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Tag Archives: Fernando Pessoa

A Ceifeira segundo Wordsworth, Pessoa, e Lope de Vega

18 Sábado Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Inglesa e Norte-Americana, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Lope de Vega, Luis Augusto Palmeirim, o velho, Pieter Bruegel, Sophia de Mello Breyner Andresen, William Wordsworth

A mecanização das colheitas e o progressivo despovoamento dos campos remete para a experiência de quem os viveu, a memória dos ciclos do cultivo da terra, de que as colheitas eram o auge, podendo  significar abundância ou miséria para os tempos que se seguiam. Entre as colheitas, a faina da ceifa do cereal era, com a vindima, ocasião para alegria que acompanhava a dureza do trabalho. Tratava-se, afinal, de colher o que viria a dar o pão e o vinho de cada dia, essência e símbolo da alimentação. 

Com os extremos de calor pelo verão, as televisões foram à procura de testemunhos pelas terras do Alentejo onde o sol queimava, procurando saber como as pessoas mais velhas lidavam com o calor. Encontraram os testemunhos da memória desses dias de colheitas de sol a sol sob um calor inclemente, na fala da experiência de vidas de trabalho árduo, e que hoje dificilmente imaginamos na sua dureza.

Não tendo os poetas a experiência directa da rudeza do trabalho que o canto ajuda a aliviar, relatam o observável naquele efeito que Fernando Pessoa (1888-1935) refere no verso feliz: O que em mim sente está pensando. E assim, sobre a ceifa, leremos três poemas com afinidades e dissemelhanças.

Primeiro William Wordsworth (1770-1850) no poema A Ceifeira solitária, dá conta da emoção que atinge o poeta ao ouvir o canto dolente de uma ceifeira:

…

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

…

enquanto Fernando Pessoa refere:

…

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

…

São estes, versos do poema de Pessoa conhecido pelo primeiro verso, [Ela canta, pobre ceifeira,]. 

Poderia continuar no paralelismo de leitura dos dois poemas, mas deixo essa descoberta para os leitores que lerem os poemas mais à frente. 

No poema de Wordsworth, do encontro com o canto da ceifeira ganha o poeta a serenidade que a verdade das coisas simples transporta:

…

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

No poema de Pessoa deparamos com uma meditação simultânea sobre a busca de sentido dos comportamentos perante as dificuldades do existir, … E canta como se tivesse / Mais razões para cantar que a vida./ …, e o desejo de ser outro que a contemplação da harmonia entre um nós e o mundo sempre traz consigo: … / Ah, poder ser tu, sendo eu! / …

 

 

Os poemas

 

William Wordsworth —  A Ceifeira solitária

 

Só ela no campo vi:

solitária de altas serras,

ceifa e canta para si.

Não digas nada, que a aterras!

Sozinha ceifa no mundo

e canta melancolia.

Escuta: o vale profundo

transborda já de harmonia.

 

Nunca um rouxinol cantou

em sombras da Arábia ardente

ao que exausto repousou

mais grata canção dolente;

ou gorjeio tão extremado

se escutou na Primavera,

cortando o Oceano calado

entre ilhas de Além-Quimera.

 

Quem me dirá do que canta?

Será que o que ela deplora

é antigo, triste e distante,

como batalhas de outrora?

Ou coisas simples são

do quotidiano viver?

Essas dor’s de coração,

que já foram e hão-de ser?

 

Seja o que for que cantara

é como infindo cantar,

que a vi cantando na seara,

no trabalho de ceifar.

Sem falar, quieto, eu escutava.

E, quando o monte subia,

no coração transportava

o canto que não se ouvia.

 

Tradução de Jorge de Sena. 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

 

Fernando Pessoa — [Ela canta, pobre ceifeira,]

 

Ela canta, pobre ceifeira,

Julgando-se feliz talvez;

Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia

De alegre e anónima viuvez,

 

Ondula como um canto de ave

No ar limpo como um limiar,

E há curvas no enredo suave

Do som que ela tem a cantar.

 

Ouvi-la alegra e entristece,

Na sua voz há o campo e a lida,

E canta como se tivesse

Mais razões para cantar que a vida.

 

Ah, canta, canta sem razão!

O que em mim sente está pensando.

Derrama no meu coração

A tua incerta voz ondeando!

 

Ah, poder ser tu, sendo eu!

Ter a tua alegre inconsciência,

E a consciência disso! Ó céu!

Ó campo! Ó canção! A ciência

 

Pesa tanto e a vida é tão breve!

Entrai por mim dentro! Tornai

Minha alma a vossa sombra leve!

Depois, levando-me, passai!

s/d

in Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (15ª ed. 1995).  – 108.

1ª publ. in Athena, nº 3. Lisboa: Dez. 1924.

 

 

Apêndice

Num registo mais ligeiro concluo com um Cantar de Ceifa por Lope de Vega (1562-1635), quem sabe, talvez semelhante ao cantar que desencadeou as reflexões poeticas que antes lemos.

 

Lope de Vega — Cantar de Ceifa

 

Tão branca tanto que eu era,

quando entrei para ceifar;

deu-me o sol, fiquei morena.

 

Tão branca soía eu ser

antes de vir a ceifar,

mas não quis o sol deixar

branco o fogo em meu poder.

No tempo do amanhecer

era eu brilhante açucena:

deu-me o sol, fiquei morena.

 

in Jorge de Sena, Poesia de  26 séculos, Fora do Texto, Coimbra, 1993.

 

Nota final

Perdem-se-me na memória os poemas publicados no blog. Para evitar duplicações, e quando a dúvida surge, pesquiso o blog para ver se algum dos poemas que vou transcrever já aqui está. Qual caixa de surpresas, o blog, muitas vezes vou de artigo em artigo, ora surpreendido, ora pasmado com o que escolhi, escrevi, e aqui encontro. Hoje foi uma dessas ocasiões. Na dúvida se já teria transcrito o poema de Fernando Pessoa [Ela canta, pobre ceifeira,], pesquiso o blog e eis que encontro o belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004) sobre a ceifeira Catarina Eufémia (1928-1954) (o leitor curioso encontra-o aqui). Não estando ainda no blog o poema de Pessoa, foi hoje a vez dele, e com companhia. Neste anterior artigo, além do poema de Sophia encontra-se também um poema de Luís Augusto Palmeirim (1825-1893), A Ceifeira, sobre uma ceifeira de pele morena, crestada pelo sol, e a sua beleza, eco talvez involuntário da anterior canção de Lope de Vega.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Pieter Bruegel, o Velho (ca. 1525–1569) A Colheita, de 1565, pertencente à colecção do Met (The Metropolitan Museum of Art) de New York.

 

 

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Cartas de amor, frio e morto papel — Soneto de Elizabeth Barrett Browning

12 Quinta-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Inglesa

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Edvard Munch, Elizabeth Barrett Browning, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira

Fernando Pessoa (1888-1935) deixou escrito sobre as cartas de amor provavelmente a visão definitiva do seu paradoxo: por um lado, as expressões da ternura nas Cartas a Ofélia, e por outro a lucidez de quem se sente incapaz de amar, no poema de Álvaro de Campos: Todas as cartas de amor são / Ridiculas. / Não seriam cartas de amor se não fossem / Ridiculas. / …

Não ficou por aqui o poeta e acrescentou-lhe a pungente visão de quem ama sem esperança na Carta da corcunda para o serralheiro.

Não se esgota em Pessoa a leitura poética das cartas de amor, e pelo blog aqui e ali exemplos há. Hoje é num soneto de Elizabeth Barrett Browning (1806-1861), em inspirada tradução do poeta Manuel Bandeira (1886-1968) que podemos ler:

 

As minhas cartas! Todas elas frio,

Mudo e morto papel! No entanto agora

Lendo-as, entre as mãos trêmulas o fio

Da vida eis que retomo hora por hora.

…

 

Encontrar as cartas de amor de uma paixão que existiu, desencadeia em catadupa as emoções de um tempo em que a felicidade se julgava possível para sempre, e a sua leitura faz reviver o desengano. Ei-lo contado por Elizabeth Barrett Browning. Primeiro na versão de Manuel Bandeira, e a seguir, o poema original:

 

 

Soneto

 

As minhas cartas! Todas elas frio,

Mudo e morto papel! No entanto agora

Lendo-as, entre as mãos trêmulas o fio

Da vida eis que retomo hora por hora.

 

Nesta queria ver-me — era no estio —

Como amiga a seu lado,,, Nesta implora

Vir e as mãos me tomar… Tão simples! Li-o

E chorei. Nesta diz quanto me adora.

 

Nesta confiou: sou teu, e empalidece

A tinta no papel, tanto o apertara

Ao meu peito, que todo inda estremece!

 

Mas uma… Ó meu amor, o que me disse

Não digo. Que bem mal me aproveitara,

Se o que então me disseste eu repetisse…

 

Tradução de Manuel Bandeira

in Manuel Bandeira, Estrela da Vida Inteira, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1993.

 

 

Sonnets from the Portuguese 28

 

My letters! all dead paper, … mute and white ! —

And yet they seem alive and quivering

Against my tremulous hands which loose the string

And let them drop down on my knee to-night.

This said, … he wished to have me in his sight

Once, as a friend: this fixed a day in spring

To come and touch my hand … a simple thing,

Yet I wept for it! — this, … the paper’s light …

Said, Dear, I love thee; and I sank and quailed

As if God’s future thundered on my past.

This said, I am thine — and so its ink has paled

With lying at my heart that beat too fast.

And this … O Love, thy words have ill availed,

If, what this said, I dared repeat at last!

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Edvard Munch (1863-1944), Noite de verão, Inger na praia, 1889.

 

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Pessoa, Lessing, e um soneto setecentista de reflexão agnóstica sobre a morte

10 Terça-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa Contemporânea

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Fernando Pessoa, Gotthold Ephraim Lessing, H. Bosch, Ingmar Bergman, Jan Provost, Manuel Rodrigues Maia

Provavelmente, mais que em qualquer época anterior, enfrentar a reflexão sobre o medo da morte, que não o medo de morrer, é acto de que se foge a sete pés. E, no entanto, ela, a morte, está sempre como possibilidade enquanto se vive. Morrer, é possível de muitas maneiras, e essa variedade retira acuidade à sua reflexão. Morrer é o caminho, a morte é o final. Ter medo da morte é viver em pânico constante, e este medo impedirá amar a vida mais. 

Fernando Pessoa enuncia a vantagem de pensar sobre a morte com a peculiaridade habitual: 

 

Quando, com razão ou sem,

Sobre o medo amplo da alma

A sombra da morte vem,

É que o espírito vê bem,

Com clareza mas sem calma,

Que sombra é a vida que passa,

Que mágoa é a vida que cessa,

E ama a vida mais.

10-2-1933

 

Após este prelúdio, passemos ao assunto de hoje: dois testemunhos poéticos setecentistas sobre como enfrentar a morte. No primeiro poema encontramos a desassombrada afirmação:

…

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

…

 

No segundo poema, o medo da morte é declarado, e iremos assistir a uma negociação para a adiar:

Ontem — crē-lo-eis amigo?

…

Vem a morte ter comigo.

…

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

…

 

 

Lia eu uma colecção de sonetos antigos e deparei-me com alguns sonetos sobre a morte. Num dos poemas, um soneto assinado Maia, talvez de Manuel Rodrigues Maia (?-1804) encontrei, não a reflexão filosófica em filme de Ingmar Bergman no seu O Sétimo selo que acabara de rever: indagação alegórica sobre o sentido da vida e o silêncio de Deus, onde a morte se personifica na figura assustadora que nos persegue em vida, e ter-lhe medo ou não, condiciona-nos inevitavelmente a existência; mas uma sua descrição em palavras que dá a medida desse monstro terrível que ninguém quer conhecer, e que ao morrer figuradamente se materializa:

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

…

 

Não estamos, evidentemente, perante a reflexão platónica sobre a morte a pretexto da morte de Sócrates, abordado por Platão no diálogo Fedon, nem sequer sobre a estóica reflexão desenvolvida por Cícero num dos Diálogos em Túsculo. Antes encontramos no resto do poema uma veemente defesa epicurista da vida pelo prazer. No soneto, que à frente transcrevo na totalidade, o nosso poeta setecentista aceita a chegada da morte sem arrependimentos de última hora:

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

 

O interessante no poema prende-se com a época em que foi escrito, o século XVIII. Época de profunda crença religiosa, e temor do além-vida pelo castigo dos pecados cometidos, afoitamente salpicada de agnósticos e ateus. No poema encontramos uma manifestação absoluta de agnosticismo, sem proclamações doutrinárias sobre a vida além-morte, tão só a afirmação da supremacia dos prazeres da vida sobre o horror da morte. Eis o soneto na totalidade:

 

 

Soneto

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

 

— Ah! chega, chega à misera morada, 

Aproxima teu gesto carrancudo; 

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

 

Eis-me convulso já; a voz perdendo; 

Ao lado um padre tolo, meu vizinho, 

E eu querendo me rir porém morrendo! 

 

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

Manuel Rodrigues Maia (?)

 

 

É diferente o que pela mesma época o poeta e filósofo do iluminismo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) nos traz no poema tangencialmente faustiano Der Tod (A Morte). Deixando também de lado as questões de além-morte, é o desejo absoluto de continuar a viver, a motivação do protagonista e assunto do poema. Mostra ele uma conversa fantasiada com a morte, ao chegar a sua hora:

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

…

 

Para o impedir propõe o poeta à morte outras vidas em troca dos prazeres do vinho e do amor até à saciedade:

…

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

…

 

Este desenlace é motivo de júbilo pois o poeta acredita que … Já de vinho e beijos farto. nunca estará, conseguindo assim vida eterna:

…

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

 

Na aparente ligeireza dos argumentos que dão sentido à vida, vamos encontrar a postura edonista dos nossos dias de que viver a vida vale a pena se for para ter prazer. E no caminho, para o conseguir, vale tudo.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing

A Morte

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

 

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

 

C’um sorriso vinho bota,

Diz, erguendo o copo ao ar:

“Viva a Peste! e a virar.”

E dum trago vaso esgota.

 

Eu já quite me julgava,

Eis que torna ela a dizer:

“Pobre louco! e podes crer

 Que por vinho te largava?”

 

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

 

— “Que suave linguagem!

Que nova vida me dais!

Vá um copo, um copo mais 

À nossa camaradagem!” 

 

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

Tradução de José Gomes Monteiro (séc.XIX)

 

 

E com estas reflexões brincadas sobre a morte termino, deixando o original do poema de G. E. Lessing recolhido na net, e que, espero, esteja correcto.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing 

 

Der Tod

 

Gestern, Brüder, könnt ihrs glauben?

Gestern bei dem Saft der Trauben,

(Bildet euch mein Schrecken ein!)

Kam der Tod zu mir herein.

 

Drohend schwang er seine Hippe,

Drohend sprach das Furchtgerippe:

Fort, du teurer Bacchusknecht!

Fort, du hast genug gezecht!

 

Lieber Tod, sprach ich mit Tränen,

Solltest du nach mir dich sehnen?

Sieh, da stehet Wein für dich!

Lieber Tod verschone mich!

 

Lächelnd greift er nach dem Glase;

Lächelnd macht ers auf der Base,

Auf der Pest, Gesundheit leer;

Lächelnd setzt ers wieder her.

 

Fröhlich glaub′ ich mich befreiet,

Als er schnell sein Drohn erneuet.

Narre, für dein Gläschen Wein

Denkst du, spricht er, los zu sein?

 

Tod, bat ich, ich möcht′ auf Erden

Gern ein Mediziner werden.

Laß mich: ich verspreche dir

Meine Kranken halb dafür.

 

Gut, wenn das ist, magst du leben:

Ruft er. Nur sei mir ergeben.

Lebe, bis du satt geküßt,

Und des Trinkens müde bist.

 

O! wie schön klingt dies den Ohren!

Tod, du hast mich neu geboren.

Dieses Glas voll Rebensaft,

Tod, auf gute Brüderschaft!

 

Ewig muß ich also leben,

Ewig! denn, beim Gott der Reben!

Ewig soll mich Lieb′ und Wein,

Ewig Wein und Lieb′ erfreun!

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do holandês Jan Provost (1465-1529), A morte e o avarento. Termino com a imagem da pintura do mesmo nome de H. Bosch (1450-1516), feita pela mesma época, e cuja imagem segue:

 

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Fernando Pessoa — O peso de haver o mundo

22 Quinta-feira Ago 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Alex Katz, Fernando Pessoa

Aqueles imprecisos nadas que vez por outra nos assaltam, e no seu inesperado criam uma insatisfação do existir, capta Fernando Pessoa (1888-1935) no poema  O peso de haver o mundo. É a sensação de um vago desejo de mudança, de que algo não bate certo na nossa vida, e também não sabemos como ultrapassar…

 

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.

…

 

Se persiste, torna-se problema, se pontual é tão só um saudável questionar do estável e adquirido, fazendo-nos perguntar: não há mais mundos?

…

Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?

…

 

No poema, a conhecida incapacidade para a acção que percorre a poesia de Pessoa, dá a dimensão que torna grave a insatisfação continuada:

 

… / Não sei, mas subitamente / Sinto a tristeza de estar / O sonho triste que há rente / Entre sonhar e sonhar.

 

Ao concluir com o verso : Entre sonhar e sonhar temos a medida dessa incapacidade para a acção, quando uma atitude saudável seria: Entre sonhar e agir. Mas aí não seria o poeta a falar, mas filosofia de vida explicitada.

 

 

O peso de haver o mundo

 

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.

 

Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?

 

Não sei, mas subitamente

Sinto a tristeza de estar

O sonho triste que há rente

Entre sonhar e sonhar.

 

19.05.1932

 

Transcrito de Quadras e Outros Cantares, Editora literária Teresa Sobral Cunha, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1997.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Alex Katz (1927), Passing, óleo s/tela de 1962. Pertence à colecção do MOMA de New York.

Este auto-retrato de Alex Katz, lembrando vagamente a figura conhecida de Fernando Pessoa, é em si a imagem mesma desse peso de haver o mundo de que fala o poema.

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Ricardo Reis — entre carpe diem e cadáver adiado que procria

17 Sexta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Ricardo Reis

Os versos impressivos não nos devem fazer esquecer a dimensão do real e o multifacetado que a vida é. No entanto, o gosto da língua tornada poesia tem um apelo por vezes irresistível, fazendo, se distraídos, a vida saber ao que a poesia conta. E hoje, Fernando Pessoa (1888-1935), por via do heterónimo Ricardo Reis quase nos convence da nossa nulidade e apagamento, no peculiar e recorrente entendimento do eu que atravessa a sua poesia:

…/ Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos. / …

ou ainda:

… / Que é qualquer vida? Breves sóis e sono. / …

 

Nos três poemas que escolhi e hoje transcrevo, surgem diferentes formas de, com ligeiras variações, dizer o mesmo: Nada fica de nada. Nada somos. / …

 

Logo no primeiro poema lemos:

 

… / No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.

 

para no segundo poema encontrarmos: Sereno aguarda o fim que pouco tarda. / …

 

e no poema com que encerro esta volta: … / O que fazemos é o que somos. .. / … cadáveres / Adiados que procriam.

 

 

O diálogo do que somos com o que lemos é parte essencial de um aprofundar do conhecimento de si, levando à reflexão sobre o porquê de certa leitura se nos acomodar e aqueloutra nos deixar indiferentes ou mesmo incomodar.

 

 

Eis os poemas:

 

 [Uns, com os olhos postos no passado]

 

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

A segurança nossa? Este é o dia,

Esta é a hora, este o momento, isto

É quem somos, e é tudo.

 

Perene flui a interminável hora

Que nos confessa nulos. No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

28-8-1933

 

Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.

 

 

[Sereno aguarda o fim que pouco tarda]

 

Sereno aguarda o fim que pouco tarda.

Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.

        Quanto pensas emprega

        Em não muito pensares.

 

Ao nauta o mar obscuro e a rota clara.

Tu, na confusa solidão da vida,

        A ti mesmo te elege

        (Não sabes de outro) o porto.

31-7-1932

 

Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.

 

 

[Nada fica de nada. Nada somos.] [2]

 

Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pesa

        Da húmida* terra imposta.

 

Leis feitas, estátuas altas, odes findas —

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

        Poente, porque não elas?

 

O que fazemos é o que somos. Nada

Nos cria, nos governa e nos acaba.

Somos contos contando contos, cadáveres

        Adiados que procriam.

28-9-1932

 

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.  – 168a.

* A edição Ática que referi antes lê no manuscrito humilde em vez de húmida.

 

 

Em apêndice, e como curiosidade para o leitor exigente, transcrevo outra versão do último poema:

 

[Nada fica de nada. Nada somos.] [1]

 

Nada fica de nada. Nada somos.

Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos

Da irrespirável treva que nos pese

        Da húmida* terra imposta,

Cadáveres adiados que procriam.

 

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —

Tudo tem cova sua. Se nós, carnes

A que um íntimo sol dá sangue, temos

        Poente, porque não elas?

Somos contos contando contos, nada.

28-9-1932

 

Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994.  – 168.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlo Carrá (1881-1966), O menino-prodígio, 1915.

 

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Saudade! Gosto amargo de infelizes

11 Segunda-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

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Almeida Garrett, António Botto, Bernardim Ribeiro, Bernardo de Passos, Fernando Pessoa, Geza Voros, Marquesa de Alorna, Sebastião da Gama

Saudade, que vos farei?
Pois vos não posso deixar,
por descanso vos busquei:
achei-vos para cansar.
…
(*)

 

A saudade, esse impalpável desejo do que se perdeu, por nós anda, associado à tristeza e ao desgosto.
Subtil e imprecisa, é a palavra perfeita para o complexo de sentimentos que nos assaltam no tempo, ao avivar de recordações e memórias, de pessoas, acontecimentos e lugares, com quem e onde fomos felizes.

Ó sino da minha aldeia,
…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(**)

 

A saudade passa na poesia sem cessar, por vezes de forma consciente e explícita. São sem fim os poemas onde ela transparece.
Se titulei o artigo com um verso de um poema de Almeida Garrett (1799-1854):

Saudade! Gosto amargo de infelizes.
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!

 

agora recuo um pouco no tempo, à poesia de métrica precisa, melodia irresistível, e pendor filosofante da Marquesa de Alorna (1750-1839), de quem não há muito trouxe ao blog uma glosa sobre a saudade.

 

Marquesa de Alorna — Sem título

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

 

Quando a memória o consente, nem sempre a saudade será tristeza, o que Sebastião da Gama (1924-1952) capta no poema Lembrança:

 

Lembrança

Foi naquela tarde,
já distante…

Mas foi tão nítido e tão vivo,
Amor!, o beijo que me deste,
que não consegue ser saudade.

Flor cálida, vermelha flor tenrinha
que nos lábios contentes me deixaste…

Triste, já o Outono se avizinha.

Só essa flor não quer tombar da haste…

 

Deixo-o agora, leitor, com dois poemas em que saudade e melodia do verso se enlaçam, ajudando com isso a sossegar as almas que a saudade atravessa.

Primeiro um poema de Bernardo de Passos (1876-1930), deliciosa brincadeira à volta da palavra pena: pena (desgosto) e pena (revestimento das aves):

 

Saudades…

Saudades de amor são penas
que nascem do coração…
É como a pena das aves,
quanto mais, mais brandas são!

Meu coração fez um ninho
como o das aves, perfeito,
juntando todas as penas
de que ele me encheu o peito…
E nesse ninho, a sonhar,
dorme, assim, horas serenas,
como dorme um passarinho
sobre o seu ninho de penas…

 

E por fim, uma canção de António Botto (1897-1959) escrita com uma mestria de sabor popular:

 

Canção

De saudades vou morrendo
E na morte vou pensando;
Meu amor, porque partiste
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão triste
Ó alegrias cantai!
Mas quem acode ao que eu digo?
— Enchei-vos d’água meus olhos,
Enchei-vos d’água, chorai!

 

Encerro este longo artigo com esperança, esperança de que, qual flor, a saudade há-de murchar como anseia a Marquesa de Alorna neste poema final:

 

Saudade

A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
É produção da tristeza.

Enquanto a saraiva, os Notos
Destes gelados países
Açoutam as plantas, cresce,
Lança profundas raízes;

Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a saudade há-de murchar.

 

Notas:
(*) Atribuído a Bernardim Ribeiro no manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, (cód. 11353).
(**) Fernando Pessoa, 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.
Os restantes poemas encontra-os o leitor em A Saudade na Poesia Portuguesa, seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Portugália editora, 1967.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher em vermelho, de 1933.

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No informe labirinto da poesia com Fernando Pessoa

18 Sexta-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Fernando Pessoa, Roy Liechtenstein

Escrever poesia tem como pontos de partida e chegada uma utilização virtuosa da língua, facto que hoje ilustro com dois poemas de Fernando Pessoa (1888-1935) num fascinante exercício de criatividade poética.
Partindo de um verso com as mesmas palavras — Dormi. Sonhei. No informe labirinto — e — Dormi, sonhei. No informe labirinto — Pessoa constrói dois poemas de diferente análise emocional. Desde logo, na pontuação destes versos: num, a pausa do ponto final em Dormi. seguido de Sonhei., identificando duas realidades específicas: dormir e sonhar; no outro verso Dormi, sonhei. separados por vírgula, mostrando um sonhar dormindo. E isso mesmo revelam os segundos versos de cada poema:

 

Dormi. Sonhei. No informe labirinto
Que há entre a vida e a morte me perdi.
…

 

Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
…

 

 

Se no primeiro poema citado, de 7/7/1930, é para o tempo de uma vida que o poeta remete, sendo este o informe labirinto que a percorre, no segundo poema, sem data, é o impalpável do sonho e o seu desnorte que envolve o narrador, aspectos que surgem clarificado nos restantes versos das primeiras quadras de cada poema:

 

Dormi. Sonhei. No informe labirinto
Que há entre a vida e a morte me perdi.
E o que, na vaga viagem, eu senti
Com exacta memória não o sinto.
…

 

Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
Em bosques de mim mesmo me embebi,
Misto indeciso do que vejo e sinto.
…

 

 

O primeiro poema termina com a consciência do engano das palavras na possibilidade de ganhar com elas o conhecimento de si:

…
Se quero achar-me em mim dizendo-o, minto.
…

 

No segundo poema, um soneto, há uma leitura menos taxativa do eu, remetendo o desenrolar do poema para a sua complexidade.

E assim, pela criatividade poética, o símil de um verso se desdobra numa multiplicidade de sentidos.

 

Eis os poemas na totalidade:

*
Dormi. Sonhei. No informe labirinto
Que há entre a vida e a morte me perdi.
E o que, na vaga viagem, eu senti
Com exacta memória não o sinto.

Se quero achar-me em mim dizendo-o, minto.
A vasta teia, estive-a e não a vi.
Obscuramente me desconcebi.
7-7-1930

 

 

**
Dormi, sonhei. No informe labirinto
Que há entre o mundo e o nada me perdi.
Em bosques de mim mesmo me embebi,
Misto indeciso do que vejo e sinto.

Estagno incorpóreo. No infiel recinto
Leio o transtorno do que nunca li,
E o labirinto nunca está em si,
Nem há mundo no incerto e abstracto plinto.

Minha alma é um ser que a verdade engana,
Memória da partida dos navios
Na praia que de espuma se engalana.

Não voltaram dos longes os sombrios
Barcos, e o luar mole deixa ver
A praia com a espuma a escurecer.
s/d

 

Poemas transcritos de Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Ática, Lisboa, 1973.

Abre o artigo a imagem de uma obra de Roy Liechtenstein (1923-1997).

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Fernando Pessoa no país dos sonhos

07 Segunda-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Magritte

Procurar o sonho na poesia de Fernando Pessoa(1888-1935) é uma viagem emocionalmente arriscada. Ele está lá, mas no deslaçado da existência no mundo da sua poesia, ele é o outro lado a que a vida não chega e do qual uma nostalgia às vezes sobrevive.

 

Ainda muito jovem, Fernando Pessoa na sua poesia desencantava-se da vida e do lugar onde a viver, em termos de pungente desolação:

 

 

Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
21-11-1909

 

 

 

Mais de vinte anos passados, e porque o sonho, embora triste, existiu, o poeta escreve ainda, metaforicamente, a esperança de que sobre o negro do girassol da vida, o seu amarelo lhe dê o calor que a infância espera dela:

 

 

Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.

Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.

Girassol do falso agrado
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.
18-4-1931

 

 

Adulto, e consciente de si, mesmo assim o sonhar não traz um sentido diferente à existência, conduzindo-a pelo caminho que vontade e desejo podem traçar:

…
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
 …

 

e ainda, no outro poema a seguir transcrito refere:

…
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
…

 

 

Eis os poemas citados:

 

 

*
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?
 
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
 
As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, estar em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.
 
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
 
Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
20-1-1933

 

 

**
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
24-8-1930

 

 

 

O confronto entre o eu poético de Fernando Pessoa e o mundo é sempre desencantado, se não mesmo amargo, e sonhos de que o futuro traga dias melhores não existem:

 

Lá fora a vida estua e tem dinheiro.
Eu, aqui, nulo e afastado, fico
O perpétuo estrangeiro
Que nem de sonhar já sou rico.
…

 

Ou como refere noutro poema:

…
Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
…

 

Estes são fragmentos de complexos poemas que transcrevo a seguir, interpeladores da existência, do estado do mundo, do papel do indivíduo nele, onde sonhos não têm lugar:

 

 

***
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.

Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol,
Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.

Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lembra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo
1-5-1931

 

 

****
Lá fora a vida estua e tem dinheiro.
Eu, aqui, nulo e afastado, fico
O perpétuo estrangeiro
Que nem de sonhar já sou rico.

Não sou ninguém, o meu trabalho é nada
Neste enorme rolar da vida cheia,
Vivo uma vida que nem é regrada
Nem é destrambelhada e alheia.

E um século depois terá esquecido
Tudo quanto estuou e foi ruído
Nesta hora em que vivo. E os bisnetos
Dos opressores de hoje, desta louca luta
Saberão, mas vagamente, a data
— E claramente os meus sonetos.
2-9-1922

 

 

Em todos estes poemas pressente-se o desejo de uma vida que não se viveu, e o medo de a sonhar traz consigo a dura e desencantada consciência do seu vazio, algo que o poema com que termino eloquentemente enuncia:

 

*****
Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim enclausurado flui.
Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só há de meu o que me vê agora —
O campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago aflora.
Sou tão parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde [o] vale se ergue para a encosta
Vai meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.
13-9-1934

 

Poemas transcritos de Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Edições Ática, 1973.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Magritte (1898-1967).

 

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Um desgosto de amor em quadras de Fernando Pessoa

20 Quinta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Marc Chagall

Sabem os leitores da poesia de Fernando Pessoa (1888-1935) quanto o poeta cultivou com talento, toda a vida, a quadra popular e o quarteto, usados em poemas tão famosos como p.ex. Canção: Sol nulo dos dias vãos / …, ou no poema Autopsicografia: O poeta é um fingidor / … .

Em Fevereiro de 1920 surgem algumas quadras dando conta de um desgosto de amor, supõe-se que por Ophélia Queiroz, a destinatária das famosas cartas de amor. Alguns poemas dão disso conta. Escolho dois: uma quadra, e uma sequência de três quadras. Mas antes do relato do desgosto amoroso, leiamos a fase da harmonia amorosa no desejo da sua constante fruição, numa saborosa descrição do desconforto da ausência da amada:  

 

Quando passo o dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.

 

 

Não se encontrando datada esta quadra, não avaliamos por aqui a distância entre esta impaciência e o desgosto do fim do enlevo amoroso relatado a 24.02.1920:

 

Meu amor já não me quer,
Já me esquece e me desama.
Tão pouco tempo a mulher
Leva a provar que não ama!

 

Aqui chegados, poderia supor-se que era apenas um arrufo de namorados, mas, afinal não fizeram as pazes, e dois dias depois, a 26.02.1920, o poeta derrama em verso a sua desilusão:

…
Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
…

 

 

Os complexos motivos da rotura com Ophélia Queiroz são matéria de vasta especulação entre especialistas. Por agora fiquemos tão só com a mágoa do apaixonado posta em poema, fazendo prova  da densidade de leituras a que o poeta nos habituou, relatando a sensação de abismo que atinge apaixonados nos momentos de rotura:

…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.
…

 

 

Eis o poema:

 

Revive ainda um momento
Na ‘sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri…

Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.

Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.

 

 

Anos mais tarde encontro este rememorar uma paixão  que, quiçá, terá sido a mesma:

 

Aquela tarde em que os dois fomos pela
Estrada, amorosos, o que é feito dela?
Jaz vista no passado como a folha
No caminho que vemos da janela
3-1-1934

 

E assim termino esta volta poética por amores e sua consequência num poeta pouco afeito a estes desabafos.

 

Transcrito de Quadras e Outros Cantares, Edição de Teresa Sobral Gomes, Relógio D’Água Editores, Lisboa ,1987.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Marc Chagall (1887-1985), Os Comediantes, acompanhando a postura do poeta entre a vida e a poesia: O poeta é um fingidor / … .

 

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Um frio de Inverno no calor do Verão — soneto 97 de Shakespeare e Pessoa pelo caminho

10 Segunda-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Fernando Pessoa, Quiringh van Brekelenkam, Shakespeare

O amor e os sonetos de Shakespeare (1564-1616) são um universo poético onde todas as possibilidades de expressão parecem residir. No soneto 97 temos uma engenhosa simbiose entre o calor erótico que a presença da amada pode trazer ou o frio que a sua ausência provoca, e os efeitos do ciclo das estações na natureza:

 

Foi como inverno a ausência que passei / de ti, …

 

Numa espécie de eco deste verso, encontro numa quadra de Fernando Pessoa (1888-1935) o dizer:

 

Quando passo o dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.

 

Por aqui se fica Pessoa, nesta ligeira quadra popular, embora o amorzinho dê pretexto a outras quadras neste ano de 1920, sobretudo as quadras de 24.02 e 26.02 que noutro artigo lerei.
Em Shakespeare, o relato é todo ele o de uma solidão amorosa, e os prazeres perdidos são por aqui lembrados:
…
Que frio e dias negros suportei!
Que nudez de Dezembro em tudo havia.
O tempo assim negado era de verão,
fecundo das colheitas que no outono
seus fardos de volúpia vernal dão,
…
Contudo essa abundância me surgia
como órfã prenhez só, …

 

E para que não restem dúvidas sobre o benefício da proximidade da amada, o poeta diz-nos a terminar:
…
que o verão seu prazer em ti se alia
e as aves quedam mudas se te vais.
…

 

 

Eis uma tradução portuguesa do soneto por Vasco Graça Moura, e o poema original:

 

 

Soneto XCVII

Foi como inverno a ausência que passei
de ti, que ao ir do ano és a alegria!
Que frio e dias negros suportei!
Que nudez de Dezembro em tudo havia.
O tempo assim negado era de verão,
fecundo das colheitas que no outono
seus fardos de volúpia vernal dão,
como ventres viúvos, morto o dono.
Contudo essa abundância me surgia
como órfã prenhez só, frutos sem pais
que o verão seu prazer em ti se alia
e as aves quedam mudas se te vais.
   Ou em seu canto triste as folhas tremem
   pálidas, porque perto o inverno temem.

Tradução de Vasco Graça Moura
in Os Sonetos de Shakespeare, versão integral, Bertrand Editora, 2007.

 

 

Sonnet XCVII

How like a winter hath my absence been
From thee, the pleasure of the fleeting year!
What freezings have I felt, what dark days seen!
What old December’s bareness everywhere!
And yet this time removed was summer’s time;
The teeming autumn, big with rich increase,
Bearing the wanton burden of the prime,
Like widow’d wombs after their lords’ decease:
Yet this abundant issue seemed to me
But hope of orphans, and unfathered fruit;
For summer and his pleasures wait on thee,
And, thou away, the very birds are mute:
   Or, if they sing, ‘tis with so dull a cheer,
   That leaves look pale, dreading the winter’s near.

Transcrito de The Oxford Shakespeare, Complete Sonnets and Poems, Oxford 2002.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do holandês Quiringh van Brekelenkam (1622-1666), Conversação sentimental.

 

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