Etiquetas
Sonhos! Que à vida dão tenaz matiz,
Sonhos, desejo de acontecimentos, são eles que nos movem, fazendo-nos, e ao mundo, mudar com eles. Mas não é destes sonhos que os dois poemas de Edgar Allan Poe (1809-1849) nos falam. Antes remetem para a nostalgia do vivido: Ah, que fosse sempre um sonho a mocidade!
É complexo o nosso eu interior, e na multiplicidade significante dos sonhos muitas vezes nos enleamos. Não tanto nos sonhos para onde o sono nos leva e a psicanálise escrutina, mas naquele acordado sonhar que nos confunde e por vezes faz misturar indistintamente desejo e realidade, afastando-nos do pragmatismo que permite traçar o caminho entre o sonho e a sua materialização.
Que faz senão sonhar sempre acordado / Aquele que olha de soslaio / As coisas em redor, e com um raio / Apontado para o passado?
Demos à vida o sonho. Que mais podia haver de tão brilhante / No astro claro da Verdade?
Sonhos
Ah, que fosse sempre um sonho a mocidade!
E minha alma apenas despertasse à luz
Da manhã que vem com a eternidade;
Sim! pesasse o sonho embora como cruz,
Melhor me serviria ao coração
(Desde sempre, nesta terra de dormência,
Um caos de tumulto e funda paixão…)
Do que a vida desperta da existência.
Oh, pudesse ser assim… um sonho eterno
E constante… como esses que eu tive, incríveis,
Em rapaz… se tais coisas fossem possíveis,
Para quê querer ainda o Céu superno!
Pois em sonhos gozei a chama do Verão
No azul celeste, nos campos brilhantes…
Sem pejo, deixei o próprio coração
Em climas por mim criados… tão distantes
Do meu próprio lar, com ideias dos seres
Que eu inventava… oh, que mais podia eu ver?
Por uma vez, só uma… e essa hora ousada
Jamais posso eu esquecer (uma energia
Me tinha encantado)… houve uma brisa fria
Que desceu à noite e deixou, de abalada,
Sua forma em minha alma… ou o clarão
Da lua — quem sabe? — gelou o meu sono,
Ou os astros… ou o que fosse… esse sonho
Foi como o vento à noite… que passe então.
Embora num só sonho… eu fui feliz,
Fui tão feliz… E eu amo essa tontura…
Sonhos! Que à vida dão tenaz matiz,
Ou propiciam a contenda obscura
Da símile face ao real — e à vista
Delirante trazem coisas mais formosas
Do Céu e do Amor (e são nossas conquistas!)
Do que jamais as teve a Esperança radiosa.
Um Sonho
Em visões do breu nocturno e incerto
Sonhei com o prazer de outrora…
Mas um sonho desperto, pela aurora,
Deixou-me o coração deserto.
Que faz senão sonhar sempre acordado
Aquele que olha de soslaio
As coisas em redor, e com um raio
Apontado para o passado?
Aquele sonho santo… visionário,
Enquanto o mundo escarnecia,
Me acalentou, tal chama que irradia
Guiando uma alma solitária.
E embora aquela luz, na tempestade
E breu, tremesse lá distante…
Que mais podia haver de tão brilhante
No astro claro da Verdade?
Tradução de Margarida Vale de Gato
in Edgar Allan Poe, Obra Poética Completa, Edições tinta-da-china, Lisboa, 2009.
A imagem de abertura respeita a uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989), Segundo a cabeça de Juliano de Medicis em Florença, de 1982.