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Sinto as cócegas do génio e deixo-me ir à mercê da inspiração impetuosa. Isto escrevia Camilo nos idos de 1856.
Hoje, sinto as cócegas e recomendo-me a fuga pois o perigo avizinha-se…
A um amigo que a espaços estacionava no Telhal, quando regressava, perguntava-lhe:
– Então estás melhor?
– Sabes pá, às vezes a vida falha por milímetros!
E tentando evitar a falha, uma vez que passadas estão as festas, voltemos ao trabalho sério, que os leitores aguardam.
O compromisso comigo era manter o blog ao longo de 2010. Cumprido o ciclo muito ficou por escrever. A existência de leitores para além de qualquer expectativa, e o encorajamento de um amigo em especial, leva-me a continuar, abrindo novo ciclo.
Como no ano passado, em prelúdio tivemos Pessoa. Para reinicio de conversa, os tempos estão de feição para a chegada dos satíricos, ausentes por opção ao longo de 2010.
Abro por isso, com o que poderia considerar o Facebook do século XIX, O Álbum.
O Álbum, livro branco com presença registada em Portugal ao longo dos tempos, ainda na minha juventude revestia a forma de Livro de Autógrafos onde amigos registavam testemunhos de apreço ao seu possuidor. Hoje, o mural do Facebook desempenha cabalmente a função, adaptando um hábito ancestral às modas que nos regem.
Na sociedade burguesa do século XIX os álbuns constituiram objectos de socialização. Depositados sobre uma mesa, na sala ou em divisão íntima do seu possuidor, ou ainda enviados a casa de alguém para aí inscrever o seu testemunho (por exemplo, como refere João Penha com enorme discrição, diga-se, o sucedido a João de Deus a propósito do álbum que a amada lhe enviou para aí inscrever uma poesia), foram o pretexto para uma notável sátira de Faustino Xavier de Novaes (1820 – 1869) N’um albunzinho, muito pequenino, d’um meu amiguinho muito baixinho. publicado no nº11 da 1ªParte de O BARDO em tipo pequeno, como convinha.
Arquivos de sensaborias, a maior parte das vezes , eram, como refere Duarte Sá Júnior em 1868:
… / Um terrível tormento. / ,
e acrescenta:
Há sobretudo três casos / Que podem acontecer, / Em que é muito de temer / Que os poetas fiquem rasos.
Primeiro – se é pertencente / O livro a moça solteira; / Falar d’amor é asneira. / Ou ao menos imprudente.
Falar-lhe na madrugada, / Ou na campina, ou no prado, / É motivar-lhe um enfado, / Por se ver ela olvidada.
Segundo – se é d’uma feia, / Ainda há mais que reflectir: / Ou escrever e mentir, / Ou tão mal que ela o não leia.
Mas o caso mais profundo / É n’um Álbum de casada, / Que já está iniciada / Nos mistérios d’este mundo.
Porque dizer-lhe que é bela, / E que se lhe está rendido, / Pode ofender o marido, / Se não a ofender a ela.
Dos álbuns renego bem; / São cousas que não se entendem!… / N’eles louvores ofendem, / E a falta d’eles também.
Percorrendo a bibliografia poética publicada ao longo da segunda metade do século XIX, são a cada passo os poemas intitulados – N’um Álbum. E é esta a sua origem. Embora tenham tido destinatário conhecido, nem sempre as recolhas identificaram a quem foram dirigidos.
Salpicados que estamos com a erudição possível a um leigo, eis o poema prometido:
N’um albunzinho, muito pequenino, d’um meu amiguinho muito baixinho.
N’este albumzinho, / Pequerruchinho, / Um vatezinho / Que ha-de escrever? / Uns versozinhos, / Mui sentidinhos? / Uns amorzinhos? / Não póde ser.
Um cantozinho, / Mimosozinho, / Ao liriozinho, / Não dá prazer; / Ao pradozinho, / Ao riozinho, / Ao jardimzinho, / Não póde ser.
Um louvorzinho / Ao donozinho / Do livrozinho, / Não vou tecer; / Da lisonjinha, / Sua almazinha, / Vaidosazinha, / Não póde ser.
Á damazinha, / Ao janotinha, / Satyrazinha / Vai offender; / E as costazinhas / Expostazinhas / Ás coçazinhas, / Não póde ser.
Á Patriazinha, / Desditozinha, / Lamuriazinha, / Fará correr / Nas facezinhas, / Portugueszinhas, / Lagrimazinhas; / Não póde ser.
Vontadezinha / Tem, firmezinha, / A lyrazinha / D’obedecer; / Mas … tristezinha! / E’ pobrezinha… / Pacienciazinha… / Não póde ser. [*]
Portozinho
14-10-1852
Fausztinozinho Xavierzinho de Novaezinhos
[*] Conservei a ortografia da primeira edição do poema publicada em O BARDO, do qual deixo a imagem em fac-simile.
Camilo Castelo-Branco, amigo próximo de Faustino Xavier de Novaes, com quem colaborou n’O BARDO, recorda no Cancioneiro Alegre aspectos dessa amizade e remata a evocação com o seguinte: Pouco depois morreu intelectualmente. Sem frenesis nem grandes paroxismos da robusta razão que vasquejava, passou a um sereno e risonho idiotismo. Depois acabaram de o enterrar as mãos piedosas do conde de S. Mamede, e fez-se um grande silêncio sobre o nada deste meu honrado e desditoso amigo.
Ao poeta voltarei. Por agora apenas a noticia bibliográfica do que referi.
Noticia Bibliográfica:
O BARDO JORNAL DE POESIAS INEDITAS foi publicado em 2 partes. Possui a 1ª Parte 24 números e a 2ªParte 12 números, tendo cada número 16 páginas. Os primeiros 12 números da 1ªParte foram objecto de 2ªedição em 1857. Teófilo Braga, na introdução à reedição das Poesias de Soares de Passos refere circunstanciadamente as vicissitudes desta publicação. A ela me referirei em detalhe se a curiosidade dos leitores o justificar.
Artigo ALBUNS do Dicionário do Romantismo Literário Português publicado pela Caminho em 1997 e com coordenação de Helena Carvalhão Buescu. Remeto para a nota anterior a correcção à bibliografia contida neste artigo, no que à edição de O BARDO respeita.
João Penha – Por Montes e Vales (Rachel, pag.23-29), 1899
Citações de Camilo Castelo-Branco:
Frase de abertura de um Folhetim publicado no jornal Aurora do Lima em 30 de Setembro de 1856 com o pseudónimo de João Junior. O texto foi recolhido por Julio Dias da Costa no Vol. II dos Dispersos de Camilo (Crónicas) e identificada a atribuição de autoria pelo compilador. A edição foi da Imprensa da Universidade de Coimbra em 1925.
Noticia de Faustino Xavier de Novaes na pag.227 do 2º Volume da 2ª edição de Cancioneiro Alegre publicada e 1887, a qual inclui o opúsculo Os Críticos do Cancioneiro.