tamanhos
São raios de luz.

Olhos azuis são ciúme
E nada valem pra mim
Olhos negros são queixume
D’uma tristeza sem fim.

Olhos verdes são traição
São cruéis como punhais
Olhos bons com coração
Os teus, castanhos leais.

Teus olhos castanhos …

Letra de Alves Coelho

Agora Ochi cherniye. E aqui, estes olhos negros são também belos, só que da sua constância nada sabemos.

Ochi cherniye

Olhos negros, olhos apaixonados
Olhos ardentes e belos
Como eu os amo, como eu os temo
Sabe, eu vos vi em má hora

Oh, não é à toa que vocês são mais escuros que as trevas!
Vejo um lamento em vós, pela minha alma
Vejo em vós uma chama vitoriosa:
Queimando nela, um pobre coração.

Mas eu não estou triste, não estou desolado,
O meu destino me conforta:
Tudo o que de melhor na vida Deus nos deu,
Num sacrifício eu entreguei aos olhos ardentes!

Tradução encontrada na net assinada por Érika Batista.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do húngaro Janos Balazs (1905-1977) – Mulher cigana.

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Aquela Noite contada por Almeida Garrett

03 Terça-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in A mulher imaginada

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Almeida Garrett, Klimt

Klimt_Gustav-Allegory_of_SculptureO homem desde que se pensou, sonhou a mulher, e exprimiu-o de forma artística.  Nesta busca pela essência do feminino imaginou-a divina, e em Vénus cristalizou poder, beleza e prazer do sexo, origem e destino da humanidade toda, ou como escreveu aos 22 anos num Hino a Vénus o nosso poeta de hoje, Almeida Garrett (1799-1854):

“Tudo o que amável / Encerra o mundo,

Vem do teu espírito / Doce e fecundo.”

 

A Garrett ofereceu a vida bastas oportunidades de experiência, e dela tivemos esse poema maior da nossa literatura Aquela Noite, incluído em Folhas Caídas, livro único de obsessão carnal, sem rodeios de complicações madrigalescas, nem mantos de impostura … como o define José Gomes-Ferreira numa notável introdução à edição comemorativa do centenário da publicação do livro, e  onde o Poeta-com-remorsos-de-amar dá conta de uma certa noite que:

“Não deixou outra memória / Dessa noite de loucura, /

De sedução, de prazer… / Que os segredos da ventura /

Não são para se dizer.”

 

E agora, o poema:

AQUELA NOITE

Era a noite da loucura,

Da sedução do prazer,

Que em sua mantilha escura

Costuma tanta ventura,

Tantas glórias esconder.

Os felizes… e ai! São tantos!…

– Eu por tantos os contava!

Eu que o sinal de meus prantos

Do aflito rosto lavava –

Os felizes presunçosos

Iam nos coches ruidosos

Correndo aos salões doirados

De mil fogos alumiados,

Donde em torrentes saía

A clamorosa harmonia

Que a festa, ao prazer tangia.

Eu sentia esse ruido

Como o confuso bramar

De um mar ao longe movido

Que à praia vem rebentar;

E disse comigo: – “Vamos,

Os lutos d’alma dispamos,

À festa hei-de ir também eu!”

E fui; e a noite era bela,

Mas não vi a minha estrela

Que eu sempre via no céu:

Cobriu-a de espesso véu

Alguma nuvem a ela,

Ou era que já vendado

Me levava o negro fado

Onde a vida me perdeu?

Fui; meu rosto macerado,

A funda melancolia

Que todo o meu rosto revia,

Qual o ataúde levado

A egípcio festim, dizia:

– “Como vós fui eu também;

Folgai que a morte aí vem!”

Dizia-o, sim, meu semblante,

Que, onde eu chegava, o prazer

Cessava no mesmo instante;

E o lábio que ia a dizer

Doçuras de amor gelava;

E o riso que ia a nascer

Na face linda, expirava.

Era eu – e a morte em mim,

Que só ela espanta assim!

Quantas mulheres tão belas

Ébrias de amor e desejos,

Quantas vi saltar-lhe os beijos

Da boca ardente e lasciva!

E eu, que ia chegar-me a elas…

Para logo a fronte esquiva

De recatos se envolvia

E, toda pudor, tremia.

Quantas o seio anelante,

Nu, ardente e palpitante

Andavam como entregando

À cobiça mal desperta,

Gasta já e desdenhosa,

Dos que as estavam mirando

Com vaga luneta incerta

Que diz: – “Aquela é formosa,

Não se me dava de a ter.

E esta? É só baronesa,

Vale menos que a duquesa:

Não sei a qual atender.”

E a isto chamam prazer!

A grande ventura é esta?

Vale a pena vir à festa

E vale a pena viver.

Como então quis à tristura

Do meu viver isolado!

Fique-se embora a ventura,

Que eu quero ser desgraçado.

Levantei alto a cabeça,

Senti-me crescer – e a frente

Desanuviar-se contente

Do feio negrume espesso

Que assustava aquela gente.

Logo os sorrisos caiam

Para o meu lado também;

Já como um dos seus me viam,

Que em mim não viam ninguém.

Eu, de olhos desencantados,

A elas, como as eu via!

Meus entusiasmos passados,

Oh! Como eu deles me ria!

Frio o sarcasmo saia

Dos meus lábios descorados,

E sem dó e sem pudor

A todas falei de amor…

Do amor bruto, degradante

Que no seio palpitante,

Na espádua nua se acende…

Amor lascivo que ofende,

Que faz corar … Elas riam

E oh que não, não se ofendiam!

Mas a orquestra bradou alta:

– “Festa, festa! E salta, salta!”

Os seus guizos delirantes

Sacode louca a Folia…

Adeus, requebros de amantes!

Suspiros, quem nos ouvia?

As palavras meias ditas,

Meias nos olhos escritas,

Voavam todas perdidas

Dispersas, rotas no ar;

Que se foram almas, vidas,

Tudo se foi a valsar.

Quem é esta que mais voltas

Gira, gira sem cessar?

Como as roupas leves, soltas,

Aéreas leva a ondular

Em torno à forma graciosa,

Tão flexível, tão airosa,

Tão fina! – Agora parou,

E tranquila se assentou.

Que rosto! Em linhas severas

Se lhe desenha o perfil;

E a cabeça, tão gentil,

Como se fora deveras

A rainha dessa gente,

Como a levanta insolente!

Vive Deus! Que é ela… aquela,

A que eu vi na tal janela,

E que triste me sorria

Quando passando me via

Tão pasmado a olhar para ela.

A mesma melancolia

Nos olhos tristes – de luz

Oblíqua, viva mas fria;

A mesma alta inteligência

Que da face lhe transluz;

E a mesma altiva impaciência

Que de tudo, tudo cansa,

De tudo o que foi, que é,

E na erma vida só vê

O raio da vaga esp’rança.

– “Pois isto sim que é mulher”

Disse eu – “e aqui há que ver”.

Já vinha a pálida aurora

Anunciando a manhã fria,

E eu falava e eu ouvia

O que até àquela hora

Nunca disse, nunca ouvi…

Toda a memória perdi

Das palavras proferidas…

Não eram destas sabidas,

Nem quais eram não no sei…

Sei que a vida era outra em mim,

Que era outro ser o meu ser,

Que uma alma nova me achei

Que eu bem sabia não ter.

E daí? – Daí, a história

Não deixou outra memória

Dessa noite de loucura,

De sedução, de prazer…

Que os segredos da ventura

Não são para se dizer.


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Deus e a segunda geração romantica: uma abordagem

25 Quarta-feira Maio 2011

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Almeida Garrett, Camilo Castelo-Branco

IGNOTO DEO

D.D.D.

Creio em ti, Deus: a fé viva

De minha alma a ti se eleva.

És: o que és não sei. Deriva

Meu ser do teu: luz … e trevas,

Em que – indistintas! – se envolve

Este espírito agitado,

De ti vem, a ti devolve,

O Nada, a que foi roubado

Pelo sopro criador

Tudo o mais, o há-de tragar.

Só vive de eterno ardor

O que está sempre a aspirar

Ao infinito donde veio.

Beleza és tu, luz és tu,

Verdade és tu só. Não creio

Senão em ti; o olho nu

Do homem não vê na terra

Mais que a duvida, a incerteza,

A forma que engana e erra.

Essência!  A real beleza,

O puro amor – o prazer

Que não fatiga e não gasta…

Só por ti os pode ver

O que inspirado se afasta,

Ignoto Deus, das ronceiras,

Vulgares turbas: despidos

Das coisas vãs e grosseiras

Sua alma, razão, sentidos,

               A ti se dão, em ti vida,

E por ti vida têm, eu, consagrado

A teu altar, me prostro e a combatida

Existência aqui ponho, aqui votado

Fica este livro – confissão sincera

Da alma que a ti voou e em ti só spera.

O meu deus desconhecido é realmente aquele misterioso, oculto e não definido sentimento de alma que a leva às aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta.

Isto escrevia Almeida Garrett na apresentação de Folhas Caídas, o seu último livro de poesia a que já nos referimos quando começámos este blog de percurso imprevisível.

Regresso a ele para, com o poema de abertura do livro a um deus desconhecido, discretear sobre a presença de Deus na poesia romantica da segunda geração, escrita em português.

Sendo os poetas da geração romantica formados na matriz católica, o Deus invocado na sua poesia é sempre o Deus dos cristãos.

Para além das manifestações de fé poetisadas em torno do acredito porque acredito, surgem aqui e além outras formas de refletir poeticamente sobre Deus, de que a obra-prima absoluta será este IGNOTO DEO.

Mas enquadrado neste poetar com Deus em fundo, surge uma vasta produção que se estende até final do século, comentando os vicios e desmandos, e também algumas santas vidas, de um clero rural ou urbano presente na sociedade portuguesa durante séculos.

O interesse, hoje, desta produção poética é histórico, sendo que uma vez por outra a qualidade da factura e da inspiração fazem esses poemas merecedores de lembrança.

É já passado o romantismo, na sua definição histórico-literária, que encontramos a realização maior neste tema com A Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro, onde se inclui o poemeto O Melro, que já aqui referi como um hino por excelência à liberdade.

Nestes primordios dos anos 50 de oitocentos, quando Garrett publicou o seu IGNOTO DEO, é a poesia de Camilo Castelo Branco, reunida em Inspirações de onde destaco A Harpa do Céptico e e nos ciclos de poemas O JUIZO FINAL E O SONHO DO INFERNO,  ou ainda em HOSSANA! PARÁFRASE DOS SETE SALMOS PENITENCIAIS, que documenta as variadas perspectivas do sentir da segunda geração romantica sobre a religião e as suas praticas envolvendo a intermediação eclesiástica, e dando conta das interrogações juvenis sobre a crença. Camilo à época era um moço com menos de 30 anos.

Não fica o assunto esgotado e outras produções poética visitaremos.

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