Ainda que os leitores do blog, na sua maioria, permaneçam indiferentes a esta poesia antiga em que a suavidade do amor, seus prazeres e desenganos se espraia, continuo a mostrá-la depois de mais de duzentos anos guardada em livros raros. Hoje é mais um dos poetas da Nova Arcádia, Joaquim Severino Ferrás de Campos (1760-1813), Alcino Ulisiponense, de seu nome arcádico. Amigo de Bocage e do poeta Bingre, a sua poesia mereceu a ambos o elogio poético, e o comentário de Pato Moniz, de que alguma dela seria superior à poesia de Reis Quita.
A sua obra poética foi em grande parte reunida no volume Rimas, de onde transcrevo três sonetos. Neles, respira-se a mesma qualidade da poesia amorosa quinhentista ainda que envolvida por vezes na capa pastoril do edonismo arcádico. A todos subjaz uma filosofia do prazer: Enquanto o Fado nos concede a vida / De amor doces prazeres desfrutemos,
ainda que temperado pelo doce sofrimento do amor: Meu prazer em pesar foi convertendo; / … / Hoje levo a chorar um dia inteiro.
A um primeiro soneto com o enlevo do amor repassado de tristeza pela ausência da amada Lília:
O silêncio em que jaz a natureza /… /Me imprime na cansada fantasia / Mil saudosas imagens de tristeza.
segue-se um soneto onde o poeta lamenta o engano e a ingratidão de uma mesma ou diferente Lília:
Quanto iludido andei, quanto indiscreto, / Em crer seus juramentos fabulosos, / Nascidos só dum aparente afecto.
Termino com um terceiro soneto de convite a gozar o dia que passa — carpe diem — Às nossas almas liberdade dêmos / De se engolfarem na amorosa lida. subordinado ao mote: As horas de prazer voam ligeiras
Deixo-vos com os sonetos na totalidade.
Soneto VI
O silêncio em que jaz a natureza
No mais alto da noite escura, e fria,
Me imprime na cansada fantasia
Mil saudosas imagens de tristeza.
Tudo o que encerra a vasta redondeza
A gozar do repouso principia:
Só eu, que o cego amor tenho por guia
Corro após os encantos da beleza.
Cheio de mil saudades penetrantes,
Sem ver da minha Lilia o gesto brando,
Envio ao céu suspiros incessantes.
E por ir meus pesares mitigando,
Nas estrelas que vejo mais brilhantes
Estou seus lindos olhos contemplando.
Soneto X
Quantas vezes à sombra deste ulmeiro,
Que nas águas do Tejo se está vendo,
De Lilia no regaço adormecendo
Bendisse o meu ditoso cativeiro.
Mas quão depressa o Fado lisonjeiro
Meu prazer em pesar foi convertendo;
De Lilia a ingratidão, oh crime horrendo!
Hoje levo a chorar um dia inteiro.
Quanto iludido andei, quanto indiscreto,
Em crer seus juramentos fabulosos,
Nascidos só dum aparente afecto.
Mas quem diria, oh Numes rigorosos,
Que haviam empregar-se em torpe objecto
Olhos tão meigos, olhos tão formosos.
Mote
As horas de prazer voam ligeiras
Soneto XXI
Enquanto o Fado nos concede a vida
De amor doces prazeres desfrutemos,
Às nossas almas liberdade dêmos
De se engolfarem na amorosa lida.
Deixa temores vãos, Laura querida,
E já que a sorte quer que nos amemos,
Vindoiros infortúnios arrostemos,
Que o dano, a um puro amor, não intimida.
Eu jurei de ser teu, tu de ser minha,
Promessas tais, meu Bem, são verdadeiras;
Guardado Amor para te amar me tinha.
Esquivar-te à ternura, ah não, não queiras;
Que o tempo corre, a morte se avizinha,
As horas do prazer voam ligeiras.
Fado é usado nos soneto com o significado de sorte;
Lisonjeiro é no soneto usado com o significado de atractivo, gostoso, aprazível;
Indiscreto significa no soneto imprudente;
(v. Dicionário de Morais)
Sonetos transcritos de RIMAS de Joaquim Severino Ferrás de Campos, na Oficina de Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1794.
Modernizei a ortografia.
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