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Almeida Garrett, António Botto, Bernardim Ribeiro, Bernardo de Passos, Fernando Pessoa, Geza Voros, Marquesa de Alorna, Sebastião da Gama
Saudade, que vos farei?
Pois vos não posso deixar,
por descanso vos busquei:
achei-vos para cansar.
…
(*)
A saudade, esse impalpável desejo do que se perdeu, por nós anda, associado à tristeza e ao desgosto.
Subtil e imprecisa, é a palavra perfeita para o complexo de sentimentos que nos assaltam no tempo, ao avivar de recordações e memórias, de pessoas, acontecimentos e lugares, com quem e onde fomos felizes.
Ó sino da minha aldeia,
…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(**)
A saudade passa na poesia sem cessar, por vezes de forma consciente e explícita. São sem fim os poemas onde ela transparece.
Se titulei o artigo com um verso de um poema de Almeida Garrett (1799-1854):
Saudade! Gosto amargo de infelizes.
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!
agora recuo um pouco no tempo, à poesia de métrica precisa, melodia irresistível, e pendor filosofante da Marquesa de Alorna (1750-1839), de quem não há muito trouxe ao blog uma glosa sobre a saudade.
Marquesa de Alorna — Sem título
Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.
Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.
Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.
Do peito em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.
Quando a memória o consente, nem sempre a saudade será tristeza, o que Sebastião da Gama (1924-1952) capta no poema Lembrança:
Lembrança
Foi naquela tarde,
já distante…
Mas foi tão nítido e tão vivo,
Amor!, o beijo que me deste,
que não consegue ser saudade.
Flor cálida, vermelha flor tenrinha
que nos lábios contentes me deixaste…
Triste, já o Outono se avizinha.
Só essa flor não quer tombar da haste…
Deixo-o agora, leitor, com dois poemas em que saudade e melodia do verso se enlaçam, ajudando com isso a sossegar as almas que a saudade atravessa.
Primeiro um poema de Bernardo de Passos (1876-1930), deliciosa brincadeira à volta da palavra pena: pena (desgosto) e pena (revestimento das aves):
Saudades…
Saudades de amor são penas
que nascem do coração…
É como a pena das aves,
quanto mais, mais brandas são!
Meu coração fez um ninho
como o das aves, perfeito,
juntando todas as penas
de que ele me encheu o peito…
E nesse ninho, a sonhar,
dorme, assim, horas serenas,
como dorme um passarinho
sobre o seu ninho de penas…
E por fim, uma canção de António Botto (1897-1959) escrita com uma mestria de sabor popular:
Canção
De saudades vou morrendo
E na morte vou pensando;
Meu amor, porque partiste
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão triste
Ó alegrias cantai!
Mas quem acode ao que eu digo?
— Enchei-vos d’água meus olhos,
Enchei-vos d’água, chorai!
Encerro este longo artigo com esperança, esperança de que, qual flor, a saudade há-de murchar como anseia a Marquesa de Alorna neste poema final:
Saudade
A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
É produção da tristeza.
Enquanto a saraiva, os Notos
Destes gelados países
Açoutam as plantas, cresce,
Lança profundas raízes;
Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a saudade há-de murchar.
Notas:
(*) Atribuído a Bernardim Ribeiro no manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, (cód. 11353).
(**) Fernando Pessoa, 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.
Os restantes poemas encontra-os o leitor em A Saudade na Poesia Portuguesa, seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Portugália editora, 1967.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher em vermelho, de 1933.