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Miguel Hernández — Eu não quero mais luz que teu corpo ante o meu

22 Quinta-feira Nov 2018

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Gerhard Richter, Miguel Hernández

É numa aproximação à luminosidade do amor que Miguel Hernández (1910-1942), no poema [Yo no quiero más luz que tu cuerpo ante el mío] dá conta do fulgor da paixão.
Luz que simultaneamente ilumina e cega, o poeta conta-o de forma superlativa:
…
En mi sangre, fielmente por tu cuerpo abrasada, / para siempre es de noche: para siempre es de día.

 

Os lugares comuns do enunciado da paixão de todos conhecidos, ainda que não experimentados, surgem enunciados neste poema numa linguagem poética peculiar, onde a luz inunda a escrita, transmitindo ao leitor o deslumbramento desse abismo que a paixão é:
…
No hay más luz que tu cuerpo, no hay más sol: todo ocaso.
…

 

 

É este um poema singular na obra do poeta de curta vida, mais focada numa crítica do mundo e das suas injustiças que  nos abalos da paixão.

 

 

Embora o poema original seja de fácil leitura em português, deixo aos leitores uma tradução minha, que eventualmente elucidará uma ou outra dificuldade.

 

 

Poema

Yo no quiero más luz que tu cuerpo ante el mío:
claridad absoluta, transparencia redonda.
Limpidez cuya entraña*, como el fondo del río,
con el tiempo se afirma, con la sangre se ahonda.

¿Qué lucientes materias duraderas te han hecho,
corazón de alborada, carnación matutina?
Yo no quiero más día que el que exhala tu pecho.
Tu sangre es la mañana que jamás se termina.

No hay más luz que tu cuerpo, no hay más sol: todo ocaso.
Ya no veo las cosas a otra luz que tu frente.
La otra luz es fantasma, nada más, de tu paso.
Tu insondable mirada nunca gira al poniente.

Claridad sin posible declinar. Suma esencia
del fulgor que ni cede ni abandona la cumbre.
Juventud. Limpidez. Claridad. Transparencia
acercando los astros más lejanos de lumbre.

Claro cuerpo moreno de calor fecundante.
Hierba negra el origen: hierba negra las sienes.
Trago negro los ojos, la mirada distante.
Día azul. Noche clara. Sombra clara que vienes.

Yo no quiero más luz que tu sombra dorada
donde brotan anillos de una hierba sombría.
En mi sangre, fielmente por tu cuerpo abrasada,
para siempre es de noche: para siempre es de día.

Poema /Tradução

Eu não quero mais luz que teu corpo ante o meu:
claridade absoluta, transparência redonda.
Limpidez cujo coração*, como o fundo do rio,
com o tempo se afirma, com o sangue se funde.

Que luzentes, duradoras matérias te fizeram,
coração de alvorada, carnação matutina?
Eu não quero mais dia que o que exala o teu peito.
Teu sangue é a manhã que jamais se termina.

Não há mais luz que teu corpo, não há mais sol: tudo ocaso.
Já não vejo as coisas a outra luz que a tua.
A outra luz é fantasma, nada mais, da tua passagem.
Teu insondável olhar nunca se volta a poente.

Claridade sem possível declínio. Suma essência
do fulgor que não cede nem abandona o cume.
Juventude. Limpidez. Claridade. Transparência
aproximando os astros mais distantes de luz.

Claro corpo moreno de calor fecundante.
Erva negra a origem: erva negra os templos.
Andorinha preta, o olhar distante.
Dia azul. Noite clara. Sombra clara que vens.

Eu não quero mais luz que tua sombra dourada
donde brotam anéis de uma erva sombria.
No meu sangue, fielmente por teu corpo abrasado,
para sempre é de noite: para sempre é de dia.

Tradução Carlos Mendonça Lopes

Poema original transcrito de Miguel Hernández, Antología, Editorial Losada, Buenos Aires, 1960.

* No verso 3 surge a palavra entraña, a qual, numa recente edição (2010) da Espasa Libros, na prestigiosa colecção Austral: Antologia Poética, edição comemorativa; escreve neste verso a palavra extraña. Porque penso que o poeta se refere ao coração, escrevi a versão da edição mais antiga da Editorial Losada de Buenos Aires.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Gerhard Richter (1932), Nu descendo as escadas, de 1966.
Para o que ao artigo importa, a mulher, comum, e não de uma beleza ideal, desce das alturas do escuro de uma vida sem amor, para a proximidade de quem a espera e deseja, ainda na difusa forma dos sonhos, caminhando para a luz da realidade de quem deseja.

 

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Um poema de Hölderlin

24 Segunda-feira Abr 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Gerhard Richter, Hölderlin

Memória e história condensam-se no poema de Friedrich Hölderlin (1770-1843) que a seguir transcrevo,  A Grécia. [segundo esboço], transcendendo o contexto específico da sua escrita na obra do poeta, a Grécia clássica e a sua herança, e levando-nos a reflexão para as determinantes da existência:

…
Quando, porém, em excesso
A desmesura aspira à morte,
Adormece o divino, e a fidelidade de Deus.
A sensatez ausenta-se.
…

 

Lemos algo da pesada atmosfera política dos nossos dias nestes versos. Vivemos de novo um tempo especialmente exigente no assegurar as conquistas de civilização do nosso mundo, de que a herança da Grécia clássica é parte maior. E todos os dias constatamos que o adquirido é precário e sem garantia de ser encontrado ao acordar no dia seguinte. Vale no entanto a pena ter presente que

… quando a Terra, evocando devastações, tentações de santos,
Segue as grandes leis sagradas, a concórdia
E a ternura e o céu inteiro ressoam então
Revelando-se no
Canto das nuvens. …

 

 

 

Segue o poema integralmente, em admirável tradução de João Barrento:

 

 

A Grécia.
[segundo esboço]

 

Muitas são as lembranças.
E quando a Terra, evocando devastações, tentações de santos,
Segue as grandes leis sagradas, a concórdia
E a ternura e o céu inteiro ressoam então
Revelando-se no
Canto das nuvens. Pois viva
É sempre a natureza.
Quando, porém, em excesso
A desmesura aspira à morte,
Adormece o divino, e a fidelidade de Deus.
A sensatez ausenta-se.
Mas, tal como a dança é parte da boda,
Também ao mais humilde se pode juntar
Um grande começo.
E dia a dia, para nossa maravilha,
Deus se mostra com novas vestes.
E Seu rosto se furta ao conhecer
E ar e tempo escondem
O Terrível, quando alguém em excesso
O ama, com preces ou
A alma.

 

in Lógica Poética, Friedrich Hölderlin, organização Bruno C. Duarte, Edições Vendaval, Lisboa, 2011.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura a aguarela de Gerhard Richter ( 1932) pintada em 1988.

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Alguma poesia de Thomas Bernhard

07 Sábado Fev 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 3 comentários

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Gerhard Richter, Thomas Bernhard

Richter - Abstração 5Hoje trago-vos um poeta raro, o austríaco Thomas Bernhard (1931-1989), e uma tradução frequentemente fascinante dos seus versos.

Thomas Bernhard, porventura conhecido dos leitores como prosador, é, enquanto poeta, capaz de uma emoção surpreendente na forma como desenvolve um poema. À originalidade do verso acrescenta-se o percurso da ideia no poema, quiçá por vezes autobiográfica, que se resolve numa comoção

 Evidentemente, nem todos os poemas conseguem este efeito no leitor, mas existirem alguns é já uma enorme alegria para quem gosta de ler a vida na poesia. Transcrevo cinco.

 

 

Num tapete de água

Num tapete de água

vou bordando os meus dias,

os meus deuses e as minhas doenças.

 

Num tapete de verdura

vou bordando os meus sofrimentos vermelhos,

as minhas manhãs azuis,

as minhas aldeias amarelas e os meus pães de mel amarelos também.

 

Num tapete de terra

vou bordando a minha efemeridade.

Nele vou bordando a minha noite

e a minha fome,

a minha tristeza

e o navio de guerra dos meus desesperos,

que vai deslizando p’ra mil outras águas,

para as águas do desassossego,

para as águas da imortalidade.

 

 

 

Altentann

O dia despe a sua camisa.

Sobe, nu, para o canteiro do jardim

e chama a si os pássaros.

Nas poças negras

fica agachado o seu rosto vermelho,

que os camponeses despedaçaram.

A erva crava lanças de sombra

no meu cérebro…

 

Na janela vizinha

está pousado um pássaro

como se fosse o guarda dos meus pensamentos,

até que o rude sono

me descalce os sapatos molhados.

 

 

Chuva de Verão

Pássaros calem-se,

nenhuma tarde

me consola, por cima

da ponte cai a chuva

na minha tristeza, nenhum

rumor de Verão

me faz mudar,

nenhum vento

me impede de dormir…

 

Amanhã de manhã

não quero ir

para debaixo de nenhuma árvore,

as minhas pálpebras anseiam pelo sono

do Inverno e da neve,

quero, à chuva,

regressar

às folhas

e às arcas sombrias.

 

Pássaros, calem-se, tenho frio,

a minha sombra

cresce por cima

da noite

para os bosques,

aí descansam

sob flores negras

os mortos,

os mortos errantes.

 

 

Cansado

Estou cansado…

Com as árvores entabulei conversas.

Com as ovelhas sofri o horror da seca.

Com os pássaros cantei nas florestas.

Amei as raparigas da aldeia.

Ergui os olhos para o Sol.

Vi o mar.

Trabalhei com o oleiro.

Engoli o pó da estrada.

Vi as flores da melancolia no campo do meu pai.

Vi a morte nos olhos do meu amigo.

Estendi a mão para as almas dos afogados.

Estou cansado…

 

 

de Nove salmos

(“A alma de Deus está nos pescadores“)

 

IX

Já não tenho medo.

Não tenho medo

do que há-de vir.

Extingui a minha fome,

bebi o meu tormento até à última gota,

a minha morte torna-me feliz.

Levo os meus peixes

para o monte.

Nos peixes está tudo

o que deixo ficar.

Nos peixes está a minha tristeza,

e o meu fracasso está nos peixes.

Direi

como é esplêndida a Terra, quando eu chegar,

como é esplêndida a Terra…

Sem precisar de ter medo…

Espero

que o Senhor me espere.

Transcritos de Thomas Bernhard, Na Terra e no Inferno, tradução e introdução de José A. Palma Caetano, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

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Vida e Destino com Ricardo Reis

13 Domingo Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Fernando Pessoa, Gerhard Richter, Ricardo Reis

Gerhard Richter Abstracção 1990 (2)

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

 

Parafraseando Camilo Castelo Branco, diria que os leitores do blog são bons e pacientes, mas também querem não ser tentados a perder essas excelentes qualidades, por isso deixo de lado as obscuridades poéticas com que me tenho ocupado, e dei exemplo nos últimos artigos, e regresso a Fernando Pessoa na forma do seu heterónimo Ricardo Reis.

Num pequeno grupo de poemas criados de 1916 a 1933, lemos diferentes pontos de vista sobre vida e destino consubstanciáveis nos versos Com que vida encherei os poucos breves / Dias que me são dados?

e que abrem o primeiro poema escolhido.

Mais à frente duas reflexões sobre carpe diem — goza o dia —no poema 61 de 1923:

Goza este dia como / Se a Vida fosse nele.,

e no poema 144 de 1933:

No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.

Oscilando entre desejar o gozo do efémero e a consciência de viver uma vida Que nem quero nem amo, / Minha porque sou ela. (Poema 145), acontece a recomendação Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode /Dizer-te. (Poema 34).

Porque a vida, felizmente, não nos surge sempre da mesma cor, terminemos com um desejo:

Sob a leve tutela / De deuses descuidosos, /Quero gastar as concedidas horas / Desta fadada vida. (poema 170),  

Conduzi a dança, ninfas singelas / Até ao amplo gozo / Que tomais da vida. (poema171).

Feito o intróito, seguem-se os poemas.

Gerhard Richter Abstracção 1991

67

 

Com que vida encherei os poucos breves

Dias que me são dados? Será minha

A minha vida ou dada

A outros ou a sombras?

 

À sombra de nós mesmos quantas vezes

Inconscientes nos sacrificamos,

E um destino cumprimos

Nem nosso nem alheio!

 

Porém nosso destino é o que for nosso,

Quem nos deu o acaso, ou, alheio fado,

Anônimo a um anônimo,

Nos arrasta a corrente.

 

Ó deuses imortais, saiba eu ao menos

Aceitar sem querê-lo, sorridente,

O curso áspero e duro

Da strada permitida.

 

5-5-1925

Gerhard Richter Abstracção 1994 (2)

61

De uma só vez recolhe

As flores que puderes.

Não dura mais que até à noite o dia.

Colhe de que lembrares.

 

A vida é pouco e cerca-a

A sombra e o sem-remédio.

Não temos regras que compreendamos,

Súbditos sem governo.

 

Goza este dia como

Se a Vida fosse nele.

Homens nem deuses fadam, nem destinam

Senão que  ignoramos.

 

24-10-1923

Gerhard Richter Abstracção 1992

144

Uns, com os olhos postos no passado,

Vêem o que não vêem; outros, fitos

Os mesmos olhos no futuro, vêem

O que não pode ver-se.

 

Porque tão longe ir pôr o que está perto —

O dia real que vemos? No mesmo hausto

Em que vivemos, morreremos. Colhe

O dia, porque és ele.

 

28-8-1933

Gerhard Richter Abstracção 1993 (2)

145

Súbdito inútil de astros dominantes,

Passageiros como eu, vivo uma vida

Que nem quero nem amo,

Minha porque sou ela.

 

No ergástulo de ser quem sou, contudo,

De em mim pensar me livro, olhando no atro

Os astros que dominam,

Submisso de os ver brilhar.

 

Vastidão vã que finge de infinito

(Como se o infinito se pudesse ver!) —

Dá-me ela a liberdade?

Como, se ela a não tem?

 

19-11-1933

Gerhard Richter Abstracção 1995 (3)

34

Segue o teu destino,

Rega as tuas plantas,

Ama as tuas rosas.

O resto é a sombra

De árvores alheias.

 

A realidade

Sempre é mais ou menos

Do que nós queremos.

Só nós somos sempre

Iguais a nós-próprios.

 

Suave é viver só.

Grande e nobre é sempre

Viver simplesmente.

Deixar a dor nas aras

Como ex-voto aos deuses.

 

Vê de longe a vida.

Nunca a interrogues.

Ela nada pode

Dizer-te. A resposta

Está além dos Deuses.

 

Mas serenamente

Imita o Olímpo

No teu coração.

Os deuses são deuses

Porque não se pensam.

 

1-7-1916

Gerhard Richter Abstracção 1994 (3)

170

Sob a leve tutela

De deuses descuidosos,

Quero gastar as concedidas horas

Desta fadada vida.

 

Nada podendo contra

O ser que me fizeram,

Desejo ao menos que me haja o Fado

Dado a paz por destino.

 

Da verdade não quero

Mais que a vida; que os deuses

Dão vida e não verdade, nem talvez

Saibam qual a verdade.

171

Sob estas árvores ou aquelas árvores

Conduzi a dança,

Conduzi a dança, ninfas singelas

Até ao amplo gozo

Que tomais da vida. Conduzi a dança

E sê quasi humanas

Com o vosso gozo derramado em ritmos

Em ritmos solenes

Que a vossa alegria torna maliciosos

Para nossa triste

Vida que não sabe sob as mesmas árvores

Conduzir a dança…

Gerhard Richter Abstracção 1995

in Ricardo Reis, Poesias, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.

Acompanham os poemas imagens de pinturas de Gerhard Richter (1932), tituladas todas abstracção, e pintadas entre 1990 e 1995.

Gerhard Richter Abstracção 1995 (2)

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