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Poemas sobre gatos — Appolinaire e Szymborska

02 Terça-feira Abr 2019

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Guillaume Apollinaire, Wislawa Szymborska

Não tenho animais de estimação e espanta-me sempre um pouco verificar as transferências afectivas que as pessoas fazem para os seus bichos. É um universo emocional que me é estranho e aceito sem julgar. De entre estes animais domésticos são gatos o que mais surge na poesia, sobretudo dando conta do seu comportamento voluntarioso e independente. As relações de afecto com os seus donos, se para os cães são comuns, com os gatos manifestam-se de forma talvez mais desprendida.

São disso testemunho indirecto dois poemas que a seguir transcrevo. De Guillaume Apollinaire (1880-1918), O Gato, do qual se lerão duas versões; depois, de Wislawa Szymborska (1923-2013), Gato em apartamento vazio. Dão conta os poemas de atmosferas de domesticidade onde o gato se integra. Revelam o convívio com o animal de estimação que traduz um sereno entendimento da sua presença no quotidiano humano.

Em Apollinaire lemos um quadro de desejo doméstico com mulher, gato, livros, e amigos:

 

O Gato

Na minha casa desejo ter
Uma mulher que imponha a sua razão
Um gato passeando por entre os livros
E porque sem eles não posso viver
Amigos seja qual for a estação

in Assinar a Pele — antologia de poesia contemporânea sobre gatos
(organização de João Luís Barreto Guimarães)

 

Poema original

Le chat

Je souhaite dans ma maison :
Une femme ayant sa raison,
Un chat passant parmi les livres,
Des amis en toute saison
Sans lesquels je ne peux pas vivre

in Le Bestiaire ou Cortège d’Orphée

 

e agora uma versão mais perto da letra do original:

O Gato

Desejo ter em minha casa:
Uma mulher no seu juízo,
Um gato passeando-se entre livros,
Amigos para o que der e vier
Porque sem eles não sei viver.

Tradução de Maria Gabriela Llansol,
in Mais Novembro que Setembro, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2001.

 

No poema de Wislawa Szymborska, Gato em apartamento vazio, conta-se a perplexidade da perda, no universo do gato, quando a morte altera as rotinas que dão o sentido dos dias:

 

Gato em apartamento vazio

Morrer — isso não se faz ao gato.
Pois que há-de um gato fazer
num apartamento vazio.
Ir arranhando as paredes.
Roçar-se por entre os móveis.
Por aqui nada mudou
mas está mais que mudado.
As coisas estão nos sítios,
mas os sítios outro são.
E nem se acende a luz pela noitinha.

Ouvem-se passos na escada,
todavia, não os tais.
A mão que põe no pratinho o peixe
também não é a que antes punha.

Algo aqui não acontece
às horas que acontecia.
Há algo aqui que não corre
como devia correr.
Alguém aqui esteve, esteve,
e agora teima em não estar.

Vasculhados todos os armários.
Percorridas todas as prateleiras.
Uma vez verificado o chão sob a alcatifa.
Contra todas as proibições até,
espalhados os papéis.
Que é que fica ainda por fazer.
Dormir e esperar.

Tradução de Júlio Sousa Gomes
in Paisagem com grão de areia, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 1998.

Exemplar ilustração de como tudo muda com a morte quando parece nada ter mudado olhando a imobilidade das coisas.

O gato da fotografia surpreendi-o certa tarde, junto ao mar, a olhar para mim enquanto fotografava. Aos especialistas deixo a interpretação desse olhar.

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Fernando Pessoa no país dos sonhos

07 Segunda-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Magritte

Procurar o sonho na poesia de Fernando Pessoa(1888-1935) é uma viagem emocionalmente arriscada. Ele está lá, mas no deslaçado da existência no mundo da sua poesia, ele é o outro lado a que a vida não chega e do qual uma nostalgia às vezes sobrevive.

 

Ainda muito jovem, Fernando Pessoa na sua poesia desencantava-se da vida e do lugar onde a viver, em termos de pungente desolação:

 

 

Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.
21-11-1909

 

 

 

Mais de vinte anos passados, e porque o sonho, embora triste, existiu, o poeta escreve ainda, metaforicamente, a esperança de que sobre o negro do girassol da vida, o seu amarelo lhe dê o calor que a infância espera dela:

 

 

Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.

Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade ao meio.

Girassol do falso agrado
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo.
18-4-1931

 

 

Adulto, e consciente de si, mesmo assim o sonhar não traz um sentido diferente à existência, conduzindo-a pelo caminho que vontade e desejo podem traçar:

…
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
 …

 

e ainda, no outro poema a seguir transcrito refere:

…
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
…

 

 

Eis os poemas citados:

 

 

*
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?
 
Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.
 
As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, estar em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.
 
Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
 
Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?
20-1-1933

 

 

**
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
24-8-1930

 

 

 

O confronto entre o eu poético de Fernando Pessoa e o mundo é sempre desencantado, se não mesmo amargo, e sonhos de que o futuro traga dias melhores não existem:

 

Lá fora a vida estua e tem dinheiro.
Eu, aqui, nulo e afastado, fico
O perpétuo estrangeiro
Que nem de sonhar já sou rico.
…

 

Ou como refere noutro poema:

…
Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
…

 

Estes são fragmentos de complexos poemas que transcrevo a seguir, interpeladores da existência, do estado do mundo, do papel do indivíduo nele, onde sonhos não têm lugar:

 

 

***
Se penso mais que um momento
Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.

Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,
Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol,
Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.

Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lembra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo
1-5-1931

 

 

****
Lá fora a vida estua e tem dinheiro.
Eu, aqui, nulo e afastado, fico
O perpétuo estrangeiro
Que nem de sonhar já sou rico.

Não sou ninguém, o meu trabalho é nada
Neste enorme rolar da vida cheia,
Vivo uma vida que nem é regrada
Nem é destrambelhada e alheia.

E um século depois terá esquecido
Tudo quanto estuou e foi ruído
Nesta hora em que vivo. E os bisnetos
Dos opressores de hoje, desta louca luta
Saberão, mas vagamente, a data
— E claramente os meus sonetos.
2-9-1922

 

 

Em todos estes poemas pressente-se o desejo de uma vida que não se viveu, e o medo de a sonhar traz consigo a dura e desencantada consciência do seu vazio, algo que o poema com que termino eloquentemente enuncia:

 

*****
Deslembro incertamente. Meu passado
Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui,
Está confusamente deslembrado
E logo em mim enclausurado flui.
Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.
Só há de meu o que me vê agora —
O campo verde, natural e mudo
Que um vento que não vejo vago aflora.
Sou tão parado em mim que nem o sinto.
Vejo, e onde [o] vale se ergue para a encosta
Vai meu olhar seguindo o meu instinto
Como quem olha a mesa que está posta.
13-9-1934

 

Poemas transcritos de Fernando Pessoa, Novas Poesias Inéditas, Edições Ática, 1973.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Magritte (1898-1967).

 

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Dia de Outono — O poema de Rainer Maria Rilke

16 Domingo Dez 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Rainer Maria Rilke

Rainer Maria Rilke (1875-1926) dá-nos no poema Herbsttag, Dia de Outono, o pretexto para a reflexão sobre o caminho do crepúsculo, não o do ciclo das estações com a sua esperança de eterno retorno, mas o da vida, fazendo meditar no doce/amargo da plenitude vivida e da solidão do fim. Longa a vida, apenas o é quando surge o cansaço dela:

Senhor: é tempo. Foi muito grande o verão.
Nos relógios de sol estira as tuas sombras,
deixa que pelo prado os ventos vão.
…

E mesmo assim, ainda é tempo para o desejo de gozar dos frutos apetecidos:
…
Manda aos últimos frutos a espessura,
dá-lhes do sul ainda mais dois dias,
força a plenitude neles, vê se envias
ao vinho forte a última doçura.
…

Apenas a solidão dá pretexto ao desalento:
…
Quem não tem casa agora, já não constrói nenhuma,
quem agora está só, vai ficar só, sombrio,
perder o sono, ler, escrever cartas a fio,
e a um ir e vir inquieto nas áleas se acostuma,
vagueando enquanto as folhas lá vão num rodopio.

Transcrevo a seguir a admirável versão portuguesa do poema por Vasco Graça Moura que acima citei em fragmentos. Completo-a com duas outras versões: uma por Paulo Quintela, outra por Maria João Costa Pereira trazida da sua tradução de O Livro das Imagens, a que o poema pertence. No final incluo o poema original.

Dia de Outono

Senhor: é tempo. Foi muito grande o verão.
Nos relógios de sol estira as tuas sombras,
deixa que pelo prado os ventos vão.

Manda aos últimos frutos a espessura,
dá-lhes do sul ainda mais dois dias,
força a plenitude neles, vê se envias
ao vinho forte a última doçura.

Quem não tem casa agora, já não constrói nenhuma,
quem agora está só, vai ficar só, sombrio,
perder o sono, ler, escrever cartas a fio,
e a um ir e vir inquieto nas áleas se acostuma,
vagueando enquanto as folhas lá vão num rodopio.

Tradução de Vasco Graça Moura
in Rainer Maria Rilke, Elegias de Duíno, Os Sonetos a Orfeu, Bertrand Editora, Lisboa, 2007.

Dia de Outono

Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre as campinas.
Manda que os últimos frutos se arredondem;
dá-lhes inda dois dias mais meridionais,
leva-os à perfeição e faze entrar
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será.
Fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas.

Tradução de Paulo Quintela,
in Rainer Maria Rilke, Poemas, As Elegias de Duíno, Sonetos a Orfeu, Porto, 2001.

Dia de Outono

Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre os campos.

Ordena aos últimos frutos que amadureçam;
dá-lhes ainda dois dias meridionais,
apressa-os para a plenitude e verte
a última doçura no vinho pesado.

Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, assim ficará por muito tempo,
velará, lerá, escreverá longas cartas
e vagueará inquieto pelas alamedas acima e abaixo,
quando caírem as folhas.

Tradução de Maria João Costa Pereira,
in Rainer Maria Rilke, O Livro das Imagens, Relógio d’Água, Lisboa, 2005.

Poema original

Herbsttag

Herr: es ist Zeit. Der Sommer war sehr gross.
Leg deinen Schatten auf die Sonnenuhren,
und auf den Fluren lass die Winde los.
 
Befiehl den letzten Früchten voll zu sein;
gib ihnen noch zwei südlichere Tage,
dränge sie zur Vollendung hin und jage
die letzte Süsse in den schweren Wein.
 
Wer jetzt kein Haus hat, baut sich keines mehr.
Wer jetzt allein ist, wird es lange bleiben,
wird wachen, lesen, lange Briefe schreiben
und wird in den Alleen hin und her
unruhig wandern, wenn die Blätter treiben.

Abre o artigo a imagem de uma minha pintura digital de 2004.
Carlos Mendonça Lopes

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Ruy Belo — Orla marítima

24 Sábado Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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António Nobre, Claude Monet, Ruy Belo

…
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
…

 

O eco de um verso de António Nobre [Ó suaves e frescas raparigas,](1) no início do poema Orla marítima de Ruy Belo (1933-1978) leva-me a abrir o artigo com a imagem de uma pintura de Claude Monet (1840-1926), evocativa de um tempo de harmonia e encanto que à uma atravessam tanto este poema como o soneto nº4 do livro Só de António Nobre (1867-1900).

 

Orla marítima conduz-nos por uma densa reflexão sobre a vida, o que deixámos para trás,  meditado … / ao sol dos solitários dias de dezembro / .
Repleto de belos versos, … / Ali fica o retrato destes dias / gestos e pensamentos tudo fixo / …, dando-nos conta de como … / Sabemos agora em que medida merecemos a vida.

Melhor que qualquer comentário, são as palavras do poeta para o dizer.

 

Orla marítima

O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo da avenida
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios da vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão* solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida

 

* Tenho dúvidas que a palavra impressa na edição que possuo seja a correcta no contexto do poema. Inclino-me para que em vez de pagão a palavra correcta seja pregão e os versos seriam:
[Manhã dos outros não nossa manhã / pregão* solar de uma alegria calma].
Poema transcrito de Ruy Belo, Todos os Poemas, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

 

 

(1) Para quem o não conheça, deixo o soneto nº4 do livro Só de António Nobre:

Soneto nº4
Ó virgens que passais, ao sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz omnipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruínas do meu Lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho como um ai…
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz… Cantai!
Porto 1896

in António Nobre, Poesia Completa, Círculo de Leitores, 1987.

 

 

A imagem da pintura de Claude Monet que abre o artigo, Jardim em Sainte-Adresse, feita em 1867, num tempo em que a pincelada brusca que caracterizou a sua última pintura começava a surgir, pertence à colecção do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque.

 

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Miguel Hernández — Eu não quero mais luz que teu corpo ante o meu

22 Quinta-feira Nov 2018

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Gerhard Richter, Miguel Hernández

É numa aproximação à luminosidade do amor que Miguel Hernández (1910-1942), no poema [Yo no quiero más luz que tu cuerpo ante el mío] dá conta do fulgor da paixão.
Luz que simultaneamente ilumina e cega, o poeta conta-o de forma superlativa:
…
En mi sangre, fielmente por tu cuerpo abrasada, / para siempre es de noche: para siempre es de día.

 

Os lugares comuns do enunciado da paixão de todos conhecidos, ainda que não experimentados, surgem enunciados neste poema numa linguagem poética peculiar, onde a luz inunda a escrita, transmitindo ao leitor o deslumbramento desse abismo que a paixão é:
…
No hay más luz que tu cuerpo, no hay más sol: todo ocaso.
…

 

 

É este um poema singular na obra do poeta de curta vida, mais focada numa crítica do mundo e das suas injustiças que  nos abalos da paixão.

 

 

Embora o poema original seja de fácil leitura em português, deixo aos leitores uma tradução minha, que eventualmente elucidará uma ou outra dificuldade.

 

 

Poema

Yo no quiero más luz que tu cuerpo ante el mío:
claridad absoluta, transparencia redonda.
Limpidez cuya entraña*, como el fondo del río,
con el tiempo se afirma, con la sangre se ahonda.

¿Qué lucientes materias duraderas te han hecho,
corazón de alborada, carnación matutina?
Yo no quiero más día que el que exhala tu pecho.
Tu sangre es la mañana que jamás se termina.

No hay más luz que tu cuerpo, no hay más sol: todo ocaso.
Ya no veo las cosas a otra luz que tu frente.
La otra luz es fantasma, nada más, de tu paso.
Tu insondable mirada nunca gira al poniente.

Claridad sin posible declinar. Suma esencia
del fulgor que ni cede ni abandona la cumbre.
Juventud. Limpidez. Claridad. Transparencia
acercando los astros más lejanos de lumbre.

Claro cuerpo moreno de calor fecundante.
Hierba negra el origen: hierba negra las sienes.
Trago negro los ojos, la mirada distante.
Día azul. Noche clara. Sombra clara que vienes.

Yo no quiero más luz que tu sombra dorada
donde brotan anillos de una hierba sombría.
En mi sangre, fielmente por tu cuerpo abrasada,
para siempre es de noche: para siempre es de día.

Poema /Tradução

Eu não quero mais luz que teu corpo ante o meu:
claridade absoluta, transparência redonda.
Limpidez cujo coração*, como o fundo do rio,
com o tempo se afirma, com o sangue se funde.

Que luzentes, duradoras matérias te fizeram,
coração de alvorada, carnação matutina?
Eu não quero mais dia que o que exala o teu peito.
Teu sangue é a manhã que jamais se termina.

Não há mais luz que teu corpo, não há mais sol: tudo ocaso.
Já não vejo as coisas a outra luz que a tua.
A outra luz é fantasma, nada mais, da tua passagem.
Teu insondável olhar nunca se volta a poente.

Claridade sem possível declínio. Suma essência
do fulgor que não cede nem abandona o cume.
Juventude. Limpidez. Claridade. Transparência
aproximando os astros mais distantes de luz.

Claro corpo moreno de calor fecundante.
Erva negra a origem: erva negra os templos.
Andorinha preta, o olhar distante.
Dia azul. Noite clara. Sombra clara que vens.

Eu não quero mais luz que tua sombra dourada
donde brotam anéis de uma erva sombria.
No meu sangue, fielmente por teu corpo abrasado,
para sempre é de noite: para sempre é de dia.

Tradução Carlos Mendonça Lopes

Poema original transcrito de Miguel Hernández, Antología, Editorial Losada, Buenos Aires, 1960.

* No verso 3 surge a palavra entraña, a qual, numa recente edição (2010) da Espasa Libros, na prestigiosa colecção Austral: Antologia Poética, edição comemorativa; escreve neste verso a palavra extraña. Porque penso que o poeta se refere ao coração, escrevi a versão da edição mais antiga da Editorial Losada de Buenos Aires.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Gerhard Richter (1932), Nu descendo as escadas, de 1966.
Para o que ao artigo importa, a mulher, comum, e não de uma beleza ideal, desce das alturas do escuro de uma vida sem amor, para a proximidade de quem a espera e deseja, ainda na difusa forma dos sonhos, caminhando para a luz da realidade de quem deseja.

 

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Serradura e Cinco Horas — poemas de Mário de Sá Carneiro

18 Domingo Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Mário de Sá-carneiro, Otto Dix

Entre o que julgámos querer ser e fazer, e o que a realidade nos mostra que concretizámos, vai o abismo que a vida vivida cavou. Quase sempre os sonhos de acção e aventura terminam no desejo irreprimível de sossego e conforto:

…
Pois é assim: a minha Alma / Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma, /  E hoje sonha só pelúcias.
…

 

Este conflito entre acção desejada e vida de monotonia referido por Mário de Sá Carneiro (1890-1916) no poema Serradura, cedo ou tarde atravessa os leitores de qualquer época. Poucos conseguem fazer o balanço do seu viver e concluir por um acerto entre o desejado e o feito.

Uma sensação de desacerto entre o indivíduo e a vida que lhe foi dado viver atravessa a poesia de Mário de Sá Carneiro e nos poemas Serradura e Cinco Horas encontramos exemplo eloquente:

 

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
…

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

 

Isto diz a abrir o poema Serradura, para, no poema Cinco Horas, a certa altura referir:

… / Nos cafés espero a vida / Que nunca vem ter comigo: / …

 

Na letra destes poemas não encontramos densidade de reflexões a propósito do que acima referi, mas é antes na trivialidade dos seus relatos que elas se escondem.

Serradura, poema variadamente colorido de acção hipotética, revela na sua ironia mordaz, a impotência do indivíduo no discernir do que na vida melhor se lhe ajusta:

 

Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No infindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minha Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o “Matin” de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da “Capital”
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra uma porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar ”Viva a Alemanha”…
Mas a minha Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

 

(Nota à margem: serradura, pó de madeira, deitava-se à época no chão de cafés e tabernas modestos para absorver líquidos entornados e facilmente os varrer para o lixo.)

 

 

Em Cinco Horas, continuamos neste universo amargamente irónico da impotência de si, aqui trazendo a certa altura os outros, para revelar em cúmulo, a incapacidade perante uma vida de relação, cultivando o indivíduo tão só a atitude de espectador de si mesmo com os outros em fundo.

 

Cinco Horas

Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto… A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais.)

Sobre ela posso escrever
Os meu versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber…

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
— Pois há um ano que fumo —
[Imaginando]* presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente…)

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro enredo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha ideia persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais futilidades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades…

(Que história de Oiro tão bela
Na minha vida [aportou]*:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou…)

Nos cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
— Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

— Cafés da minha preguiça,
Sois hoje — que galardão! —
Todo o meu campo de acção
E toda minha cobiça.

 

* Ainda que as edições consultadas escrevam imaginário e abortou, a narrativa poética que caracteriza o poema leva-me a pensar que as palavras deveriam ser imaginando e aportou, sendo as palavras impressas ao longo de variadas edições, gralhas tipográficas que terão passado de edição em edição.

O poema apenas teve edição póstuma, tendo sido publicado pela primeira vez no livro Indícios de Oiro em 1937, também depois da morte de Fernando Pessoa, executor testamentário do poeta. Apenas a consulta do manuscrito original o permitirá esclarecer.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Otto Dix (1891-1969), Retrato da jornalista Sylvia von Harden.

 

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Garrafa de vinho — um poema de Carl Dennis

23 Domingo Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Carl Dennis, Giorgio Morandi

No efémero de uma garrafa de vinho bebida entre amigos encontra o poeta norte-americano Carl Dennis (1939) o pretexto para reflectir sobre a amizade, a volatilidade do tempo, o valor das tradições cuidadosamente conservadas e transmitidas, o prazer das pequenas coisas como um passeio por ruas arborizadas, e quanto as questões existenciais não justificam os nadas que fazem a vida valer a pena.
Admirável poema, Bottle of Wine, dando na concisão da poesia esta panóplia de reflexões, e que procurei trazer para português na versão que segue:

 

 

Garrafa de vinho

Gosto de estacionar um pouco afastado da casa dos meus anfitriões
E andar com a garrafa de vinho pelas ruas arborizadas,
Antecipando o jantar com amigos que me espera.
Uma garrafa de vinho mostra não só que estou grato
Por ser incluído, mas ansioso para contribuir
E oferecer um presente que não sobreviva à noite,
Isso diz como ultrapassei a necessidade de transcendência
E fiz finalmente as pazes com viver o presente.
Em breve daremos as boas-vindas à noite com um brinde.
Em breve estaremos brindando em despedida
Com ela começa o caminho para o passado próximo
E depois o distante. Será que as casas por onde passo
Me consideram alguém prestes a desaparecer
No reino das sombras, enquanto elas permanecerão
De pé? Mas a garrafa que transporto mostra
como o passado pode melhorar o presente.
As uvas de que foi feito foram colhidas e prensadas
Há sete anos num vinhedo da Borgonha
Conforme costumes praticados há gerações
Pelo tempo em que estas casas se transformaram
De projectos e estimativas em tijolo e madeira.
A garrafa vai testemunhar que as tradições, uma vez honradas
Permanecerão, com perseverança, com orgulho.
E se o passado está presente esta noite, não está o futuro
Presente também no pensamento de que o ritual
Que ajudo a continuar será duradouro,
E apesar do que o mundo em redor possa alterar-se,
Os convivas ainda o realizarão em épocas futuras?
Espero sentir a sua presença em espírito
Sob estas árvores, mais tarde esta noite
Quando regressar ao meu carro de mãos vazias.

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

O original do poema — Bottle of Wine — foi publicado na revista New Yorker, nº de 6 & 13 de Agosto 2018.

 

 

Poema original

 

Bottle of Wine

I like to park a few blocks from the house of my hosts
And walk with my bottle of wine the tree-lined streets,
Anticipating the dinner with friends that awaits me.
A bottle of wine showing not only that I’m grateful
To be included but that I’m eager to do my part,
To offer a gift that won’t survive the evening,
That says I’ve set aside the need for transcendence
And made my peace at last with living in time.
Soon we’ll welcome the evening with a toast.
Soon we’ll be toasting it in farewell
As it starts on its journey into the near past
And then the far. Do the houses I’m passing
Regard me as a creature about to vanish
Into the realm of shadow while they have resolved
To hold their ground? But the bottle I’m carrying
Shows how the past can enhance the present.
The grapes it was made from were plucked and pressed
Seven years ago in a vineyard in Burgundy
According to customs already in place for generations
By the time these houses moved from the realm
Of blueprints and estimates into brick and wood.
The bottle will testify that traditions once honored
Are being adhered to still, with patience, with pride.
And if the past is present this evening, isn’t the future
Present as well in the thought that the ritual
I’m helping to pass along will prove enduring,
That however much the world around it may alter,
Guests will still perform it in eras to come?
I hope I feel their presence in spirit
Under these trees later this evening
As I walk back to my car with empty hands

 

Poema transcrito da revista New Yorker, nº de 6 & 13 de Agosto 2018.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Giorgio Morandi (1890-1964).

 

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Um desgosto de amor em quadras de Fernando Pessoa

20 Quinta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Marc Chagall

Sabem os leitores da poesia de Fernando Pessoa (1888-1935) quanto o poeta cultivou com talento, toda a vida, a quadra popular e o quarteto, usados em poemas tão famosos como p.ex. Canção: Sol nulo dos dias vãos / …, ou no poema Autopsicografia: O poeta é um fingidor / … .

Em Fevereiro de 1920 surgem algumas quadras dando conta de um desgosto de amor, supõe-se que por Ophélia Queiroz, a destinatária das famosas cartas de amor. Alguns poemas dão disso conta. Escolho dois: uma quadra, e uma sequência de três quadras. Mas antes do relato do desgosto amoroso, leiamos a fase da harmonia amorosa no desejo da sua constante fruição, numa saborosa descrição do desconforto da ausência da amada:  

 

Quando passo o dia inteiro
Sem ver o meu amorzinho,
Corre um frio de Janeiro
No Junho do meu carinho.

 

 

Não se encontrando datada esta quadra, não avaliamos por aqui a distância entre esta impaciência e o desgosto do fim do enlevo amoroso relatado a 24.02.1920:

 

Meu amor já não me quer,
Já me esquece e me desama.
Tão pouco tempo a mulher
Leva a provar que não ama!

 

Aqui chegados, poderia supor-se que era apenas um arrufo de namorados, mas, afinal não fizeram as pazes, e dois dias depois, a 26.02.1920, o poeta derrama em verso a sua desilusão:

…
Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
…

 

 

Os complexos motivos da rotura com Ophélia Queiroz são matéria de vasta especulação entre especialistas. Por agora fiquemos tão só com a mágoa do apaixonado posta em poema, fazendo prova  da densidade de leituras a que o poeta nos habituou, relatando a sensação de abismo que atinge apaixonados nos momentos de rotura:

…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.
…

 

 

Eis o poema:

 

Revive ainda um momento
Na ‘sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri…

Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar…
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.

Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.

 

 

Anos mais tarde encontro este rememorar uma paixão  que, quiçá, terá sido a mesma:

 

Aquela tarde em que os dois fomos pela
Estrada, amorosos, o que é feito dela?
Jaz vista no passado como a folha
No caminho que vemos da janela
3-1-1934

 

E assim termino esta volta poética por amores e sua consequência num poeta pouco afeito a estes desabafos.

 

Transcrito de Quadras e Outros Cantares, Edição de Teresa Sobral Gomes, Relógio D’Água Editores, Lisboa ,1987.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Marc Chagall (1887-1985), Os Comediantes, acompanhando a postura do poeta entre a vida e a poesia: O poeta é um fingidor / … .

 

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O sabor das aventuras de Verão recordado num poema de David Mourão-Ferreira

07 Sexta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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David Mourão-Ferreira

Numa noite mágica onde se cruzavam os cheiros da serra e a brisa marinha, jantávamos ao ar livre um grupo de amigos de adolescência. Inevitavelmente vieram à conversa as memórias das noites de Verão e as aventuras de descoberta e paixão adolescente a que Tavira e o mar da sua ilha serviram de cenário.
Eram os últimos anos da década de 60 do séc. XX. O Algarve descobria-se aos turistas estrangeiros e as raparigas vindas do Norte da Europa faziam furor com a sua beleza loura e liberdade de costumes por cá completamente interditos. Do que a cada um aconteceu guardo reserva. O intróito serve tão só para recordar um poema de David Mourão-Ferreira (1927-1996), Een lied voor Margaretha, (Uma Canção para Margaretha) talvez reminiscência de experiência(s) semelhante(s).

 

 

Een lied voor Margaretha

Tu vens de terras de Holanda,
mas tens a carne morena.
E em vez de serena, branda
postura que o Norte manda,
teu corpo se desordena
à carícia, por mais branda …
Tu vens das terras de Holanda …

Eu venho de Portugal:
o mesmo é dizer que venho
de longe, do litoral,
e um sabor, no corpo, a sal
definiu meu Fado estranho.
Aqui me tens, donde venho:
Eu venho de Portugal …

Trago nos lábios o Mar,
cheio de vento e de espuma …
E tu mo virás roubar!
— Ai descampados ao ar,
onde houvera ventos, bruma! —
Com saudade hei de lembrar:
tinha nos lábios o Mar …

Hei de lembrar e sofrer
o que for perdendo aqui …
Mas um colo de mulher
tudo merece, e requer
o abandono de si …
Quem me dera que por ti
Venha a lembrar e sofrer …

Tu vens de terras de Holanda,
eu venho de Portugal:
cada um de sua banda …
Sabe o Destino o que manda,
quer pra bem ou quer p´ra mal …
— Não mais as terras de Holanda
e areias de Portugal!

in A Viagem Secreta, segunda edição corrigida e aumentada, ne varietur, Edições Ática, Lisboa, 1958.

 

Abre o artigo uma foto de Jane Birkin (1946), inesquecível intérprete com Serge Gainsbourg (1928-1991) da canção Je t’aime… mois non plus, icónica canção da revolução sexual dos anos 60, à data proibida em vários países, Portugal e Brasil incluídos.

 

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Canções de beber na obra de Fernando Pessoa

05 Quarta-feira Set 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Henri de Toulouse-Lautrec

Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.
…

 

Tendo como ponto de partida a versão inglesa por Edward Fitzgerald, dos quartetos de Omar Khayyam (1048-1132), publicada em 1910, Fernando Pessoa (1888-1935) apropria-se dos poemas para nos dar a sua visão desolada e amarga da vida por volta de 1930:

…
Vamos vivendo, e somos o que somos
Até que a quem não somos morte acuda.

 

ou neste outro poema:

…
Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É do vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.

 

 

Nestas reflexões estamos longo da atmosfera de festa e alegria que o vinho induz, e em variados poemas que aqui trouxe no passado recente se regista.

Para o poeta, a festa parece não existir, mas, como tantas vezes na sua poesia, sob a desolada lucidez, se alegria não há, o sonho às vezes espreita:

…

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o seu mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
…

 

e a esperança é algo para cultivar:

…
Não queiras, com submissa segurança,
Ter saudade de ter esperança.
Tem antes saudade de a não ter.
…

 

Deixo-o, leitor, com a escolha poética:

 

 

*
Tudo o que passa, porque passa, é nada.
Tudo o que fica coisa é parada.
O que nem passa ou fica não existe.
Bebe, que não há estada nem há estrada.

Devoto do que já não sei o que é,
Ao templo fui pelo meu próprio pé.
Mas vi que o templo era uma taberna.
Ali fiquei ébrio da minha fé.

Doze vezes o sol amável muda
De signo e sem ajuda nos ajuda.
Vamos vivendo, e somos o que somos
Até que a quem não somos morte acuda.
5-11-1933

 

 

**
Quanto fui jaz. Quanto serei não sou.
No intervalo entre o que sou e estou
A natureza, exterior, tem sol.
Mas, se tem sol, há sol. Ao sol me dou.

Não queiras, com submissa segurança,
Ter saudade de ter esperança.
Tem antes saudade de a não ter.
Entre o que a paz te não dará descansa.

Nada ‘speres, que nada salvo nada
Obtém que ‘supera: é como quem à estrada
Lance olhos de esperar que alguém lhe chegue
Só porque a estrada é feita para andada.

Ninguém suporta o peso mau dos dias
Salvo por interpostas alegrias.
Bebe, que assim serás o intervalo
Entre o que criarás e o que crias.

Quantas vezes o mesmo poente alheio
Sobre meu sonho, como um sonho, veio.
Quantas vezes o tive por augusto.
Tantas, tornado noite, perde o enleio.

Bebe. Se escutas, ouves só o ruído
Que ervas ou folhas trazem ao ouvido.
É do vento, que é nada. Assim é o mundo:
Um movimento regular de olvido.
4-10-1932

 

 

***
Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o seu mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade é a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza, e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, ‘star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer!
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de haver?
20-1-1933

 

Poemas transcritos de Canções de Beber na Obra de Fernando Pessoa, Edições de Arte, lda, Lisboa, 1997.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901).

 

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