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A partida
Com açúcar, com afecto,
O meu doce predilecto
Pra dizer na estação,
— Pela voz do coração:
Como eu amo você.
Vejam só o que me cantou na cabeça ao acordar hoje. Que surpresa!
Parcialmente imobilizado por um aleijão no tornozelo, nem música nem poesia me chamam. Com este despertar devo estar a melhorar.
Talvez a poesia em breve aqui regresse. Até lá há no blog bem mais de oitocentos artigos com poesia para saciar os mais sedentos. É só circular ao acaso por aqui.
Abro o apetite aos menos afoitos com um amuse-bouche pessoano, escrito por um jovem Fernando quando o mundo ainda girava ao som de valsas, as que agora são apenas de Ano Novo.
O artigo foi aqui publicado ainda na era pré-Trump que agora parte. Deixará o mundo antigo saudades?
Na minha ontologia pessoal surge por vezes a ideia de que Deus será uma entidade bem disposta apesar da perplexidade que nos assalta tantas das vezes que olhamos em redor. Penso até que uma vez por outra talvez se ria com algumas das criações das suas criaturas. Vem isto à conversa porque certo dia de angustiosas dúvidas fui levado a ler entre outros os textos de Fernando Pessoa que a seguir refiro. Fosse para me fazer rir, fosse para dar a ver que sob o mais circunspecto de cada personalidade pode sempre encontrar-se o inesperado, o que segue é que as gargalhadas afastaram as angustias da minha meditação.
Longe de assumpções metafísicas a que muitas vezes a poesia de Fernando Pessoa conduz, eis algumas brejeirices do poeta, tanto juvenis como da idade madura.
Entre os “Primeiros Outros” personagem imaginados por Pessoa, como lhes chamou Teresa Rita Lopes, surge-nos a abrir o Dr. Pancrácio de quem nos chegaram poesias do lado serio e algumas jocosas, qual este epigrama de 1905, tinha o poeta 17 anos:
Epigrama do Dr.Pancrácio
O poeta Brás Ferreira
Discute co’o primo Bento
Se kágado tem o acento
Na segunda ou na primeira.
Grita-lhe a mulher, “Ó Brás,
Acaba co’a discussão;
É bem facil a questão:
O assento está sempre atráz.”
[c. 17-09-1905]
Dando conta de uma profundidade diferente, aparece-nos, sem data, o Dr. Nabos, produtor de ditos de espírito merecedores de atenção, e de quem retenho este pensamento capaz de revolucionar geometrias:
Metaphysica do Dr. Nabos:
Quem sabe se duas paralelas se não encontram quando a gente as perde de vista? s/d
Passemos com a dúvida sobre o encontro das paralelas à certeza de que corpo sobre brasa queima. Como nesta história acontecida ao Soba de Biká:
O SOBA DE BIKÁ
Tra j édia
O soba de Biká, maravilhoso gajo,
Constantemente usava um admirável trajo
Que era feito de pele e de coisa nenhuma.
Havia uma harmonia entre ele e o trajo; em suma,
O soba de Biká, ou de noite ou de dia,
Era sempre da cor do trajo que vestia.
Mas o soba, coitado!, um dia em sua casa,
Sentou-se por descuido em cima de uma brasa,
E, em vez de gritar “Ai, minhas calças!”, “Uh!”,
Gritou ele, esquecendo o trajo, “ai o meu cu!”
Outro dos aspectos menos frequentes na obra do poeta é o amor e o sexo, mas para ele também lá temos qualquer coisa:
O amor é que é essencial.
O sexo é só um acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente.
Acrescento esta enigmática evocação dos mistérios do sexo:
Um par de montes iguais
Abre a estrada do prazer.
Quem chega lá quer ver mais,
Quem vê mais nada mais quer.
Termino com uma prodigiosa definição aplicável ao incerto verão que temos tido.
DIFERENÇA DE PESSOA
Que lindo dia o que vemos!
Mas, como estes tempos vão,
É bom que não confiemos…
É melhor dizer que temos,
Não um dia de verão,
Mas um dia de veremos.
Os poemas foram transcritos de Poesia 1931-1935 e não datada, ed. Manuela Parreira da Silva al., Assírio & Alvim, Lisboa, 2006; Pessoa por conhecer II, Textos para um novo mapa, edição de Teresa Rita Lopes, Editorial Estampa, Lisboa, 1990; Poesia do Eu, antologia organizada por Richard Zenith, edição Assírio & Alvim, Lisboa, 2006.