Satisfazendo simultaneamente o meu gosto pela poesia antiga e a curiosidade sobre o que não sei que existe, mergulho algumas vezes na produção poética da segunda metade de setecentos.
Vasto universo de banalidades poéticas, como qualquer outra época, uma vez por outra surge um poema ignorado que pela originalidade na abordagem do tema, desenvoltura do ritmo, ou especial cuidado no tratamento da ideia, apetece resgatar do pó dos arquivos.
É agora a vez de um poema do brasileiro Americo Elysio (José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838)), A Criação da Mulher. Nele o poeta desenvolve o deambular solitário do primeiro Homem, e o seu desnorte nesta solidão. O deus pagão, Jove, dando conta de quanto este infeliz não desfrutava das belezas do mundo natural, vagueando, sem encontrar contentamento, convocou os outros deuses. Para resolver o problema decidiram criar a mulher dotada das belezas de Vénus. E ei-la que desce à Terra.
Ao vê-la o homem / Pasma, estremece! / Quer abraçá-la, / Corre, enlanguece!
“Quem és? és Deusa? / (O homem lhe grita) / Ah! se pudesses /Trazer-me dita!”
Ela responde: / “Sou tua esposa; / Deixa a tristeza, / Ama-me, e goza.”
Saboreai agora o poema:
A CREACÃ0 DA MULHER
Já tinha o Mundo
Jove formado,
E rei de tudo
O Homem criado.
Mas solitário
Este se achava:
Brusca tristeza
O dominava.
Com mão profusa
A natureza
Em vão mostrava
Tanta beleza!
Cantavam aves,
Bulia o vento:
Tudo infundia
Contentamento.
Florido o vale
Reverdecia:
De aromas mil
O ar se enchia.
Manhã serena
Leda brilhava:
Manto de estrelas
A noite ornava.
E todavia,
Qual duro tronco,
O Homem jazia
Sisudo e bronco.
Covas escuras,
Mata enredada,
Nelas fazia
Sua morada.
No solio eterno
Jove sentado,
Então aos Deuses
Fala pousado:
“Mortal soberbo
Com o entendimento
Sondar pretende
Mistérios cento:
“Só, pensativo
Se desalenta;
Do mundo inteiro
Nada o contenta.
“Eu distraí-lo
Quero piedoso;
Beba sua alma
Nectar gostoso.”
Forma então Jove
Nova creatura;
De Venus bela
Fiel pintura.
Esbelto talhe,
Meneo brando,
Mil amorinhos
Vão rebanhando!
De oiro madeixas,
Ao vento soltas,
Ameigam feras,
Que andam revoltas.
Os Cupidinhos
Dos verdes olhos
Duros despedem
Setas a molhos.
Covas da face
Branca e rosada,
Vós sois das Graças
Gentil morada!
Vozes suaves,
Que as almas prendem ,
De fio em fio
Dos beiços pendem.
Ah! são seus beiços
Fontes de vida!
Em neve pura
Romã partida!
As alvas tetas
De marfim puro
Ah! são mais rijas
Que cristal duro!
Carne mimosa
Que a vista enleva,
Onde o desejo
Em vão se ceva!
Ao vê-la o homem
Pasma, estremece!
Quer abraçá-la,
Corre, enlanguece!
“Quem és? és Deusa?
(O homem lhe grita)
Ah! se pudesses
Trazer-me dita!”
Ela responde:
“Sou tua esposa;
Deixa a tristeza,
Ama-me, e goza.”
No contexto da produção poética da época, o poema traz algumas novidades que o tornam notável: a forma adoptada é a da redondilha menor, cultivada na idade média, fugindo assim ao cânone formal defendido pelas várias academias da época do autor; o assunto, por um lado vestindo ainda uma capa da mitologia, remete para o imaginário cristão e a criação de Adão e Eva no paraíso terreal; por outro, dá conta de uma leitura da natureza como valor em si, e não como cenário de amores, apanágio da poesia da época; finalmente, ao fechar, entrega a iniciativa amorosa à mulher, despido qualquer pudor, no que será o seu mais surpreendente e original conteúdo:
“Sou tua esposa; / Deixa a tristeza, / Ama-me, e goza.”
Todos estes aspectos fazem do poema um ponto charneira entre a poesia neo-clássica praticada na segunda metade de setecentos e a poesia romântica que o século XIX traria.
Não é aqui o lugar para desenvolver a argumentação em volta do tema. Ficam os tópicos de leitura que, espero, ajudem a destacar o relevo deste Creacão da Mulher.
Usando a forma padronizada do soneto, o poema que segue conta-nos de uma Narcina refrescando-se na fonte.
Partindo do vocabulário comum à época (o desejo espicaçado referido como setas de Cupido envenenadas: Com ponteagudas setas que ela hervara**, /Bando de Cupidinhos revoava.), seguimos o olhar do poeta à medida que percorre o corpo da mulher. Aí o poema ganha arrojo ao dizer-nos como ela, deixando ver o peito e a coxa, abrasa o poeta ao levantar o vestido, sem que, no entanto, à vista deixe o sexo, o que o poeta lamenta:
Parte da linda coixa, regaçado, /O cândido vestido descobria; / Mas o templo de amor ficou cerrado:
SONETO
Eu vi Narcina um dia que folgava
Na fresca borda de uma fonte clara:
Os peitos, em que Amor brinca e se ampara,
Com aljofaradas* gotas borrifava.
O colo de alabastro nu mostrava
A meu desejo ardente a incauta avara.
Com ponteagudas setas que ela hervara**,
Bando de Cupidinhos revoava.
Parte da linda coixa, regaçado,
O cândido vestido descobria;
Mas o templo de amor ficou cerrado.
Assim eu vi Narcina.—Outra não cria
O poder da Natura, já cansado;
E se a pode fazer, que a faça um dia.
*Aljofar — pérola menos graúda; gotas de água aperoladas.
Aljofarar — ornar de aljofar.
** Hervar — untar com sumos de ervas venenosas.
(Dic. Morais ed 1813)
Com uma invulgar palpitação erótica é a Ode que segue, publicada pelo autor em 1825 e que o editor póstumo em 1861 entendeu suprimir.
Nela, As nítidas maminhas vacilantes / Da sobre-humana Eulina, / Se com férvidas mãos ousado toco, / Ah! que me imprimem súbito / Eléctrico tremor, que o corpo inteiro / Em convulsões me abala!
A Ode vai por aí fora dando conta da perturbação física do homem ao contacto do corpo da mulher, e, depois de um primeiro êxtase, Morro de todo, amada! / Fraqueja o corpo, balbucia a fala! / Deleites mil me acabam!, volta o entusiasmo, e aí o temos voraz outra vez:
Mas ah! que impulso novo, ó minha Eulina! / Resistir-lhe não posso….
terminando com o … morramos, que nesta poesia não é mais que o clímax do êxtase sexual simultâneo:
Deixa com beijos abrasar teu peito: / Une-te a mim…. morramos.
Este final remete-me a memória para uma Ode ao orgasmo simultâneo de José Anastácio da Cunha (1744-1787) que há anos transcrevi no blog.
Foram, um e outro, notáveis homens de ciência, e, talvez por isso, espíritos mais desempoeirados, deram mostra de uma ousada explicitação poética dos prazeres do corpo.
ODE
As nítidas maminhas vacilantes
Da sobre-humana Eulina,
Se com férvidas mãos ousado toco,
Ah! que me imprimem súbito
Eléctrico tremor, que o corpo inteiro
Em convulsões me abala!
[O sangue*] ferve: em catadupas cai-me…;
Brotam-me lume as faces…
Raios vibram os olhos inquietos
Os ouvidos me zunem!
Fugir me quer o coração do peito…
Morro de todo, amada!
Fraqueja o corpo, balbucia a fala!
Deleites mil me acabam!
Mas ah! que impulso novo, ó minha Eulina!
Resistir-lhe não posso…
Deixa com beijos abrasar teu peito:
Une-te a mim… morramos.
* Falta a palavra na edição. [O sangue] é suposição minha (C.M.L.).
Nos poemas transcritos modernizei ligeiramente a ortografia e a pontuação para facilitar a leitura aos menos familiarizados com esta poesia antiga.
Noticia bibliográfica
Poesias Soltas de Americo Elysio (José Bonifácio de Andrade e Silva (1763-1838), Bordeos,1825.
Também existe edição póstuma de 1861 com o título Poesias de Americo Elysio, edição no Rio de Janeiro.