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Em viagem, um qualquer volume da obra de Camilo em papel bíblia é companhia preciosa.
No pouco peso de um livro temos mil páginas do melhor de Portugal. Saboreamos a língua, contactamos os costumes, encontramos conhecidos e contrastamos o nosso apego à imobilidade com a visão do mundo que passa.
Desta feita carreguei-me com os volumes X e XI. Poupo a descrição do conteúdo dos volumes e salto para o que aqui me traz, o Cancioneiro Alegre, irrepetível colecção de poesias entre o despautério e a mais cintilante graça.
Nesta quadra de fartas comesainas, quando o prazer da mesa encontra as tradições pantagruélicas, um poema na tradição herói-cómica e de especial assunto, incluido no Cancioneirio e atribuido a um Anónimo, deu-me a medida da continuidade que nos garante o lugar no mundo.
Longe que estou dos instrumentos do saber, não consegui averiguar se, tal como suspeito, o poema é da autoria do próprio Camilo.
Compõe-se o poema de quinze décimas distribuídas por três partes. Tem uma introdução em quatro sextilhas e termina de novo numa sextilha. A extensão do poema, UM JANTAR DE BARÕES, levou-me numa primeira fase, e para evitar indigestão, a pensar ater-me apenas à sua transcrição parcial. À medida que avançava na transcrição, pareceu-me inaceitável qualquer corte, tal a preciosa concatenação de episódios de que o poema dá conta.
Após uma invocação às musas pedindo inspiração para tão árduo cometimento: Musa da sopa e do cozido, inspira-me! /… / Transforma o estro meu em lombo assado; / Da minha inspiração faz um pudim., na primeira parte do poema temos a descrição do Barão: D’Alcatruzes é chamado, / Porque, sendo ainda moço, / Muitos baldes d’água fresca / Dizem que tirou dum poço. E mais adiante: É barão; não vale a pena / Discutir-lhe os nobres feitos; / É barão dos Alcatruzes, / Já tem pagos os direitos.
A segunda parte apresenta-nos os comensais em acto após anunciar o banquete: Da terrina a caudal sopa / Em silêncio é devorada. / Só então fingiram d’homens, / Porque não disseram nada. / Mas venceu a natureza!, e é ouvi-los pela voz do poeta.
Chega a terceira parte, e com ela o pós-pasto, com brindes e discursos como o inenarrável chorrilho saido da boca do barão de Pimpinelas, e onde o barão literato faz o pleno do despautério com “Repercutem, simbolizam / Acrimónias insolúveis, / Nos acrósticos volúveis / D’epopeias que eternizam / …” e por aí fora. Refere-nos o poeta como Sucedeu o grito ao pasmo! / Nunca se viu coisa assim!.
O epílogo relata de forma sucinta o rescaldo de tão lauto festim: E a pândega findou. Mas alta noite, / Disseram-nos fiéis informações / Que grande movimento houve de tripas,…
Para além do retrato da boçalidade dos convivas, titulares de nobreza paga a contado, para quem a ignorância da língua é um estatuto, e que Camilo amplamente fustigou nos seus romances, temos no poema vasta matéria de sátira social para comportamentos bem perto de nós.
Para garantir que as continuidades existem, mesmo sem barões dos Alcatruzes ou Asnos de Puxar Nora, refiro o que já aboquei neste remanso de férias.
Longe do cosmopolitismo culinário da capital e ainda que a televisão tente fazer alguma mossa na tradição, já apareceu na mesa, e destaco: cordeiro de leite vindo expressamente de Trás-os-Montes (só não sei se deixou alguma pastora chorosa) assado com castanhas, de lamber beiços e dedos (pois segurar os ossos é de lei). Houve também cataplana de mariscos, de comer até rebentar, feijoada de lingueirão a pedir para não ficar na panela, uns cascabulhos (ostras) abertas ao calor e camarão da costa. O peixe para grelhar faltou pois o mar não tem estado de feição, mas prometem-me para amanhã caldeirada de eirozes.
Dos mimos não sei se fale. Broas de cobiçada receita que leva três dias a cozinhar, e os fritos! filhós com mel: de flor, simples, e dobradas; empanadilhas com recheio de batata doce e amendoa; fatias douradas (rabanadas), sonhos de desfazer na boca, bolinhóis tenros como manteiga. Já agora conto dos doces, bolos sobretudo, e de amendoa evidentemente (a torta, o morgado, o toucinho do céu, os engana-visitas, os olhos de sogra, etc) mas também o folhado de Tavira, o pastel de Londres e o casado, para matar saudades. E isto para não falar do aportuguesado bolo inglês, perdição de quem está à mesa.
Páro aqui. Chamam-me para umas ameijoas à Bulhão Pato e por isso vos deixo com UM JANTAR DE BARÕES.
Bom ano 2011
UM JANTAR DE BARÕES
Invocação
Musa da sopa e do cozido, inspira-me!
Pândega musa, que sorris ao vate
Em molho de açafrão, e de tomate,
Um cego adorador… achaste em mim:
Transforma o estro meu em lombo assado;
Da minha inspiração faz um pudim.
Tu, filha dos barões, musa do unto,
Nasceste na cozinha entre caçoilas;
Saudaram-te no berço alhos, cebolas,
Do cominho tiveste uma ovação;
Depois, trajando galas de toucinho,
Eu vi-te nas bochechas de um barão.
Namorado de ti, fiz-te meiguices
Por detraz de um peru, e tu de lá
Sorriste-me através da nédia pá
De vitela gentil, rica de arroz!
Ai! era!… e nem eu sei se foi mais linda
Aquela gorda pata… que te pôs!
Tu fizeste de mim um novo Cláudio,
Inspiraste-me a fé num rodovalho.
Traguei indigestões, arrotos d’alho,
Bernardas na barriga suportei.
Tomei chá de macela… e, em prémio disto,
O teu auxilio, ó musa, não terei?!
I
Dentro e fora iluminado
O palácio dum barão,
Fulgurante representa
Um enorme lampião.
Jorram límpidas vidraças
Sobre as populosas praças
Ondas trémulas de luzes.
Vai lá dentro grande gozo,
Nesse alcáçar radioso
Do barão dos Alcatruzes.
D’Alcatruzes é chamado,
Porque, sendo ainda moço,
Muitos baldes d’água fresca
Dizem que tirou dum poço.
Nenhum outro mais destreza
Revelou na árdua empresa
De puxar acima um balde.
Um que seja tão robusto
Há-de vir mui tarde e a custo
Do concelho de Ramalde.
É barão; não vale a pena
Discutir-lhe os nobres feitos;
É barão dos Alcatruzes,
Já tem pagos os direitos.
Inda é mais; pois, além disto,
É comendador de Cristo
Com bastante indiscrição.
Mal diria Cristo, outrora,
Que seria posto agora
No peito dum vendilhão!
E mais ele, que os tocava
Com terrivel azorrague!
Mas os Judas vendem Cristo,
Ponto é haver quem pague.
E o barão dos Alcatruzes
Neste século das luzes
Também fez de fariseu.
E, também, se necessário,
Representa de Calvário
Onde a cruz se suspendeu.
II
Num salão vasto, opulento
Um banquete se vai dar;
Nos cristais reflecte o ouro
A fulgir, a cintilar.
Os rubis e a cor da opala
Transfiguram esta sala
Em olímpicas mansões.
Mas a alma cai por terra
Quando vê que ali se encerra
Dúzia e meis de barões.
Da terrina a caudal sopa
Em silêncio é devorada.
Só então fingiram d’homens,
Porque não disseram nada.
Mas venceu a natureza!
Um barão por sobre a mesa
Estendendo o prato diz:
“Ó compadre!isto é qu’ébô!
Venha sopa, e acabô!
Cá de mim torno à matriz!”
O barão de Cogumelos,
Junto estando à baronesa
Que se diz dos Sacatrapos,
Quis fazer-lhe uma fineza.
Arrastou pra junto dela
Um peru, e a cabidela
No prato lhe despejou.
E lhe diz: “Cá isto é nosso;
Coisa que não tenha osso
É pró estâmago, e arrimou!”
Outro diz à gorda esposa
Que bem perto de si tem:
“Bai-le bobendo po’riba,
Ó mulher, come-le bem!”
Este pede ao seu vizinho
“Que lh’atice bem no binho
Qu’é da bela Companhia.”
Diz aquele ao seu fronteiro
“Que lhe chegue um frango inteiro,
E biba a santa alegria!”
III
As saúdes já começam;
É um gosto agora vê-los:
Estas caras representam
Tomates de cotovelos
E, através do escarlate
Do legítimo tomate,
Transuda um óleo que brilha.
Cada qual tem as orelhas
Encarniçadas vermelhas
Como as asas de uma bilha.
Pega no copo e exclama
O barão de Pimpinelas:
“Vito sério! um home fala
Sem preâmbulos nem aquelas!
À saúde e alegria
Desta bela companhia
E com toda a estifação!
Pra que todos cá binhamos
Estifeitos como bamos
De casa do sor barão!”
E os hurras retumbaram
Pela sala do festim!
Baltasar nos seus banquetes
Nunca ouviu gritar assim!
Sobre a mesa deram murros,
Saudaram com grandes urros
O barão dos Alcatruzes;
Mas alguns com mágua sua,
Já cuidavam ver a Lua,
Não podendo ver as luzes.
Mas, entre eles, um existe,
Literato em seu conceito,
A palavra pede, e reina
Um silêncio de respeito.
Ele diz: “Risonhas galas
Que refrangem nestas salas
Repercutem, simbolizam
Acrimónias insolúveis,
Nos acrósticos volúveis
D’epopeias que eternizam.
Pandemónios exauríveis
De indeléveis congruências,
Requintados se escurecem
Nos empórios das ciências
E libérrimos se escudam
Nas facanhas que transsudam
Em fantasiosas luzes.
E, portanto, a mais aludo,
Quando, férvido, saúdo
O barão dos Alcatruzes!”
Sucedeu o grito ao pasmo!
Nunca se viu coisa assim!
O orador foi abraçado
Com furor, com frenesim!
“Isto é qu’é!” dizia um,
Convertido em rubro atum,
Beterraba até não mais.
“Viva Cic’ro!” outro dizia,
Despejando a malvazia
Com grasnidos infernais.
IV
E a pândega findou. Mas alta noite,
Disseram-nos fiéis informações
Que grande movimento houve de tripas,
E grande salto deram as torneiras
Das pipas convertidas em barões
Ou, antes, dos barões tornados pipas.
Aditamento
Pouco depois de ter escrito este artigo, constatei que o poema Um Jantar de Barões era efectivamente de Camilo Castelo Branco como no corpo do texto suspeitei, e foi previamente publicado em FOLHAS CAÍDAS APANHADAS NA LAMA.
Entretanto, o tempo passou e não mais recordei actualizar a informação no post, o que agora faço.
Este FOLHAS CAÍDAS APANHADAS NA LAMA foi por sua vez referido no blog a propósito do folheto A Vespa do Parnaso, num artigo/paródia a pretexto da Nova poesia Portuguesa em … 1854.