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A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Parafraseando Camilo Castelo Branco, diria que os leitores do blog são bons e pacientes, mas também querem não ser tentados a perder essas excelentes qualidades, por isso deixo de lado as obscuridades poéticas com que me tenho ocupado, e dei exemplo nos últimos artigos, e regresso a Fernando Pessoa na forma do seu heterónimo Ricardo Reis.
Num pequeno grupo de poemas criados de 1916 a 1933, lemos diferentes pontos de vista sobre vida e destino consubstanciáveis nos versos Com que vida encherei os poucos breves / Dias que me são dados?
e que abrem o primeiro poema escolhido.
Mais à frente duas reflexões sobre carpe diem — goza o dia —no poema 61 de 1923:
Goza este dia como / Se a Vida fosse nele.,
e no poema 144 de 1933:
No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.
Oscilando entre desejar o gozo do efémero e a consciência de viver uma vida Que nem quero nem amo, / Minha porque sou ela. (Poema 145), acontece a recomendação Vê de longe a vida. / Nunca a interrogues. / Ela nada pode /Dizer-te. (Poema 34).
Porque a vida, felizmente, não nos surge sempre da mesma cor, terminemos com um desejo:
Sob a leve tutela / De deuses descuidosos, /Quero gastar as concedidas horas / Desta fadada vida. (poema 170),
Conduzi a dança, ninfas singelas / Até ao amplo gozo / Que tomais da vida. (poema171).
Feito o intróito, seguem-se os poemas.
67
Com que vida encherei os poucos breves
Dias que me são dados? Será minha
A minha vida ou dada
A outros ou a sombras?
À sombra de nós mesmos quantas vezes
Inconscientes nos sacrificamos,
E um destino cumprimos
Nem nosso nem alheio!
Porém nosso destino é o que for nosso,
Quem nos deu o acaso, ou, alheio fado,
Anônimo a um anônimo,
Nos arrasta a corrente.
Ó deuses imortais, saiba eu ao menos
Aceitar sem querê-lo, sorridente,
O curso áspero e duro
Da strada permitida.
5-5-1925
61
De uma só vez recolhe
As flores que puderes.
Não dura mais que até à noite o dia.
Colhe de que lembrares.
A vida é pouco e cerca-a
A sombra e o sem-remédio.
Não temos regras que compreendamos,
Súbditos sem governo.
Goza este dia como
Se a Vida fosse nele.
Homens nem deuses fadam, nem destinam
Senão que ignoramos.
24-10-1923
144
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
O dia real que vemos? No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933
145
Súbdito inútil de astros dominantes,
Passageiros como eu, vivo uma vida
Que nem quero nem amo,
Minha porque sou ela.
No ergástulo de ser quem sou, contudo,
De em mim pensar me livro, olhando no atro
Os astros que dominam,
Submisso de os ver brilhar.
Vastidão vã que finge de infinito
(Como se o infinito se pudesse ver!) —
Dá-me ela a liberdade?
Como, se ela a não tem?
19-11-1933
34
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixar a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos Deuses.
Mas serenamente
Imita o Olímpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
1-7-1916
170
Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.
Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.
Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.
171
Sob estas árvores ou aquelas árvores
Conduzi a dança,
Conduzi a dança, ninfas singelas
Até ao amplo gozo
Que tomais da vida. Conduzi a dança
E sê quasi humanas
Com o vosso gozo derramado em ritmos
Em ritmos solenes
Que a vossa alegria torna maliciosos
Para nossa triste
Vida que não sabe sob as mesmas árvores
Conduzir a dança…
in Ricardo Reis, Poesias, edição Manuela Parreira da Silva, Assírio & Alvim, Lisboa, 2000.
Acompanham os poemas imagens de pinturas de Gerhard Richter (1932), tituladas todas abstracção, e pintadas entre 1990 e 1995.