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vicio da poesia

Category Archives: Raros/Curiosos

Philogelos — Facécias escolhidas e De humana physiognomonia de Battista della Porta

14 Terça-feira Jan 2020

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Giovanni Battista della Port, Hiérocles e Filágrio

Do vasto funda da literatura grega antiga respigo hoje algumas facécias de  Philogelos, (O Gracejador) na tradução portuguesa. Obra de autoria desconhecida e compilação em data incerta, mas posterior ao séc. IV, atribuída a dois autores, Hiérocles e Filágrio, é uma colecção de gracejos em que os ecos de alguns deles, transformados, chegaram até nós (p. ex. os nºs 9 ou 148). Escolho sobretudo idiotices, ou piadas com e sobre idiotas, afinal muito do alimento das cenas de comédia e “apanhados” nas televisões dos nossos dias.

De caminho, acompanho a escolha com algumas gravuras com fisionomias humanas, presumo que inventadas, incluídas na obra De humana physiognomonia (1586), de Giovanni Battista della Porta (1535-1615), constituindo elas um mosaico de plausíveis espécimes de humanidade.

Eis a escolha:

3.  Um indivíduo, ao consultar um médico idiota, fez a seguinte afirmação: – “Doutor, sempre que me levanto depois de dormir, sinto-me zonzo durante uma meia hora, mas depois fico bem.” Ao que o médico respondeu: – “Então espere meia hora antes de se levantar.”

9. Um idiota tentou ensinar o seu burro a não comer tanto, não lhe dando alimento. Todavia, como o burro morresse, ele exclamou. “Que grande desgraça!  Mal eu o tinha ensinado a não comer, dá-lhe para morrer!”

93. Tendo verificado que uma escada tinha vinte degraus a subir, um néscio procurou indagar quantos é que tinha a descer.

88. Quando escalou uma montanha escarpada ao regressar a casa de uma viagem, um simplório, admirado, constatou: “Não consigo entender. Da primeira vez que passei por aqui era uma descida. Como é possível que tenha mudado tão depressa para uma subida?”

11. Pretendendo saber que aspecto tinha enquanto dormia, um imbecil pôs-se à frente de um espelho com os olhos fechados.

15. Tendo sonhado que tinha pisado um prego, um desmiolado resolveu pôr uma ligadura no pé. Explicou o porquê a um amigo, que indagou o que lhe tinha acontecido. “Não admira que nos chamem parvos!”, explicou o amigo. “O que é que te deu para dormires descalço?”

70. Ao chegar para visitar um amigo doente, um idiota foi informado pela esposa que o seu amigo já tinha partido. – “Então quando ele regressar, diga-lhe que eu estive aqui.”

104. Um avarento colocou-se a si mesmo como herdeiro no próprio testamento.

154. Em Cumas, alguém perguntou aos condolentes do funeral de um distinto cidadão: “Quem é o morto?” Um dos habitantes de Cumas voltou-se e apontou o dedo, esclarecendo: “É aquele ali, que vai estendido no carro fúnebre”.

171. Um homem de Cumas entregou o corpo do seu pai que tinha falecido em Alexandria a um embalsamador. Voltou mais tarde para ir buscá-lo, mas o embalsamador, que estava rodeado de outros corpos, perguntou que marca distintiva é que o seu pai tinha. – “Tossia muito.”

247. Um misógino estava a enterrar a sua falecida mulher. “Quem é que ganhou o descanso eterno?”, perguntou alguém. “Eu, agora que me vi livre dela.”

148. Um barbeiro tagarela perguntou a um engraçadinho: “Como é que eu devo cortar o teu cabelo?”. “Em silêncio” – disse ele.

206. Perguntou-se a um cobarde: “Que navios são mais seguros – navios de guerra ou navios mercantis? “Navios atracados.” – foi a sua resposta.

207. Tendo passado a noite inteira a sonhar que estava a ser perseguido por um urso, um caçador cobarde comprou uns cães e pô-los a dormir consigo.

Termino com uma brejeirice, que a colecção também contém.

251. Uma mulher tinha um escravo atrasado mental. Mas quando ela se apercebeu que ele possuía uma protuberância excepcionalmente grande, desenvolveu uma paixão por ele. Cobriu a cara com uma máscara para que ninguém a reconhecesse e levou-o para a cama. Mas nisto ele identificou de quem se tratava. Então chegou ao pé do senhor da casa e disse com uma risada: “Senhor, senhor! Dormi com a dançarina mascarada e a senhora estava lá dento!”

 

in Hiérocles e Filágrio, Philogelos (O Gracejador). Tradução do grego, introdução e notas: Reina Marisol Troca Pereira, Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos, Universidade de Coimbra, 2013.

A numeração que antecede cada facécia é a desta edição.

Fecho o artigo com a imagem de abertura da obra De humana physiognomonia onde podemos ver um retrato do seu autor, Giovanni Battista della Porta.

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A Criação da Mulher por Americo Elysio

23 Quarta-feira Set 2015

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Americo Elysio, José Anastácio da Cunha, José Bonifácio de Andrade e Silva

Boucher - Venus e Amor com pombas e maçã pastelSatisfazendo simultaneamente o meu gosto pela poesia antiga e a curiosidade sobre o que não sei que existe, mergulho algumas vezes na produção poética da segunda metade de setecentos.

Vasto universo de banalidades poéticas, como qualquer outra época, uma vez por outra surge um poema ignorado que pela originalidade na abordagem do tema, desenvoltura do ritmo, ou especial cuidado no tratamento da ideia, apetece resgatar do pó dos arquivos.

É agora a vez de um poema do brasileiro Americo Elysio (José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838)), A Criação da Mulher. Nele o poeta desenvolve o deambular solitário do primeiro Homem, e o seu desnorte nesta solidão. O deus pagão, Jove, dando conta de quanto este infeliz não desfrutava das belezas do mundo natural, vagueando, sem encontrar contentamento, convocou os outros deuses. Para resolver o problema decidiram criar a mulher dotada das belezas de Vénus. E ei-la que desce à Terra.

Ao vê-la o homem / Pasma, estremece! / Quer abraçá-la, / Corre, enlanguece!

 

“Quem és? és Deusa? / (O homem lhe grita) / Ah! se pudesses /Trazer-me dita!”

 

Ela responde: / “Sou tua esposa; / Deixa a tristeza, / Ama-me, e goza.”

 

Saboreai agora o poema:

 

A CREACÃ0 DA MULHER

 

Já tinha o Mundo

Jove formado,

E rei de tudo

O Homem criado.

 

Mas solitário

Este se achava:

Brusca tristeza

O dominava.

 

Com mão profusa

A natureza

Em vão mostrava

Tanta beleza!

 

Cantavam aves,

Bulia o vento:

Tudo infundia

Contentamento.

 

Florido o vale

Reverdecia:

De aromas mil

O ar se enchia.

 

Manhã serena

Leda brilhava:

Manto de estrelas

A noite ornava.

 

E todavia,

Qual duro tronco,

O Homem jazia

Sisudo e bronco.

 

Covas escuras,

Mata enredada,

Nelas fazia

Sua morada.

 

No solio eterno

Jove sentado,

Então aos Deuses

Fala pousado:

 

“Mortal soberbo

Com o entendimento

Sondar pretende

Mistérios cento:

 

“Só, pensativo

Se desalenta;

Do mundo inteiro

Nada o contenta.

 

“Eu distraí-lo

Quero piedoso;

Beba sua alma

Nectar gostoso.”

 

Forma então Jove

Nova creatura;

De Venus bela

Fiel pintura.

 

Esbelto talhe,

Meneo brando,

Mil amorinhos

Vão rebanhando!

 

De oiro madeixas,

Ao vento soltas,

Ameigam feras,

Que andam revoltas.

 

Os Cupidinhos

Dos verdes olhos

Duros despedem

Setas a molhos.

 

Covas da face

Branca e rosada,

Vós sois das Graças

Gentil morada!

 

Vozes suaves,

Que as almas prendem ,

De fio em fio

Dos beiços pendem.

 

Ah! são seus beiços

Fontes de vida!

Em neve pura

Romã partida!

 

As alvas tetas

De marfim puro

Ah! são mais rijas

Que cristal duro!

 

Carne mimosa

Que a vista enleva,

Onde o desejo

Em vão se ceva!

 

Ao vê-la o homem

Pasma, estremece!

Quer abraçá-la,

Corre, enlanguece!

 

“Quem és? és Deusa?

(O homem lhe grita)

Ah! se pudesses

Trazer-me dita!”

 

Ela responde:

“Sou tua esposa;

Deixa a tristeza,

Ama-me, e goza.”

No contexto da produção poética da época, o poema traz algumas novidades que o tornam notável: a forma adoptada é a da redondilha menor, cultivada na idade média, fugindo assim ao cânone formal defendido pelas várias academias da época do autor; o assunto, por um lado vestindo ainda uma capa da mitologia, remete para o imaginário cristão e a criação de Adão e Eva no paraíso terreal; por outro, dá conta de uma leitura da natureza como valor em si, e não como cenário de amores, apanágio da poesia da época; finalmente, ao fechar, entrega a iniciativa amorosa à mulher, despido qualquer pudor, no que será o seu mais surpreendente e original conteúdo:

“Sou tua esposa; / Deixa a tristeza, / Ama-me, e goza.”

Todos estes aspectos fazem do poema um ponto charneira entre a poesia neo-clássica praticada na segunda metade de setecentos e a poesia romântica que o século XIX traria.

Não é aqui o lugar para desenvolver a argumentação em volta do tema. Ficam os tópicos de leitura que, espero, ajudem a destacar o relevo deste Creacão da Mulher.

Usando a forma padronizada do soneto, o poema que segue conta-nos de uma Narcina refrescando-se na fonte.

Partindo do vocabulário comum à época (o desejo espicaçado referido como setas de Cupido envenenadas: Com ponteagudas setas que ela hervara**, /Bando de Cupidinhos revoava.), seguimos o olhar do poeta à medida que percorre o corpo da mulher.  Aí o poema ganha arrojo ao dizer-nos como ela, deixando ver o peito e a coxa, abrasa o poeta ao levantar o vestido, sem que, no entanto,  à vista deixe o sexo, o que o poeta lamenta:

Parte da linda coixa, regaçado, /O cândido vestido descobria; / Mas o templo de amor ficou cerrado:

 

SONETO

Eu vi Narcina um dia que folgava

Na fresca borda de uma fonte clara:

Os peitos, em que Amor brinca e se ampara,

Com aljofaradas* gotas borrifava.

 

O colo de alabastro nu mostrava

A meu desejo ardente a incauta avara.

Com ponteagudas setas que ela hervara**,

Bando de Cupidinhos revoava.

 

Parte da linda coixa, regaçado,

O cândido vestido descobria;

Mas o templo de amor ficou cerrado.

 

Assim eu vi Narcina.—Outra não cria

O poder da Natura, já cansado;

E se a pode fazer, que a faça um dia.

 

*Aljofar — pérola  menos graúda; gotas de água aperoladas.

Aljofarar — ornar de aljofar.

** Hervar — untar com sumos de ervas venenosas.

(Dic. Morais ed 1813)

Com uma invulgar palpitação erótica é a Ode que segue, publicada pelo autor em 1825 e que o editor póstumo em 1861 entendeu suprimir.

Nela, As nítidas maminhas vacilantes / Da sobre-humana Eulina, / Se com férvidas mãos ousado toco, / Ah! que me imprimem súbito / Eléctrico tremor, que o corpo inteiro / Em convulsões me abala!

A Ode vai por aí fora dando conta da perturbação física do homem ao contacto do corpo da mulher, e, depois de um primeiro êxtase, Morro de todo, amada! / Fraqueja o corpo, balbucia a fala! / Deleites mil me acabam!, volta o entusiasmo, e aí o temos voraz outra vez:

Mas ah! que impulso novo, ó minha Eulina! / Resistir-lhe não posso….

terminando com o … morramos, que nesta poesia não é mais que o clímax do êxtase sexual simultâneo:

Deixa com beijos abrasar teu peito: / Une-te a mim…. morramos.

Este final remete-me a memória para uma Ode ao orgasmo simultâneo de José Anastácio da Cunha (1744-1787) que há anos transcrevi no blog.

Foram, um e outro, notáveis homens de ciência, e, talvez por isso, espíritos mais desempoeirados, deram mostra de uma ousada explicitação poética dos prazeres do corpo.

 

ODE

As nítidas maminhas vacilantes

Da sobre-humana Eulina,

Se com férvidas mãos ousado toco,

Ah! que me imprimem súbito

Eléctrico tremor, que o corpo inteiro

Em convulsões me abala!

[O sangue*]  ferve: em catadupas cai-me…;

Brotam-me lume as faces…

Raios vibram os olhos inquietos

Os ouvidos me zunem!

Fugir me quer o coração do peito…

Morro de todo, amada!

Fraqueja o corpo, balbucia a fala!

Deleites mil me acabam!

Mas ah! que impulso novo, ó minha Eulina!

Resistir-lhe não posso…

Deixa com beijos abrasar teu peito:

Une-te a mim… morramos.

 

* Falta a palavra na edição. [O sangue] é suposição minha (C.M.L.).

Nos poemas transcritos modernizei ligeiramente a ortografia e a pontuação para facilitar a leitura aos menos familiarizados com esta poesia antiga.

Noticia bibliográfica

Poesias Soltas de Americo Elysio (José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838), Bordeos,1825.

Também existe edição póstuma de 1861 com o título Poesias de Americo Elysio, edição  no Rio de  Janeiro.

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Canção de Amor — Anónimo séc X-XI

25 Domingo Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Arpad Szenes, Carmina Cantabrigiencia, Poesia Goliárdica

Arpad Sczenes - A alcova 1935

Transcrevo a seguir uma canção de amor do cancioneiro goliárdico Carmina Cantabrigiencia.

Estes cancioneiros, escritos em latim medieval, e acompanhados da forma de os cantar, gozam de uma aura de licença decorrente da suposta vida dos seus autores, ainda que em muitos poemas não fujam à sátira sobre vícios e desmandos da época. São na sua maioria canções anónimas, e seriam cantadas por estudantes universitários da Europa medieval, que, não exactamente diminuídos de posses, circulariam de universidade em universidade, levando uma vida de estúrdia, repartida entre comes e bebes, mulheres, e jogo, a atender ao teor de algumas das canções conhecidas.

Talvez o mais conhecido destes cancioneiros seja Carmina Burana, do qual noutro artigo falei. O cancioneiro onde se encontra o poema de hoje é mais antigo e conhecido como Carmina Cantabrigiencia — Canções Cantabrigenses ou de Cambridge, assim chamado por pertencer à universidade de Cambridge.

 

 

Iam, Dulcíssima Amica, Venito

 

Vem agora, doce amiga,

a meu coração tão cara!

Vem agora a minha casa,

para ti toda enfeitada…

 

Há véus que pendem do tecto;

e há cadeiras, e almofadas;

e também não faltam flores,

por entre ervas perfumadas…

 

A mesa já está servida,

de iguarias carregada;

e haverá límpido vinho,

e tudo o que mais te agrada…

 

Ouvirás, ao som da flauta,

doces músicas tocadas;

por um moço e uma donzela

belas canções entoadas…

 

Ele canta ao som da cítara,

ela na lira embalada…

E os servos trazem taças

com bebidas aromáticas…

 

—”Agrada-me mais que a mesa,

A agradável sobremesa;

Mais que a rica pitança,

A amorosa confiança.”

 

Vem agora, minha irmã,

acima de tudo amada,

ó clara luz dos meus olhos,

parte maior da minh’alma!

 

—”Sempre vivi na floresta,

Não amei lugares de festa;

Evitei sempre o gentio,

E das gentes me desvio.”

 

Meu amor não queiras tardar

Empenhemos-nos em amar.

Sem ti viver é bem duro,

O nosso amor está maduro.

 

Porquê, amiga, entreter,

Se por fim se irá fazer?

O teu que fazer acelera,

Pois eu já não tenho espera.

 

Carmina Cantabrigiencia, tradução de David Mourão-Ferreira versos 1-20, 25-28 in Vozes da Poesia Europeia – I.

 

Os restantes versos do poema são tradução minha a partir de versão castelhana, e apresentam-se em itálico no poema.

 

Para os leitores curiosos, tanto do original latino do poema, como de outra poesia goliardica, desde que leiam castelhano,  encontram um manancial na edição Poesia Goliardica, tradução de Miguel Requena, edição Alcantilado, Barcelona, 2003 .

 

A abrir, a imagem de A alcova, pintura de Arpad Szenes (1897-1985).

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A mão do amor… poema de Ibn Jafäya

17 Sábado Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Ibn Jafäya, Poesia do Al-Andaluz

Iluminura 12 600

A memória de amores felizes consegue dar-nos poemas onde a magia do vivido transparece.

São pouco frequentes na poesia da tradição ocidental. Não assim entre os poetas do Al-Andaluz junto de quem o gosto de cantar a felicidade do amor carnal ia de par com o poetar sobre as outras transcendências da vida.

 

A mão do amor vestiu-nos,

durante a noite, com uma túnica de abraços

que só a mão da aurora

veio por fim rasgar.

 

Para um fim-de-semana feliz é bastante!

 

Poema de Ibn Jafäya (1058-1138) em tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I.

Com mais vagar virá noticia circunstanciada sobre o poeta: vida e obra.

 

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Vinho e amor — um poema de Ibn Baqî em duas versões

16 Sexta-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Ibn Baqî, Poesia do Al-Andaluz

Miniatura persa 01A

Vinho e amor, combinação sublime que a poesia canta nos mais variados registos, surge em quase todas as tradições poéticas que o prazer não temem. Hoje, um poema do cancioneiro herdado do Al-Andaluz, transcrito em duas versões. O poeta, esse foi Ibn Baqî  (?-1150).

De Ibn Baqî apenas sei que nasceu em Toledo. Segundo as fontes consultadas terá sido um poeta errante desde a juventude, partindo cedo para Saragoça, passando a Córdova e mais tarde Sevilha. Terá atravessado o estreito de Gibraltar até Marrocos, de onde, na sua continuada busca e insatisfação (diz-se que era muito orgulhoso de si) regressou à Andaluzia natal, onde morreu em 1150.

 

O poema, todo ele excitação e força, tem nas versões de Jorge Sousa Braga, primeiro, e David Mourão-Ferreira, depois, resultados equivalentes na dissemelhança das opções de tradução.

 

Cena de Amor

 

Enquanto a noite arrastava a sua cauda de sombra

dei-lhe a beber vinho escuro e espesso como o pó de almíscar

E estreitei-a contra mim como um guerreiro estreita a espada

e as suas tranças pendiam dos meus ombros como talins

 

Quando por fim se rendeu ao sono afastei-a de mim

Afastei-a do meu peito

para que não adormecesse sobre uma almofada palpitante

 

Versão de Jorge Sousa Braga

 

*

Quando a noite arrastava a sua cauda de sombra,

dei-lhe a beber um vinho escuro e espesso

como o almíscar em pó

que se sorve pelas narinas.

 

Apertei-a com força, como o valente aperta a espada,

e as suas tranças eram correias de couro

que de meus ombros afinal pendessem…

 

Até que finalmente a afastei de mim

(de mim, a quem estava abraçada…)

quando ao peso do sono se rendeu.

 

Sim, afastei-a do peito que a amava

— para que não dormisse, em sobressalto,

sobre uma tão incómoda almofada

que só por causa dela palpitava.

 

Versão de David Mourão-Ferreira

Notícia bibliográfica

 

Tradução de Jorge Sousa Braga in O Vinho e as Rosas, Antologia de poemas sobre a embriaguês, Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.

 

Tradução de David Mourão-Ferreira in Vozes da Poesia Europeia – I, Colóquio Letras nº163, Lisboa Janeiro-Abril de 2003.

 

Traduções feitas a partir de fontes indirectas, e que serão em David Mourão-Ferreira a histórica versão castelhana de Emilio Garcia Gomez, não sendo a fonte indicada para a tradução de Jorge Sousa Braga,

 

Mahmud Sobh, El diván de la poesía árabe oriental y andalusí, Visor Libros, Madrid, 2012.

 

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As horas de prazer voam ligeiras — sonetos de Joaquim Severino Ferrás de Campos

06 Domingo Abr 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia Portuguesa antiga, Raros/Curiosos

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Academia de Belas Letras de Lisboa, Joaquim Severino Ferrás de Campos, Nova Arcádia

Lagrenee - Echo e NarcisusA

Ainda que os leitores do blog, na sua maioria, permaneçam indiferentes a esta poesia antiga em que a suavidade do amor, seus prazeres e desenganos se espraia, continuo a mostrá-la depois de mais de duzentos anos guardada em livros raros. Hoje é mais um dos poetas da Nova Arcádia, Joaquim Severino Ferrás de Campos (1760-1813), Alcino Ulisiponense, de seu nome arcádico. Amigo de Bocage e do poeta Bingre, a sua poesia mereceu a ambos o elogio poético, e o comentário de Pato Moniz, de que alguma dela seria superior à poesia de Reis Quita.

A sua obra poética foi em grande parte reunida no volume Rimas, de onde transcrevo três sonetos. Neles, respira-se a mesma qualidade da poesia amorosa quinhentista ainda que envolvida por vezes na capa pastoril do edonismo arcádico. A todos subjaz uma filosofia do prazer: Enquanto o Fado nos concede a vida / De amor doces prazeres desfrutemos,

ainda que temperado pelo doce sofrimento do amor: Meu prazer em pesar foi convertendo; / … / Hoje levo a chorar um dia inteiro.

 

 

A um primeiro soneto com o enlevo do amor repassado de tristeza pela ausência da amada Lília:

O silêncio em que jaz a natureza /… /Me imprime na cansada fantasia / Mil saudosas imagens de tristeza.

 

segue-se um soneto onde o poeta lamenta o engano e a ingratidão de uma mesma ou diferente Lília:

 

Quanto iludido andei, quanto indiscreto, / Em crer seus juramentos fabulosos, / Nascidos só dum aparente afecto.

 

Termino com um terceiro soneto de convite a gozar o dia que passa — carpe diem — Às nossas almas liberdade dêmos / De se engolfarem na amorosa lida. subordinado ao mote: As horas de prazer voam ligeiras

 

Deixo-vos com os sonetos na totalidade.

 

Soneto VI

 

O silêncio em que jaz a natureza

No mais alto da noite escura, e fria,

Me imprime na cansada fantasia

Mil saudosas imagens de tristeza.

 

Tudo o que encerra a vasta redondeza

A gozar do repouso principia:

Só eu, que o cego amor tenho por guia

Corro após os encantos da beleza.

 

Cheio de mil saudades penetrantes,

Sem ver da minha Lilia o gesto brando,

Envio ao céu suspiros incessantes.

 

E por ir meus pesares mitigando,

Nas estrelas que vejo mais brilhantes

Estou seus lindos olhos contemplando.

 

Soneto X

 

Quantas vezes à sombra deste ulmeiro,

Que nas águas do Tejo se está vendo,

De Lilia no regaço adormecendo

Bendisse o meu ditoso cativeiro.

 

Mas quão depressa o Fado lisonjeiro

Meu prazer em pesar foi convertendo;

De Lilia a ingratidão, oh crime horrendo!

Hoje levo a chorar um dia inteiro.

 

Quanto iludido andei, quanto indiscreto,

Em crer seus juramentos fabulosos,

Nascidos só dum aparente afecto.

 

Mas quem diria, oh Numes rigorosos,

Que haviam empregar-se em torpe objecto

Olhos tão meigos, olhos tão formosos.

 

Mote

 

As horas de prazer voam ligeiras

 

Soneto XXI

 

Enquanto o Fado nos concede a vida

De amor doces prazeres desfrutemos,

Às nossas almas liberdade dêmos

De se engolfarem na amorosa lida.

 

Deixa temores vãos, Laura querida,

E já que a sorte quer que nos amemos,

Vindoiros infortúnios arrostemos,

Que o dano, a um puro amor, não intimida.

 

Eu jurei de ser teu, tu de ser minha,

Promessas tais, meu Bem, são verdadeiras;

Guardado Amor para te amar me tinha.

 

Esquivar-te à ternura, ah não, não queiras;

Que o tempo corre, a morte se avizinha,

As horas do prazer voam ligeiras.

 

 

Fado é usado nos soneto com o significado de sorte;

Lisonjeiro é no soneto usado com o significado de atractivo, gostoso, aprazível;

Indiscreto significa no soneto imprudente;

(v. Dicionário de Morais)

 

Sonetos transcritos de RIMAS de Joaquim Severino Ferrás de Campos, na Oficina de Thaddeo Ferreira, Lisboa, 1794.

Modernizei a ortografia.

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Um soneto de João Baptista de Lara — Albano Ulisiponence na Nova Arcádia

31 Segunda-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Albano Ulisiponence, João Baptista de Lara

Karl Schmidt-Rottluff 09

Cansado pensamento, em paz me deixa / Respirar um momento sossegado
…
Não perturbes meu sono desejado / Mostrando-me um rival afortunado

A fadiga mental que o desgosto de amor provoca, tem neste soneto do final do século XVIII o recorte poético que quase a torna apetecida, tal a suavidade do verso para dela dar conta, a que se acrescenta o pedido de um sono sem sonhos com o rival que o substituiu.

Quando o frouxo Morfeu meus olhos fecha / Não perturbes meu sono desejado / Mostrando-me um rival afortunado

O soneto foi escrito por João Baptista de Lara (1764-1828), Albano Ulisiponence na Academia de Belas Letras de Lisboa, também conhecida por Nova Arcádia onde pontificou Bocage, e merece saltar do pó do esquecimento. Possui o número 26 no Almanak das Musas Parte I, publicado em 1793. Deixo-vos com o soneto em ortografia modernizada.

Soneto

Cansado pensamento, em paz me deixa
Respirar um momento sossegado
Assaz é tempo enfim que um desgraçado
Ponha termo ao seu pranto, à sua queixa.

Quando o frouxo Morfeu meus olhos fecha
Não perturbes meu sono desejado
Mostrando-me um rival afortunado
Que as armas contra mim, cruel desfecha.

Não sejas tu também meu inimigo,
Se é possível, permite que eu ignore
Ou me esqueça uma vez do meu perigo.

Mas aí de mim! Por mais que ao céu implore
O céu me nega em ti um doce abrigo
E faz que eu sem cessar suspire e chore.

João Baptista de Lara

A imagem que abre o artigo mostra uma pintura do alemão Karl Schmidt-Rottluf (1884-1976).

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A viagem de Brandão ao Paraíso

10 Segunda-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Raros/Curiosos

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Benedeit, Bosch

Triptych of Garden of Earthly Delights (central panel) det8

São os leitores do blog pessoas de austero gosto e ocupadas em elevados pensamentos. Procurando ir ao seu encontro, o que nem sempre se proporciona, transcrevo a visita que Brandão, abade irlandês, terá feito ao paraíso terreal no século VI.

 

…

Eles navegaram quarenta dias no alto-mar

…

Sob a protecção do rei divino

Se acercaram da neblina espessa

Que envolvia aquele lugar do Paraíso.

…

Era a neblina tão cerrada e escura

Que engolia quem nela entrasse

…

Ao acercarem-se viram a nuvem partir-se ao meio

E abrir um espaço com a largura de uma rua

…

Durante três dias navegaram velozes

Por aquele caminho certo e seguro.

…

E ao longe avistaram o Paraíso.

Viram primeiro uma alta muralha

Erguida a direito até às nuvens.

…

Triptych of Garden of Earthly Delights (left wing) det4Introduzidos que estão os leitores no quadro temporal e geográfico da viagem, talvez se perguntem agora:

Mas afinal quem era este Brandão?

 

O Abade Brandão, homem que era

De muito siso, prudente e sagaz,

…

 

E que queria da vida?

 

Queria saber antes ainda da sua morte

Como é a casa onde só os bons podem entrar

E qual o lugar aos maus destinado

Triptych of Garden of Earthly Delights (central panel) det9

Pelos vistos Deus concedeu-lhe o desejo. Aí vai uma parte da história. O resto conta-a Benedeit em A viagem de São Brandão.

 

Visão do Paraíso

 

Abriu-se a porta de par em par

E eles entraram na verdadeira glória.

Seguiu adiante o formoso donzel

Que lhes foi mostrando o Paraíso.

Formosíssimos bosques rios e ribeiras

Cobrem e sulcam aquela terra.

São um jardim as pradarias

Florido tapete das mais belas flores.

Como em lugar piedoso e santo

As flores exalam suaves aromas.

Árvores frondosas flores preciosas

Variados frutos de raro perfume.

Não se vêem ortigas e cardos não há

Não crescem silvas nem matagais.

Árvores e ervas flores e plantas

Tudo desprende suave doçura.

As árvores dão frutos abrem-se as flores

Em cada dia de qualquer estação.

Os dias de verbosas todos os dias

Nas árvores medram as flores e a fruta

Nos bosques pastam veados sem conto

Saborosos peixes nadam nos rios

Nos Campos correm regatos de leite.

É uma terra abundante e farta!

Como o rocio caído do céu

O mel escorre de arbustos e juncos.

Generoso em ouro e pedras de preço

Ergue-se um monte como um tesouro.

Ali é eterno o esplendor do sol

O vento e a brisa não movem um pelo

E não há uma nuvem a pairar no ar

Roubando ao sol claridade e luz.

Quem ali morar penas não sofre

Nem há nenhum mal que lhe toque em sorte

Borrasca ou calor o gelo e o frio

A fome e a sede ou a vil miséria.

A sua riqueza será abundante

De tudo terá mais que à vontade.

Sem nada perder é certo e seguro

No dia a dia tudo há-de achar.

Brandão deleitou-se na alegria

Daquela hora que parece breve.

Ele bem queria ver e gozar

Demorar o olhar sem tempo nem pressa.

O donzel o levou por ali adentro

E muitas coisas lhe foi ensinando

E descrevendo com muitas minúcias

Prazeres e delícias que haverá de gozar.

Foi o donzel com o abade atrás

Até um monte de ciprestes coberto.

Do cume do monte ele viu maravilhas

Que estas palavras não podem contar.

Ele viu os anjos e também os ouviu

Cantar a alegria pela sua chegada.

Jamais escutara tão suave melodia

Tão branda e tão doce que fazia sofrer

E de seu natural não entendia

Não sabia gozar tão imensa glória.

Disse o donzel:  “Regressemos agora!

Mais adiante não vos posso levar

Mais vos mostrar não é permitido

Embora haja ainda muito a saber.

…

Triptych of Garden of Earthly Delights (central panel) det7Tal como Brandão, quando ao paraíso voltar o resto verá, assim os leitores das outras maravilhas saberão quando desta vida partirem…

 

Transcrevi da tradução de José Domingos Morais, edição Assírio & Alvim, Lisboa 2005.

Triptych of Garden of Earthly Delights (central panel) det2Acompanham o artigo imagens do tríptico de Hieronymus Bosch (1450-1516), O Jardim das Delícias.

Bosch_Hieronymus-The_Garden_of_Earthly_Delights

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Aos Poetas Clássicos de Patativa do Assaré

22 Quarta-feira Fev 2012

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas, Raros/Curiosos

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Patativa do Assaré

Em despedida destes tempos de Carnaval, vou buscar à riquíssima tradição da poesia de cordel do Nordeste Brasileiro, a brincadeira sobre os poetas clássicos do grande Patativa do Assaré (1909 – 2002).

Aos Poetas Clássicos

Poetas niversitário,
Poetas de Cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia;
Se a gente canta o que pensa,
Eu quero pedir licença,
Pois mesmo sem português
Neste livrinho apresento
O prazê e o sofrimento
De um poeta camponês.

Eu nasci aqui no mato,
Vivi sempre a trabaiá,
Neste meu pobre recato,
Eu não pude estudá.
No verdô de minha idade,
Só tive a felicidade
De dá um pequeno insaio
In dois livro do iscritô,
O famoso professô
Filisberto de Carvaio.

No premêro livro havia
Belas figuras na capa,
E no começo se lia:
A pá — O dedo do Papa,
Papa, pia, dedo, dado,
Pua, o pote de melado,
Dá-me o dado, a fera é má
E tantas coisa bonita,
Qui o meu coração parpita
Quando eu pego a rescordá.

Foi os livro de valô
Mais maió que vi no mundo,
Apenas daquele autô
Li o premêro e o segundo;
Mas, porém, esta leitura,
Me tirô da treva escura,
Mostrando o caminho certo,
Bastante me protegeu;
Eu juro que Jesus deu
Sarvação a Filisberto.

Depois que os dois livro eu li,
Fiquei me sintindo bem,
E ôtras coisinha aprendi
Sem tê lição de ninguém.
Na minha pobre linguage,
A minha lira servage
Canto o que minha arma sente
E o meu coração incerra,
As coisa de minha terra
E a vida de minha gente.

Poeta niversitaro,
Poeta de cademia,
De rico vocabularo
Cheio de mitologia,
Tarvez este meu livrinho
Não vá recebê carinho,
Nem lugio e nem istima,
Mas garanto sê fié
E não istruí papé
Com poesia sem rima.

Cheio de rima e sintindo
Quero iscrevê meu volume,
Pra não ficá parecido
Com a fulô sem perfume;
A poesia sem rima,
Bastante me disanima
E alegria não me dá;
Não tem sabô a leitura,
Parece uma noite iscura
Sem istrela e sem luá.

Se um dotô me perguntá
Se o verso sem rima presta,
Calado eu não vou ficá,
A minha resposta é esta:
— Sem a rima, a poesia
Perde arguma simpatia
E uma parte do primô;
Não merece munta parma,
É como o corpo sem arma
E o coração sem amô.

Meu caro amigo poeta,
Qui faz poesia branca,
Não me chame de pateta
Por esta opinião franca.
Nasci entre a natureza,
Sempre adorando as beleza
Das obra do Criadô,
Uvindo o vento na serva
E vendo no campo a reva
Pintadinha de fulô.

Sou um caboco rocêro,
Sem letra e sem istrução;
O meu verso tem o chêro
Da poêra do sertão;
Vivo nesta solidade
Bem destante da cidade
Onde a ciença guverna.
Tudo meu é naturá,
Não sou capaz de gostá
Da poesia moderna.

Dêste jeito Deus me quis
E assim eu me sinto bem;
Me considero feliz
Sem nunca invejá quem tem
Profundo conhecimento.
Ou ligêro como o vento
Ou divagá como a lêsma,
Tudo sofre a mesma prova,
Vai batê na fria cova;
Esta vida é sempre a mesma.

Os leitores curiosos sobre o poeta encontram, pesquisando a net pelo nome do autor, abundante informação e mais poesia.

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O Facebook do século XIX e um poema de Faustino Xavier de Novaes

06 Quinta-feira Jan 2011

Posted by viciodapoesia in Raros/Curiosos

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Faustino Xavier de Novaes

Sinto as cócegas do génio e deixo-me ir à mercê da inspiração impetuosa. Isto escrevia Camilo nos idos de 1856.

Hoje, sinto as cócegas e recomendo-me a fuga pois o perigo avizinha-se…

A um amigo que a espaços estacionava no Telhal, quando regressava, perguntava-lhe:

– Então estás melhor?

– Sabes pá, às vezes a vida falha por milímetros!

E tentando evitar a falha, uma vez que passadas estão as festas, voltemos ao trabalho sério, que os leitores aguardam.

O compromisso comigo era manter o blog ao longo de 2010. Cumprido o ciclo muito ficou por escrever. A existência de leitores para além de qualquer expectativa, e o encorajamento de um amigo em especial, leva-me a continuar, abrindo novo ciclo.

Como no ano passado, em prelúdio tivemos Pessoa. Para reinicio de conversa, os tempos estão de feição para a chegada dos satíricos, ausentes por opção ao longo de 2010.

Abro por isso, com o que poderia considerar o Facebook do século XIX, O Álbum.

O Álbum, livro branco com presença registada em Portugal ao longo dos tempos, ainda na minha juventude revestia a forma de Livro de Autógrafos onde amigos registavam testemunhos de apreço ao seu possuidor. Hoje, o mural do Facebook desempenha cabalmente a função, adaptando um hábito ancestral às modas que nos regem.

Na sociedade burguesa do século XIX os álbuns constituiram objectos de socialização. Depositados sobre uma mesa, na sala ou em divisão íntima do seu possuidor, ou ainda enviados a casa de alguém para aí inscrever o seu testemunho (por exemplo, como refere João Penha com enorme discrição, diga-se, o sucedido a João de Deus a propósito do álbum que a amada lhe enviou para aí inscrever uma poesia), foram o pretexto para uma notável sátira de Faustino Xavier de Novaes (1820 – 1869) N’um albunzinho, muito pequenino, d’um meu amiguinho muito baixinho. publicado no nº11 da 1ªParte de O BARDO em tipo pequeno, como convinha.

Arquivos de sensaborias, a maior parte das vezes , eram, como refere Duarte Sá Júnior em 1868:

… / Um terrível tormento. / ,

e acrescenta:

Há sobretudo três casos / Que podem acontecer, / Em que é muito de temer / Que os poetas fiquem rasos.

Primeiro – se é pertencente / O livro a moça solteira; / Falar d’amor é asneira. / Ou ao menos imprudente.

Falar-lhe na madrugada, / Ou na campina, ou no prado, / É motivar-lhe um enfado, / Por se ver ela olvidada.

Segundo – se é d’uma feia, / Ainda há mais que reflectir: / Ou escrever e mentir, / Ou tão mal que ela o não leia.

Mas o caso mais profundo / É n’um Álbum de casada, / Que já está iniciada / Nos mistérios d’este mundo.

Porque dizer-lhe que é bela, / E que se lhe está rendido, / Pode ofender o marido, / Se não a ofender a ela.

Dos álbuns renego bem; / São cousas que não se entendem!… / N’eles louvores ofendem, / E a falta d’eles também.

 

Percorrendo a bibliografia poética publicada ao longo da segunda metade do século XIX, são a cada passo os poemas intitulados – N’um Álbum. E é esta a sua origem. Embora tenham tido destinatário conhecido, nem sempre as recolhas identificaram a quem foram dirigidos.

Salpicados que estamos com a erudição possível a um leigo, eis o poema prometido:

N’um albunzinho, muito pequenino, d’um meu amiguinho muito baixinho.

N’este albumzinho, / Pequerruchinho, / Um vatezinho / Que ha-de escrever? / Uns versozinhos, / Mui sentidinhos? / Uns amorzinhos? / Não póde ser.

Um cantozinho, / Mimosozinho, / Ao liriozinho, / Não dá prazer; / Ao pradozinho, / Ao riozinho, / Ao jardimzinho, / Não póde ser.

Um louvorzinho / Ao donozinho / Do livrozinho, / Não vou tecer; / Da lisonjinha, / Sua almazinha, / Vaidosazinha, / Não póde ser.

Á damazinha, / Ao janotinha, / Satyrazinha / Vai offender; / E as costazinhas / Expostazinhas / Ás coçazinhas, / Não póde ser.

Á Patriazinha, / Desditozinha, / Lamuriazinha, / Fará correr / Nas facezinhas, / Portugueszinhas, / Lagrimazinhas; / Não póde ser.

Vontadezinha / Tem, firmezinha, / A lyrazinha / D’obedecer; / Mas … tristezinha! / E’ pobrezinha… / Pacienciazinha… / Não póde ser. [*]

Portozinho

14-10-1852

Fausztinozinho Xavierzinho de Novaezinhos

[*] Conservei a ortografia da primeira edição do poema publicada em O BARDO, do qual deixo a imagem em fac-simile.

Camilo Castelo-Branco, amigo próximo de Faustino Xavier de Novaes,  com quem colaborou n’O BARDO, recorda no Cancioneiro Alegre aspectos dessa amizade e remata a evocação com o seguinte: Pouco depois morreu intelectualmente. Sem frenesis nem grandes paroxismos da robusta razão que vasquejava, passou a um sereno e risonho idiotismo. Depois acabaram de o enterrar as mãos piedosas do conde de S. Mamede, e fez-se um grande silêncio sobre o nada deste meu honrado e desditoso amigo.

Ao poeta voltarei. Por agora apenas a noticia bibliográfica do que referi.

Noticia Bibliográfica:

O BARDO JORNAL DE POESIAS INEDITAS foi publicado em 2 partes.  Possui a 1ª Parte 24 números e a 2ªParte 12 números, tendo cada número 16 páginas. Os primeiros 12 números da 1ªParte foram objecto de 2ªedição em 1857. Teófilo Braga, na introdução à  reedição das Poesias de Soares de Passos refere circunstanciadamente as vicissitudes desta publicação. A ela me referirei em detalhe se a curiosidade dos leitores o justificar.

Artigo ALBUNS do Dicionário do Romantismo Literário Português publicado pela Caminho em 1997 e com coordenação de Helena Carvalhão Buescu. Remeto para a nota anterior a correcção à bibliografia contida neste artigo, no que à edição de O BARDO respeita.

João Penha – Por Montes e Vales (Rachel, pag.23-29), 1899

Citações de Camilo Castelo-Branco:

Frase de abertura de um Folhetim publicado no jornal Aurora do Lima em 30 de Setembro de 1856 com o pseudónimo de João Junior. O texto foi recolhido por Julio Dias da Costa no Vol. II dos Dispersos de Camilo (Crónicas) e identificada a atribuição de autoria pelo compilador. A edição foi da Imprensa da Universidade de Coimbra em 1925.

Noticia de Faustino Xavier de Novaes na pag.227 do 2º Volume da 2ª edição de Cancioneiro Alegre publicada e 1887, a qual inclui o opúsculo Os Críticos do Cancioneiro.

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