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Canções de beber na obra de Fernando Pessoa

05 Quarta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Henri de Toulouse-Lautrec

Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
…

 

Tendo como ponto de partida a versão inglesa por Edward Fitzgerald, dos quartetos de Omar Khayyam (1048-1132), publicada em 1910, Fernando Pessoa (1888-1935) apropria-se dos poemas para nos dar a sua visão desolada e amarga da vida por volta de 1930:

…
Vamos vivendo, e somos o que somos
Até que a quem não somos morte acuda.

 

ou neste outro poema:

…
Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É do vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.

 

 

Nestas reflexões estamos longo da atmosfera de festa e alegria que o vinho induz, e em variados poemas que aqui trouxe no passado recente se regista.

Para o poeta, a festa parece não existir, mas, como tantas vezes na sua poesia, sob a desolada lucidez, se alegria não há, o sonho às vezes espreita:

…

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o seu mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
…

 

e a esperança é algo para cultivar:

…
Não queiras, com submissa segurança,
Ter saudade de ter esperança.
Tem antes saudade de a não ter.
…

 

Deixo-o, leitor, com a escolha poética:

 

 

*
Tudo o que passa, porque passa, é nada.
Tudo o que fica coisa é parada.
O que nem passa ou fica não existe.
Bebe, que não há estada nem há estrada.

Devoto do que já não sei o que é,
Ao templo fui pelo meu próprio pé.
Mas vi que o templo era uma taberna.
Ali fiquei ébrio da minha fé.

Doze vezes o sol amável muda
De signo e sem ajuda nos ajuda.
Vamos vivendo, e somos o que somos
Até que a quem não somos morte acuda.
5-11-1933

 

 

**
Quanto fui jaz. Quanto serei não sou.
No intervalo entre o que sou e estou
A natureza, exterior, tem sol.
Mas, se tem sol, há sol. Ao sol me dou.

Não queiras, com submissa segurança,
Ter saudade de ter esperança.
Tem antes saudade de a não ter.
Entre o que a paz te não dará descansa.

Nada ‘speres, que nada salvo nada
Obtém que ‘supera: é como quem à estrada
Lance olhos de esperar que alguém lhe chegue
Só porque a estrada é feita para andada.

Ninguém suporta o peso mau dos dias
Salvo por interpostas alegrias.
Bebe, que assim serás o intervalo
Entre o que criarás e o que crias.

Quantas vezes o mesmo poente alheio
Sobre meu sonho, como um sonho, veio.
Quantas vezes o tive por augusto.
Tantas, tornado noite, perde o enleio.

Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É do vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.
4-10-1932

 

 

***
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o seu mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade é a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza, e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, ‘star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer!
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de haver?
20-1-1933

 

Poemas transcritos de Canções de Beber na Obra de Fernando Pessoa, Edições de Arte, lda, Lisboa, 1997.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901).

 

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Fernando Pessoa — um fragmento de Livro do Desassossego

01 Domingo Jul 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Horst Antes

Tenho assistido, incognito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao sossobro lento de tudo quanto quis ser.
…
Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada, me não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim!

 

São de um texto datado de 2-9-1931 de Livro do Desassossego de Fernando Pessoa (1888-1935), estas linhas de abertura.
Ao ler muita da obra deixada inédita por Fernando Pessoa, e aos poucos publicada após a morte do poeta, somos tentados a concordar com o poeta no que mais à frente neste mesmo texto escreveu:

Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. Desenrolo-me em periodos e parágrafos, faço-me pontuações, e, na distribuição desencadeada das imagens, visto-me, como as crianças, de rei com papel de jornal, ou, no modo como faço ritmo de uma série de palavras, me touco, como os loucos, de flores secas que continuam vivas nos seus sonhos.

 

Onde está o homem, ser social e biológico, e o escritor, efabulador de existências, que em um momento ou outro da vida nos tocam de forma profunda e às vezes perene? É a interrogação a que legião de estudiosos se entrega de longa data. Para o leitor comum, o encontro com muito da obra de Pessoa é inevitavelmente um momento singular. Algures no presente ou no passado sentimos assim. Ou alguém perto de nós sentiu assim. E a poesia deixa de ser ornamento da vida, e explica-nos a nós, que de outro modo, às voltas, não nos entendemos.
O fragmento que tenho vindo a citar é mais um deles. Seguem alguns outros extractos:

 

 

2-9-1931
Tenho assistido, incognito, ao desfalecimento gradual da minha vida, ao sossobro lento de tudo quanto quis ser. Posso dizer, com aquela verdade que não precisa de flores para se saber que está morta, que não há coisa que eu tenha querido, ou em que tenha posto, um momento que fosse, o sonho só desse momento, que se me não tenha desfeito debaixo das janelas como pó parecendo pedra caída de um vaso de andar alto. Parece, até, que o Destino tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.

Espectador irónico de mim mesmo, nunca, porém, desanimei de assistir à vida. E, desde que sei, hoje, por anticipação de cada vaga esperança que ela há-de ser desiludida, sofro o gozo especial de gozar já a desilusão com a esperança, como um amargo com doce que torna o doce doce contra o amargo. Sou um estratégico sombrio, que, tendo perdido todas as batalhas, traça já, no papel dos seus planos, gozando-lhe o esquema, os pormenores da sua retirada fatal, na véspera de cada sua nova batalha.

…

Uns dizem que sem esperança a vida é impossivel, outros que com esperança é vazia. Para mim, que hoje não espero nem desespero, ela é um simples quadro externo, que me inclui a mim, e a que assisto como um espectáculo sem enredo, feito só para divertir os olhos — bailado sem nexo, mexer de folhas ao vento, nuvens em que a luz do sol muda de cores, arruamentos antigos, ao acaso, em pontos desconformes da cidade.

…

Quantas vezes, contudo, em pleno meio desta insatisfação sossegada, me não sobe pouco a pouco à emoção consciente o sentimento do vácuo e do tédio de pensar assim! Quantas vezes não sinto, como quem ouve falar através de sons que cessam e recomeçam, a amargura essencial desta vida extranha à vida humana — vida em que nada se passa salvo na consciencia dela! Quantas vezes, despertando de mim, não entrevejo, do exilio que sou, quanto fora melhor ser o ninguém de todos, o feliz que tem ao menos a amargura real, o contente que tem cansaço em vez de tédio, que sofre em vez de supor que sofre, que se mata, sim, em vez de se morrer!

…

 

Texto nº 193 na ed. Richard Zenith de Livro do Desassossego, edição Assírio & Alvim com ortografia actualizada, e nº 322 na ed Jerónimo Pizarro, edição Tinta da China, edição esta conservando a ortografia do poeta. Mantém o mesmo número da edição crítica de Fernando Pessoa, publicada pela INCM, com edição também de Jerónimo Pizarro.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Horst Antes (1936), Figura sentada, amarelo.

 

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O primeiro de DOIS EXCERTOS DE ODES de Pessoa / Alvaro de Campos

12 Terça-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa

Há no primeiro dos dois excertos de odes, poema de Fernando Pessoa/Alvaro de Campos, de 1914, uma volúpia nas palavras que precede a inteligibilidade do verso, e o mistério da poesia expõe-se como totalidade do mundo.

 

Embora o poema seja um todo coerente e orgânico, muito para além de quaisquer fragmentos, permito-me destacar alguns aspectos: quando o poema começa a fazer caminho em nós é o Não sou nada / Nunca serei nada / À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo … mais tarde lido em Tabacaria, que neste primeiro excerto de ode se esboça:

 

……
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
…
Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
…
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
…

 

 

Neste apelo ao sortilégio permanece o desejo de milagre que torne possíveis os sonhos pelo desaparecimento do mundo visível e da sua materialidade hostil, para finalmente apenas pedir a chegada da noite consoladora do enorme cansaço do mundo:

 

…
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
…
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração…
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.

 

 

Em todo o poema surge um desejo de integração cósmica do ser, procurando a diluição da singularidade do eu, e da sua irrelevância, no manto diáfano da noite onde todas as diferenças se esbatem.

 

Quanto todos nós lutamos com a noite e seus fantasmas!
Tantas vezes, é o contrário do apaziguamento que o poema afirma, o que a noite traz. Mas também sabemos quanto a noite pode ser consoladora, e gratos ficamos ao acordar.
É um mistério de todos os dias, e a que a poesia volta uma e outra vez.

 

 

 

 

[Primeiro de]
DOIS EXCERTOS DE ODES
(FINS DE DUAS ODES, NATURALMENTE)

 

……
Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

 

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer.

 

Nossa Senhora
Das coisas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela.
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto.
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos…
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos.
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que não saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma.
E um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

 

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e a vida pequena.
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

 

Vem, dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desprezados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos humildes.
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e de inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente,
Ao Oriente donde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo e fanático e quente,
Ao Oriente excessivo que eu nunca verei,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta,
Ao Oriente que tudo o que nós não temos.
Que tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde — quem sabe? — Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo…

 

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-o misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

 

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé antepé enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

 

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração…
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente com um gesto materno afagando.
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa sobre a tua face.
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar.
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

 

A lua começa a ser real.

30-6-1914

 

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Imóvel, desperto com A Partida

06 Sexta-feira Jan 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa

a-partida-500px

A partida

 

Com açúcar, com afecto,
O meu doce predilecto
Pra dizer na estação,
— Pela voz do coração:
Como eu amo você.

 

Vejam só o que me cantou na cabeça ao acordar hoje. Que surpresa!
Parcialmente imobilizado por um aleijão no tornozelo, nem música nem poesia me chamam. Com este despertar devo estar a melhorar.

Talvez a poesia em breve aqui regresse. Até lá há no blog bem mais de oitocentos artigos com poesia para saciar os mais sedentos. É só circular ao acaso por aqui.
Abro o apetite aos menos afoitos com um amuse-bouche pessoano, escrito por um jovem Fernando quando o mundo ainda girava ao som de valsas, as que agora são apenas de Ano Novo.

O artigo foi aqui publicado ainda na era pré-Trump que agora parte. Deixará o mundo antigo saudades?

 

Na minha ontologia pessoal surge por vezes a ideia de que Deus será uma entidade bem disposta apesar da perplexidade que nos assalta tantas das vezes que olhamos em redor. Penso até que uma vez por outra talvez se ria com algumas das criações das suas criaturas. Vem isto à conversa porque certo dia de angustiosas dúvidas fui levado a ler entre outros os textos de Fernando Pessoa que a seguir refiro. Fosse para me fazer rir, fosse para dar a ver que sob o mais circunspecto de cada personalidade pode sempre encontrar-se o inesperado, o que segue é que as gargalhadas afastaram as angustias da minha meditação.

Longe de assumpções metafísicas a que muitas vezes a poesia de Fernando Pessoa conduz, eis algumas brejeirices do poeta, tanto juvenis como da idade madura.

Entre os “Primeiros Outros” personagem imaginados por Pessoa, como lhes chamou Teresa Rita Lopes, surge-nos a abrir o Dr. Pancrácio de quem nos chegaram poesias do lado serio e algumas jocosas, qual este epigrama de 1905, tinha o poeta 17 anos:

Epigrama do Dr.Pancrácio

O poeta Brás Ferreira
Discute co’o primo Bento
Se kágado tem o acento
Na segunda ou na primeira.

Grita-lhe a mulher, “Ó Brás,
Acaba co’a discussão;
É bem facil a questão:
O assento está sempre atráz.”

[c. 17-09-1905]

Dando conta de uma profundidade diferente, aparece-nos, sem data, o Dr. Nabos, produtor de ditos de espírito merecedores de atenção, e de quem retenho este pensamento capaz de revolucionar geometrias:

Metaphysica do Dr. Nabos:

Quem sabe se duas paralelas se não encontram quando a gente as perde de vista? s/d

Passemos com a dúvida sobre o encontro das paralelas à certeza de que corpo sobre brasa queima. Como nesta história acontecida ao Soba de Biká:

O SOBA DE BIKÁ

Tra j édia

O soba de Biká, maravilhoso gajo,
Constantemente usava um admirável trajo
Que era feito de pele e de coisa nenhuma.
Havia uma harmonia entre ele e o trajo; em suma,
O soba de Biká, ou de noite ou de dia,
Era sempre da cor do trajo que vestia.
Mas o soba, coitado!, um dia em sua casa,
Sentou-se por descuido em cima de uma brasa,
E, em vez de gritar “Ai, minhas calças!”, “Uh!”,
Gritou ele, esquecendo o trajo, “ai o meu cu!”

Outro dos aspectos menos frequentes na obra do poeta é o amor e o sexo, mas para ele também lá temos qualquer coisa:

O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.

Acrescento esta enigmática evocação dos mistérios do sexo:

Um par de montes iguais
Abre a estrada do prazer.
Quem chega lá quer ver mais,
Quem vê mais nada mais quer.

Termino com uma prodigiosa definição aplicável ao incerto verão que temos tido.

DIFERENÇA DE PESSOA

Que lindo dia o que vemos!
Mas, como estes tempos vão,
É bom que não confiemos…
É melhor dizer que temos,
Não um dia de verão,
Mas um dia de veremos.

Os poemas foram transcritos de Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva al., Assírio & Alvim, Lisboa, 2006; Pessoa por conhecer II, Textos para um novo mapa, edição de Teresa Rita Lopes, Editorial Estampa, Lisboa, 1990; Poesia do Eu, antologia organizada por Richard Zenith, edição Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.

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Da Grécia Antiga, um Hino Órfico à Noite em versão de Herberto Hélder

01 Sexta-feira Abr 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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Antero de Quental, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Herberto Helder

Paul Klee - Cacodemonic 1916 550pxApenas a Noite, material ou simbólica, nos permite o encontro connosco na verdadeira intimidade do Eu.

Da aproximação do Eu à Noite deram conta os poetas; Fernando Pessoa/Álvaro de Campos com o poema Excertos de Duas Odes: Vem, Noite antiquíssima idêntica,… deu-o de forma genial, tal como genial é a versão de Herberto Hélder para um Hino Órfico à Noite vindo da antiga Grécia: …/ ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias, Mãe do sonho, /…, e que a seguir transcrevo.

Este poema, entre outras leituras, torna claro o apelo à harmonia que a noite permite: …/ escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena, / e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.

Outras menos encantadas invocações à noite haverá, mas não deixo de referir ainda, e mantendo-me na poesia em português, o genial poema de Antero de Quental, Per Amica Silentia Lunae: Eu amo a noite às horas sossegadas/…, recolhido no volume póstumo, Raios de Extinta Luz.

 

Hino Órfico à Noite

 

Cantarei a criadora dos homens e deuses — cantarei a Noite.

Noite, fonte universal.

Ó forte divindade ardendo com as estrelas, Sol negro,

invadida pela paz e o tranquilo e múltiplo sono,

ó Felicidade e Encantamento, Rainha das vigílias, Mãe do sonho,

e Consoladora, onde as misérias repousam as campânulas de sangue,

ó Embalador, Cavaleira, Luz Negra, Amiga Geral,

ó Incompleta, alternadamente terrestre e celeste,

ó Arredondada no meio das forças tenebrosas,

leve afastando a luz da casa dos mortos e de novo te afastando tu própria.

A terrível Fatalidade é a mãe de todas as coisas,

ó Noite Maravilhosa, Constelação Calma, Ternura Secreta do Tempo,

escuta, ó Indulgente Antiga, a imploração terrena,

e aparece com teu rosto obscuro e lento no meio dos vivos terrores do mundo.

 

Versão de Herberto Hélder

Transcrito de Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Paul Klee (1879-1940).

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Ricardo Reis — Nunca a alheia vontade, inda que grata, cumpras por própria

21 Domingo Fev 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Curvo Semedo, Fernando Pessoa, Filinto Elísio, George de La Tour, José Régio, La Fontaine, Ricardo Reis

George de La Tour (1593-1652)- Ler a Sina (1632-1635) 600pxDe vez em quando Pessoa: hoje um convite assinado Ricardo Reis para a afirmação do eu independente.

Num mundo amplamente condicionante das escolhas de cada um por modas, juízos sociais e pressões afectivas, afirmar o eu é uma tarefa que só na aparência se tem por conseguida. Antes de escolher, olhamo-nos no espelho dos outros, por mais que nos confortemos com a ilusão da nossa singularidade.

 

 

116

Nunca a alheia vontade, inda que grata,

Cumpras por própria. Manda no que fazes,

Nem de ti mesmo servo.

Ninguém te dá quem és. Nada te mude.

Teu íntimo destino involuntário

Cumpre alto. Sê teu filho

 

19-11-1930

 

 

Diz-se neste poema o mesmo que José Régio (1901-1969) exclamava em 1925 no poema Cântico Negro:

 

Ninguém me diga: “vem por aqui”!

 

…

 

Não sei por onde vou,

 

Não sei para onde vou

 

–  Sei que não vou por aí!

 

 

No tempo em que as fábulas eram prezadas como veículos de aprendizagem de valores e comportamentos, era popular uma versão simplificada da fábula de La Fontaine sobre O velho, o rapaz, e o burro, dando exactamente conta do sem sentido de governarmos o nosso comportamento pela opinião dos outros.

 

O velho, o rapaz, e o burro

 

O mundo ralha de tudo,

Tenha ou não tenha razão,

Quero contar uma história

Em prova desta asserção.

 

Partia um velho campónio

Do seu monte ao povoado;

Levava um neto que tinha,

No seu burrico montado.

 

Encontra uns homens que dizem:

“Olha aquela que tal é!

Montado o rapaz, que é forte,

E o velho, trôpego, a pé!

 

— Tapemos a boca ao mundo,

O velho disse; — rapaz,

Desce do burro, que eu monto,

E vem caminhando atrás.”

 

Monta-se, mas dizer ouve,

“Que patetice tão rata!

O tamanhão, de barrinha,

E o pobre pequeno à pata!

 

— Eu me apeio, diz, prudente,

O velho de boa fé;

Vá o burro sem carrego,

E vamos ambos a pé.”

 

Apeiam-se, e outros lhes dizem:

“Toleirões, calcando a lama!

De que lhes serve o burrinho?

Dormem com ele na cama?

 

— Rapaz, diz o bom do velho,

Se de irmos a pé murmuram,

Ambos no burro montemos,

A ver se inda nos censuram.”

 

Montam, mas ouvem de um lado:

“Apeiem-se almas de breu,

Querem matar o burrinho?

Aposto que não é seu!

 

— Vamos ao chão, diz o velho,

Já não sei que hei-de fazer!

O mundo está de tal sorte,

Que se não pode entender.

 

É mau se monto no burro,

Se o rapaz monta, mau é;

Se ambos montamos é mau,

E é mau se vamos a pé!

 

De tudo me têm ralhado;

Agora que mais me resta?

Peguemos no burro às costas,

Façamos inda mais esta!

 

Pegam no burro; o bom velho

Pelas mãos o ergue do chão,

Pega-lhe o rapaz nas pernas,

E assim caminhando vão.

 

“Olhem dois loucos varridos!

Ouvem com grande sussurro, —

Fazendo mundo às avessas,

Tornados burros do burro!”

 

O velho então pára, e exclama:

“Do que observo me confundo!

Por mais que a gente se mate,

Nunca tapa a boca do mundo.

 

Rapaz, vamos como dantes,

Sirvam-nos estas lições:

É mais que tolo quem dá

Ao mundo satisfações.”

 

Nota bibliográfica e iconográfica

 

Ricardo Reis (nascimento fictício em 19 de Setembro de 1887), Poesia, edição de Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000. O número do poema é o da edição mencionada.

O poema de José Régio foi publicado em Poemas de Deus e do Diabo (1925), e pode ser encontrado no blog acompanhado de uma sua retumbante leitura por João Villaret.

A versão da fábula de La Fontaine, transcrita de uma edição das suas fábulas recreadas em português (Ed. Minerva, Lisboa, s/d), vem atribuída a Curvo Semedo (1766-1838). Infelizmente, nas edições das obras deste poeta que conheço, não encontrei tal versão.

A fábula de La Fontaine (1621-1695) abre o Livro III das Fábulas e chama-se O Moleiro, o Filho e o Burro. Filinto Elísio (1734-1819) traduziu a fábula integralmente em verso branco e consta da edição das suas Obras Completas, Vol VI, Paris, 1818.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de George de La Tour (1593-1652), A Cartomante.

Jogo de olhares e manifestação simultânea de crendice e velhacaria: enquanto a cartomante prende a atenção do rapaz, ávido de saber o que o espera na vida, as duas jovens aproveitam para o roubar. A composição desenvolve-se de forma magistral entre a linguagem dos olhares e a linguagem das mãos, devolvendo todas as cambiantes do significado da cena. Cena de costumes e armadilha exemplar do jovem aprendiz das ratoeiras da vida.

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De dragões e outros figurões a O Mostrengo de Fernando Pessoa

28 Segunda-feira Dez 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Fernando Pessoa

Raphael - S Jorge e o Dragão 600pxPor este tempo de Natal, ao querer comprar uma prenda para uma criança da família, disseram-me da paixão do miúdo por dinossauros e outros monstros. Lembrei-me de quando o meu filho pelos sete/oito anos vivia apaixonado pelos monstros da moda, à época, umas chamadas tartarugas Ninja, e, depois, dinossauros, seguidos de toda uma galeria que lhes sucedeu, e certamente se reproduzirá ad seculum seculorum.

A um adulto como eu, o que chama primeiro a atenção é a estética do feio apanágio das figuras, o que parece deixar os infantes indiferentes. Com efeito, pensando na coisa sem preparação de especialista, concluo que para os miúdos aqueles seres corporizam o assustador do mundo por conhecer e, simultaneamente, nas suas acções, permitem à criança que joga e brinca, viver intensamente actos de coragem e bravura que significam a aprendizagem de vencer o medo e enfrentar o desconhecido que crescer na verdade é.

É ainda com a memória dessa época que recordo o entusiasmo com que o meu filho ouviu ler o poema O Mostrengo de Fernando Pessoa incluído no livro Mensagem. Nele, é também uma figura monstruosa e aparentemente invencível que, enfrentada pela pequenez de um capitão de coragem, é derrotada. Afinal a repetição da história bíblica de David e Golias.

A descrição poética do episódio do Adamastor em Os Lusíadas de Luís de Camões, para onde o poema O Mostrengo remete, é, do ponto de vista da infância, e para lá da dificuldade vocabular, totalmente diferente, ao que julgo. Em Camões, é tão só um relato de terror perante o monstro o que temos, reduzindo, por isso o apelo do episódio do Adamastor para estes jovens aprendizes da vida, pois, ao que suponho, é no desenlace por coragem que a atracção infantil por estes monstros reside.

Deixo-o, leitor, com os poemas.

 

O Mostrengo

 

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.

«Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!»

 

Fernando Pessoa, in Mensagem

 

Camões, Os Lusíadas, Canto V

 

Estrofes 37- 40

 

 

37

«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca de outrem navegados,

Prosperamente os ventos assoprando,

Quando hüa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

Hüa nuvem, que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

 

38

«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

“Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?”

 

39

«Não acabava, quando hüa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

 

40

«Tão grande era de membros, que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

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Constipações e a receita de Pessoa/Álvaro de Campos

22 Domingo Nov 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Álvaro de Campos, Fernando Pessoa

PronkinNeste Outono de quatro estações, uma grande constipação pode surgir a qualquer de nós, razão para o meu recente prolongado silêncio no blog.

Ao remédio conhecido de mimos e sumo de laranja acrescentei a receita do engenheiro, Álvaro de Campos de seu nome: Preciso de verdade e de aspirina.

A aspirina busquei na farmácia; à verdade, essa vasculhei entre filósofos da minha estima, com Kant e Popper à cabeça. E o que inicialmente foi uma brincadeira com constipação até à metafísica, cresceu bem para lá de qualquer faculdade de julgar, levando-me a febre ao delírio, onde acabei por me perder em conjecturas e refutações, para afinal concluir que é à medida que a vida corre que percebemos como ela é uma busca inacabada.

Aqui chegados, instala-se a dúvida, já nem metódica, mas sistemática, e acabamos por tomar decisões apenas com a certeza do incerto.

Como se compreende, com tamanha barafunda, a poesia, que é sobretudo matéria do sonho, ficou sem espaço enquanto circulei por este país da lógica, tendo até concluído que a crise (em luta com a verdade) não se vence com poesia, porque a poesia não vence nada, a não ser o desanimo, devolvendo às vezes o gosto de estar vivo.*

Vamos então à receita de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos:

 

Tenho uma grande constipação,

E toda a gente sabe como as grandes constipações

Alteram todo o systema do universo,

Zangam-nos com a vida,

E fazem espirrar até à metaphysica.

Tenho o dia perdido cheio de me assoar.

Doe-me a cabeça indistinctamente.

Triste condição para um poeta menor!

Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.

O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

 

Adeus para sempre rainha das fadas!

As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.

Não estarei bem se não me deitar na cama.

Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez du peu… Que grande constipação physica!

Preciso de verdade e de aspirina.

 

 

Nota bibliográfica

Transcrevi, conservando a ortografia, a leitura feita por Teresa Rita Lopes do dactiloscrito datado de 14/3/1931, e sem atribuição de autoria, existente no espólio do poeta. Este poema foi publicado com o nº145 na 2ªedição de ÁLVARO DE CAMPOS  LIVRO DE VERSOS, Edição Crítica, organizado por Teresa Rita Lopes e editado por Editorial Estampa, Lisboa1994.

* esta é uma versão ligeiramente modificada do texto publicado anteriormente no blog em Maio de 2010, desencadeado pelas mesmas causas, mas com enquadramento diferente: nessa data com poemas de Manuel Alegre.

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Pessoa e o mistério dos inéditos

07 Quarta-feira Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Almada negreiros, Fernando Pessoa

Fernando Pessoa 1964

Embora possa parecer redundante apresentar Fernando Pessoa, o universo alargado da web pode trazer ao blog leitores não familiarizados com a sua biografia, daí a pequena resenha em jeito de introdução.

Pessoa às vezes era uma pessoa muito deprimida e por vezes pensava:

Não sou nada/nunca serei nada

…

mas depois mudava, e mais alegre dizia:

Áparte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Isto acontecia quando julgava ser Álvaro de Campos, um engenheiro nascido em Tavira como eu, que escreveu coisas amargas. Outras vezes mais bem disposto o Sr. Pessoa vestia a pele de Alberto Caeiro e imaginava as coisas mais mirabolantes como Tive um sonho como uma fotografia / …, certamente conhecem o resto.

Andava sempre muito distraído com as poesias que tinha na cabeça. Ia a andar, parava, tirava um papelinho do bolso e escrevia o que lhe surgia na cabeça. Gostava de ser muitas pessoas já desde rapaz.

Um dia foi a casa do amigo Almada, pintor e poeta também. Depois de comer pouco porque era magrinho, e beber um bocado, desapareceu e nunca mais se viu.

Foi no outro dia, quando visitava o Museu, que olhando com atenção para a pintura de Almada representando Fernando Pessoa à secretária, o extraordinário aconteceu,

Ouço: Pst, pst, e nem percebo de onde vem. Olho em redor perplexo, pois a sala estava vazia a menos do segurança ao fundo, e então, virando-me para o quadro de novo, a figura de Fernando Pessoa piscou-me o olho, e quando o segurança pareceu ausentar-se, fez-me sinal para me aproximar, e diz-me ele à queima-roupa:

–        Já o tenho visto várias vezes a olhar-me atentamente e tenho tido vontade de lhe falar, mas os seguranças andam sempre por aí de nariz no ar e não me atrevi, mas hoje vi que o dali da porta foi à casa de banho e aproveitei para conversar um pouco.

Entabulámos conversa, e a primeira coisa que lhe perguntei foi porque tinha desaparecido sem dizer nada a ninguém.

–        Naquela festa em casa do Almada tinha bebido um bocado a mais e tive uma ideia fascinante que não queria perder. O meu bloco de bolso estava cheio e toda a gente estava mais ou menos alegre ou a dançar. Para não incomodar  ninguém fui à procura de papel. Abri uma porta e era o estúdio do Almada. Tinha uma tela grande no cavalete onde já estava pintada uma mesa. Devia ser uma natureza morta pois a mesa estava ali em posição com cadeira papel e tinta a servir de modelo. Sentei-me e comecei a escrever, mas devo ter adormecido pois quando acordei estava dentro desta tela onde tenho passado a vida. Não desgosto. As cores são alegres e há sempre muita gente aqui à volta a vê-la.

Continuámos a conversar e a certa altura disse-lhe quanto apreciava a poesia dele e de passagem referi:

– Sabe que andei a ler a sua correspondência?

– O senhor é um bisbilhoteiro, disse com um risinho.

– E encontrei uma carta enviada de Portalegre quando o senhor estava bem bebido, é o Sr. que o diz.

Venerável porção de existência terrena, escreve o senhor ao destinatário, para mais à frente referir: ”Portalegre é um lugar onde tudo quanto um forasteiro pode fazer é cansar-se de não fazer nada. As suas qualidades componentes parecem-me conter (depois de uma profunda e cuidada análise), em quantidades relativas e incertas, calor, frio, semi-espanholismo e nada. …” e acrescenta-lhe um poema para terminar. Bem injusto diga-se de passagem, no que ao Alentejo respeita:

O Alentejo (visto do comboio)

Nada, tendo nada em seu redor

E, de permeio, algumas árvores somente

Nenhuma delas verde claramente

onde nada aparece, rio ou flor.

Se acaso há um inferno, ele aqui está.

Pois, se não aqui, onde o Diabo estará?

O que me fartei de rir ao lê-lo. Gostei sobretudo da “Venerável porção de existência terrena”

– Devo tê-la escrito há muito tempo pois nem me lembro de ter ido ao Alentejo.

A conversa continuou e perguntei-lhe se nunca saía dali.

– Durante o dia, enquanto o museu está aberto, não saio senão as pessoas vinham ver-me e encontravam o quadro com um vazio no meu lugar. Depois de fechar, sobretudo no verão, gosto de ir até ao Chiado e fico dentro da estátua que me fizeram junto à Brasileira vendo quem passa. Sobretudo gosto quando as turistas fazem fotografias agarradas a mim. Estou sempre calado, nunca digo nada. Uma vez uma rapariga sentou-se-me no colo e segredou-me ao ouvido:

–        Gosto tanto de ti! Se fosses de carne e osso casava-me contigo. Quase me derreti com aquela declaração de amor. Era tal qual a a voz da Ofelinha naquela idade, e como eu gostava de ter casado com ela, sabe?

Também li as suas cartas de amor, disse-lhe. As que lhe escreveu e as que recebeu. E não concordo nada consigo nessa de que “Todas as cartas de amor são ridículas. / Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas.”

– Não pode ser. Quem teve o atrevimento de as publicar? Isso não se faz. São coisas intimas, não são coisas para toda a gente saber. Mas já que são públicas, o que é que achou? Ela gostava de mim? Ainda não sei de deveria ter casado com ela. A certa altura pensei que podia casar com a filha da minha lavadeira, talvez fosse feliz …

Mas voltando aos passeios. No inverno não vou para o Chiado porque está frio e chove, o que não é nada bom para o reumático que já me vai aparecendo, não sei se da idade, se de estar tanto tempo aqui sentado a esta secretária. Vou então às vezes à estação do metro de Alto de Moinhos ver as pessoas. Mas à hora a que fico livre aqui do museu já há pouca gente a não ser nas noites de futebol e aí sim, é uma alegria. Por acaso não sabe quando é que são os jogos? Como eu aqui não leio jornais nem vejo televisão não sei as datas e só por acaso é que acerto nos dias dos jogos. Mas é um espectáculo que vale a pena. Ainda ontem aconteceu e foi uma festa. Comi e bebi com quem lá estava, o que não me acontecia há anos. E devo ter comido qualquer coisa que me fez mal. Parece-me até que estou a precisar de ir à casa de banho urgentemente. Importa-se de me substituir aqui um bocadinho no quadro?

Devo ter olhado para ele espantado e aterrorizado, pois gargalhou e disse-me:

– Não se assuste, estava só a brincar consigo. Continuando, na estação do metro aquele rapaz, o Julio Pomar, já não me conheceu, mas fez uns desenhos por fotografia, talvez, e saiu-se bem. Gosto de lá estar.

– Já que estamos nesta conversa tão franca posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?

– Claro que pode, se não me apetecer não respondo.

– Qual é o mistério da arca dos seus escritos em que os inéditos nunca mais acabam?

Riu-se com uma risadinha casquinada e respondeu:

– O que pensa que faço sentado a esta secretária? Que escrevo cartas comerciais em inglês? Isso já acabou. Agora quem as escreve é o Bernardo Soares, não sei se conhece.

– Conheço sim, é o do livro que o fez a si famoso no mundo, não é?

– Esse mesmo. Pois as cartas escreve-as ele, eu aqui escrevo, prosa, poesia, o que me passa pela cabeça. Quando tenho oportunidade pego no que escrevi que me agrada e vou até à arca. Ponho os papeis no fundo, remexo-os e no dia seguinte o pessoal que está a decifrar os papeis leva as mãos à cabeça por não saber o que fazer. Aparecem papeis sobre a mesma coisa ligeiramente diferentes pois eu ás vezes esqueço-me do que escrevi e volto a escrever a mesma coisa de forma parecida e eles não decidem qual escolher, o que é natural. O que eu me rio só de pensar na cara deles. Bem gostava de estar lá para ver. Sobretudo quando encontrarem o papel que lá deixei ontem, inspiração de fim de festa.

Olhe, o segurança já vem de volta, vou ter que me calar para não o confundir. Se me ouve a falar ainda toca o alarme assustado, pensando que enlouqueceu, coitado. Volte mais vezes para conversar um pouco.

E voltou à posição em que estava no quadro.

O segurança aproximou-se de mim e com bons modos perguntou:

– O senhor está a sentir-se bem?

– Estou óptimo, porquê?

– Ao longe vi-o fazer gestos e pareceu-me que estava até a falar com o quadro, pelo que pensei que talvez alguma coisa não estivesse bem.

– Está tudo bem, obrigado. Virei costas e continuei a visita.

Depois destes extraordinários acontecimentos fui surpreendido com a noticia de jornal sobre mais um inédito, e não resisti a uma enorme gargalhada. Rezava assim:

Entre os papeis do poeta foi descoberto um inédito.

Numa folha branca aparece, a um terço da altura, o poema descoberto.

Modelo de simplicidade, consiste tão só numa vírgula cortada pela metade. Alvoroçou especialistas com o seu significado.

Foi convocado um congresso. Podem até dia vinte entregar-se comunicações.

Nota iconográfica

A pintura de José de Almada Negreiros (1893-1970),  Retrato de Fernando Pessoa, 1964, pretexto desta conversa pertence à colecção do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian.

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Em Tavira por Dezembro, também com Fernando Pessoa

06 Terça-feira Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, Tavira

Tavira 015 7O poema de Fernando Pessoa — NOTAS SOBRE TAVIRA — que hoje transcrevo, é uma meditação de meio da vida, no confronto de uma paisagem urbana de infância com os sonhos aí sonhados, perante a realidade reencontrada:

…

Paro deante da paisagem, e o que vejo sou eu.

Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos —

Senhor do mundo —

É aos 41 que desembarco do comboio indolentao.

O que conquistei? Nada.

Nada, aliás, tenho a valer conquistado.

Trago o meu tédio e a minha fallencia physicamente no pesar-me mais a mala…

Tavira 015 3

Lemos nele uma reflexão sobre a passagem do tempo desligada da realidade física da cidade hoje, ainda que o velho, que se fez novo, permaneça:

…

Tudo é velho onde fui novo.

Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.

A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.

…

Tavira 015 0Nestes dias de deslumbrante luz, passeei demoradamente em Tavira. Se por um lado os lugares me acendem a memória, por outro, é o conforto de uma continuidade cultural a que chamaria raízes, que a cada volta de uma esquina se revela.

Tavira 015 1Em longos, saboreados e encantados passeios, surpreendi vistas novas de panoramas que comigo vivem desde a infância, e ao olhar outra vez o mesmo, é a dignidade na modéstia da paisagem urbana que intensamente me comove.

Tavira 015 2

Tavira 015 6O branco das paredes exposto ao brilho de um sol intenso, entontece a vista numa inesperada embriguês com o azul do céu em fundo, e de cada ruela espreita em volumes de sábia arquitectura, o jogo dos telhados plantados de rendilhadas chaminés.

Tavira Jan2015 7 500pxTavira e Fernando Pessoa, por via de Álvaro de Campos, são hoje uma associação mental e turística que a cidade cultiva, sendo que esta cruza pontualmente a sua obra.

Tavira 015 5

NOTAS SOBRE TAVIRA

 

[Ms.]                                                   8/12/1931

 

Cheguei finalmente á villa da minha infancia.

Desci do comboio, recordei-me, olhei, vi, comparei.

(Tudo isto levou o espaço de tempo de um olhar cansado).

Tudo é velho onde fui novo.

Dede já — outras lojas, e outras frontarias de pinturas nos mesmos predios —

Um automovel que nunca vi ( não os havia antes)

Estagna amarello escuro ante uma porta entreaberta.

Tudo é velho onde fui novo.

Sim, porque até o mais novo que eu é ser velho o resto.

A casa que pintaram de novo é mais velha porque a pintaram de novo.

Paro deante da paisagem, e o que vejo sou eu.

Outrora aqui antevi-me esplendoroso aos 40 anos —

Senhor do mundo —

É aos 41 que desembarco do comboio indolentao.

O que conquistei? Nada.

Nada, aliás, tenho a valer conquistado.

Trago o meu tédio e a minha fallencia physicamente no pesar-me mais a mala…

De repente avanço seguro, resolutamente.

Passou toda a minha hesitação

Esta villa da minha infancia é afinal uma cidade estrangeira.

(Estou á vontade, como sempre, perante o estranho, o que me não é nada)

Sou forasteiro, tourist, transeunte.

É claro: é isso que sou.

Até de mim, meu Deus, até de mim.

Tavira Jan2015 3 500px

Conservei a ortografia do original.

 Tavira Jan2015 91 500px

NOTAS SOBRE TAVIRA é um poema não assinado, nem incluído no envelope A. de Campos no espólio da Biblioteca Nacional, e foi pela primeira vez publicado por Teresa Rita Lopes em 1990, quase em simultâneo nos livros álvaro de campos Vida e Obras do Engenheiro e no precioso Pessoa por conhecer, Textos para um novo mapa, ambos edição de Editorial Estampa.

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