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Hesíodo e outros esclarecem-nos sobre as musas

16 Segunda-feira Nov 2020

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Andrea Mantegna, Filinto Elysio

…[As musas foram criadas] 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.                     55

Durante nove noites, então, a possuiu [Mnemósine] o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto  60

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

…

in Hesíodo, Teogonia (55-61)

 

 

Desaparecidos os estudos sobre a cultura greco-latina dos cursos generalistas do ensino, hoje apenas estudiosos da especialidade a dominam. No entanto, para o individuo medianamente culto, esta ausência surge como uma falha, ficando tantas vezes leituras, obras plásticas, e visitas a lugares históricos, incompletamente apreendidas no seu significado intrínseco, e como nos podem aproveitar enquanto legado de uma vivência que está na raiz do nosso mundo ocidental. Hoje trago tão só uma pequena elucidação, talvez útil, para o leitor de poesia antiga. Nesta, é recorrente o termo musa ou musas como invocatória, ou fonte de uma qualquer inspiração adicional. E é exactamente à descodificação de quem são esses seres que convido o leitor. 

 

Filhas de Zeus e Mnemósine nascidas de nove noites de amor, no seu precioso Dicionário da Mitologia Grega e Romana, Pierre Grimal dá-nos um esclarecimento sucinto do que representam as Musas:

“Musas: Existindo diversos mitos sobre as musas e sua origem, na época clássica grega impuseram-se as Musas de Helicon, na dependência de Apolo que as dirige. São geralmente nove e com o tempo receberam uma função específica:

Clio a história

Melpómene a tragédia

Talia a comédia

Euterpe a flauta

Terpsicore a poesia ligeira e a dança

Erato a lírica coral

Calíope a poesia épica

Urânia a astronomia

Polímnia a pantomina.”

 

 

Caminhemos para trás, até ao séc. IV, e encontramos em Ausónio (310-395), poeta romano, no seu Idílio XX, a versão poetisada desta descrição de Pierre Grimal:

 

Ausónio — Idilio XX

Clio canta os feitos e dá vida ao passado.

Melpómene expande sua dor em clamor de tragédia.

A cómica Talia rejubila com a linguagem lasciva.

Euterpe com seu sopro, faz ressoar a flauta com doces acordes.

Terpsicore, com a cítara, suscita, ordena, aumenta as paixões.

Erato, segurando a lira, dança com o pé, o canto, o rosto.

Calíope confia aos livros cantos heróicos.

Urânia perscruta os movimentos do céu e os astros.

Polímnia tudo aponta com a mão, e seu gesto é uma linguagem.

A força da mente apolínea inspira todas essas musas:

sentado no meio delas, Febo abarca todas essas funções.

Tradução de João Pedro Mendes

in Construção e Arte das Bucólicas de Virgilio, Livraria Almedina, Coimbra, 1996.

 

 

Mas o leitor curioso que chegou até aqui, talvez ache interessante saber a origem remota da lenda sobre estes seres e suas atribuições. Hesiodo, o poeta grego que viveu entre os séc. VIII e VII a. C, em Teogonia conta-a assim:

 

Teogonia, Versos 36-87 e 96-103

…

Vá lá. então, comecemos pelas Musas, aquelas que a Zeus, seu pai, 

entoam hinos, alegrando-lhe o espírito imenso, na mansão do Olimpo, 

contando-lhe o presente, o futuro e o passado, 

em uníssono. Um canto inesgotável escorre-lhes

dos lábios, delicioso. E ilumina-se com um sorriso a morada do pai, 

Zeus, senhor do trovão, enquanto a voz cândida das deusas 

se eleva, fazendo vibrar o cimo do Olimpo coberto de neve 

e as moradas dos Imortais. Elas cantam com uma voz celestial, 

e, em primeiro lugar, glorificam com o seu canto a raça venerável dos deuses, 

desde as origens: aqueles a quem a Terra e o vasto Céu geraram, 

e os que deles nasceram, os deuses que concedem todas as dádivas; 

e depois, também, Zeus, pai dos deuses e dos homens, 

[a quem as deusas entoam hinos no início ^e no fim do seu canto^]

ele que entre os deuses detém o primeiro e maior poder; 

finalmente, é à raça dos homens e dos Gigantes poderosos 

que entoam hinos, alegrando o espírito de Zeus na mansão do Olimpo, 

as Musas Olímpicas, filhas de Zeus detentor da égide. 

Na Piéria, gerou-as, unida ao pai Crónida, 

Mnemósine, que reina nas colinas de Eleutéria, 

para que fossem esquecimento de males e alívio de aflições.

Durante nove noites, então, a possuiu o prudente Zeus, 

tomando lugar no seu leito sagrado, longe dos Imortais. 

E quando, depois, passou o tempo devido e, com o volver das estações, 

se completaram os meses e muitos dias chegaram ao seu termo, 

ela deu à luz nove filhas de sensibilidade igual, às quais apenas o canto 

preocupava, nos peitos, o coração isento de cuidados, 

junto ao mais alto dos picos do Olimpo coberto de neve. 

É lá que fazem luzir os seus coros e têm as suas belas moradas 

e junto delas habitam também as Graças e o Desejo, 

em ambiente de festa. Da sua boca se eleva uma voz melodiosa 

e cantam, glorificando as leis e sábios preceitos 

de todos os Imortais, fazendo ouvir sua encantadora voz.

Então, enquanto se dirigiam ao Olimpo, entoavam com bela voz 

um canto divino; e a terra negra ressoava ao som dos 

seus hinos e sob os seus pés ecoava um ritmo encantador,

quando se dirigiam para junto daquele que é seu pai; ele que reina no céu, 

senhor do trovão e do raio incandescente,

depois de, pela força, ter vencido o pai, Cronos, e de, bem, a cada 

um dos Imortais ter disposto as suas leis e fixado as competências. 

É este o canto das Musas, que têm no Olimpo sua morada 

as nove filhas nascidas do grande Zeus:

Clio e Euterpe, Talia e Melpómene,

Terpsícore e Erato,  Polímnia e Urânia, 

e Calíope, aquela que, entre todas, desempenha o mais importante papel.

É ela a que acompanha os reis veneráveis.

Aquele a quem as filhas do grande Zeus honraram, 

e a quem, de entre os reis de linhagem divina,  distinguiram à nascença,

a esse derramaram-lhe sobre a língua um doce orvalho

e dos seus lábios escorrem palavras doces como o mel; o povo todo 

fixa, então, nele os olhos quando traduz a lei divina 

em sentenças rectas. E ele, discursando, sem falhas, 

prontamente é capaz de apaziguar uma grande querela.

…

… Feliz, então, aquele a quem as Musas 

prezam; a esse corre-lhes dos lábios uma voz doce. 

Quando a alguém o luto recente ensombra o coração 

e o desgosto aflige o íntimo, então um aedo, 

sacerdote das Musas, glorifica com hinos os heróis de outrora 

e os deuses bem-aventurados, que são senhores do Olimpo, 

e, logo, ele esquece o sofrimento e de nenhum cuidado 

se lembra. Bem depressa a dádiva destas deusas o compensa.

…

 

O fragmento transcrito do poema Teogonia, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias, de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia, e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.

 

 

Termino este périplo com a poesia portuguesa. E é sem surpresa que na obra de Filinto Elísio (1734-1819), amante como foi da cultura clássica, vamos encontrar a glosa a este assunto das musas no poema Emprego das Nove Musas que a seguir transcrevo em ortografia modernizada:

 

 

Emprego das Nove Musas

1

Com opa e manto azul, de áureas estrelas

Recamado, passeia majestosa,

C’um compasso na mão a Musa Urânia

Dos Céus medindo a vasta redondeza.

2

Emboca a tuba argêntea a augusta Clio

E faz soar num Pólo e noutro a Fama

Dos Reis e dos Heróis, que sobre-humanas

Obras, em bem dos Povos empreenderam.

3

Calíope, na Liia, em sons medidos

Conta as mesmas acçōes que Clio escreve;

E os Deuses, para ouvi-la, se debruçam

Do Olimpo, no seu Cântico enlevados.

4

Melpómene, a purpúrea, roçagante

Roupa arrastrando, c’o coturno piza

Ceptros, coroas, pelo chão caídas

Das mãos dos crus, dos pálidos Tiranos.

5

E Tália que ri, que sempre mofa,

Com mão maligna, e folgazã lhe rasga

Ao Vício a máscara; e subtis verdades

Com risonho primor enfeita airosa.

6

De murta se engrinalda a branda Erato,

Emprega as mãos em coroar amantes

Co’as rosas de Cítera, e guia as penas

De Horácio, Anacreonte, e de Petrarca.

7

Sobre alcatifas de viçosa relva

Sentada Euterpe, adoça o canto à flauta,

Nas lições dela atentos os Pastores,

A conquistar as Dríadas aprendem.

8

Nova fala mais viva que as palavras

Com que a alma exprima a força dos afectos

Nos gestos dá Polimnia; as mãos, o rosto

Dão mais que vozes, dão as cores da alma.

9

Com destras plantas, levemente airosas,

Terpsicore mil símbolos descreve,

Dá vida, alenta os ânimos que jazem,

C’o inerte peso do Ócio, quebrantados.

in Filinto Elysio, Obras Completas, tomo 1.º, Paris, Na oficina de A. Bobée, 1817.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Andrea Mantegna (1431-1506), Parnasus (1497), da colecção do Museu do Louvre.



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Bolas de sabão — Rememoração com a pintura de Manet e o poema de Afonso Lopes Vieira em fundo

18 Domingo Out 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Afonso Lopes Vieira

Durante alguns anos o museu Gulbenkian em Lisboa foi-me um lugar tranquilo de convívio com a arte. Acontecia ir estudar para o jardim da fundação, ou para o bar do seu museu, aí almoçar, e algumas tardes deambular no silêncio das salas sem gente, seguido apenas pelo olhar dos vigilantes. Olhava aqui, parava ali, e nas primeiras visitas era poderosamente atraído pela pintura de um velho pintado por Rembrandt (1606-1669). Na gigantesca mancha escura das suas vestes sobressaía uma cabeça pequena que olhava com uma tristeza infinita. E eu, sentado no banco frente à pintura ali ficava longos minutos fascinado, não sei se pela perplexidade de como se consegue pintar a tristeza com tamanha emoção, ou pela interrogação de como a vida consegue trazer tamanha tristeza ao olhar. Será que hoje tenho algumas respostas?

Havia outras pinturas e objectos que me atraiam e atraem a cada nova visita. Os vidros pintados e as cerâmicas do médio oriente, os marfins medievais, ou os livros de horas, são parte de um mundo de fascínio que na demora das visitas me abraçava.

Nos primeiros anos de abertura do museu mostravam-se algumas gravuras japonesas, que pela sua fragilidade, suponho, foram mais tarde retiradas de exposição. Revelação de um género na elegância e sofisticação do seu grafismo, tornou-se uma paixão que me conduziu mais tarde à sua colecção. Mas a pintura europeia continuou anos fora a ser o motor das minhas deambulações por horas entre as salas do museu.

Circulando entre o sumptuoso mobiliário surgia a pintura de intimidades de alcova de Boucher (1703-1770), que um fio invisível puxado por Casanova (1725-1798) me levava à jóia formada pelas pinturas de Guardi (1712-1793), conduzindo-me primeiro a uma Veneza de sonho, e depois de lá ter estado, ao debate entre a realidade e a sua pintura dela, sendo que tantos dos lugares captados pelo pincel do séc. XVIII continuam reconhecíveis à mesma luz de milagre da cidade mágica.

Se os retratos do séc. XVIII da colecção, franceses ou ingleses, nunca me atraíram particularmente, chegado aos impressionistas e afins é outra história. 

Quando pintei, acontecia ir ao museu estudar uma pintura de Monet (1840-1926) em particular que me fascinava e fascina, O Degelo de 1880, retrato da fria e avassaladora beleza de uma natureza perante a qual o homem é nada. Perscrutava cada pincelada na sua textura e cor, e afastando-me da pintura avaliava o efeito no conjunto que a distância produzia. Em pausa deste estudo olhava para a esquerda, e lá estava Madame Claude Monet pintada por Renoir (1841-1919) em 1872-74, pousada num canapé, com ar de quem pertence, não a um ambiente de salão mas a um universo rústico. À direita olhava de soslaio um jovem um tanto empertigado na sua elegância citadina, apreciador de intimidades com bailarinas, como sabemos, pois tratava-se de um auto-retrato de Degas (1834-1917) em 1863. E entre estes polos segui eu fascinado com a arte de pintar de Monet. Um pouco mais afastada estava então a pintura de Manet (1832-1883), O rapaz das bolas de sabão de 1867, pretexto desta deambulação induzida pelo poema de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), que a seguir transcrevo.

O poema capta com rara felicidade, servindo-se da frágil beleza e brilho das bolas de sabão, e do encanto de as soprar, a realidade do homo faber que, se por momentos se entusiasma no seu fazer, rapidamente esse conseguimento se desvanece na sucessão dos efémeros de que a vida se faz, quais

… vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

…

Esta extinção antecipadamente conhecida não é suficiente, como sabemos, para impedir a procura continuada do belo que a vida trás. E pela metáfora da aventura da vida segue o poema:

…

E [a criancinha] continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

…

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Eis o poema na totalidade:

Bolas de sabão

Assenta-se no chão a criancinha

cruza as pernitas,

… e na ponta do tubo incham e crescem 

aqueles vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Já profundos, os seus olhos

contemplam nessas quebradiças bolas 

a sua aérea evolução etérea.

Débeis, duma ideal fragilidade 

tão frágil que, suspensa e receosa,

inda mais leve, mais, que suspirando,

com vago sentimento de ansiedade

é que o contido bafo as vai lançando…

São corpos cuja alma vaporosa

apenas é um sopro de criança.

E continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

E brincando, embebido no mistério, 

esse poeta cria a sua obra…

Mas o sol, que ali vem do céu distante,

trespassa-as, colorindo-as reverbera:

e então a luz cintila deslumbrante 

em cada efémera esfera.

Cada raio de sol que vem pôr

o seu divino ser, vai, glorioso,

criando com poder maravilhoso

a maravilha da cor!

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Afonso Lopes Vieira

in O Pão e as Rosas, Livraria Ferreira — Editora, Lisboa, 1908.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eduard Manet (1832-1883), As bolas de sabão, de 1867. A pintura pertence à colecção do Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa.

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O mistério da aranha num poema de Carlos Queiroz

17 Quinta-feira Set 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Os fios que nos ligam ao mundo são a nossa estratégia de sobrevivência. Criam-se e destroem-se por nós e pelos outros. Frágeis como os fios que a aranha tece, são a medida da vulnerabilidade, da persistência, do enredado da vida. E na reflexão poética sobre o eu, a vontade, e o mundo, vamos encontrar esta fragilidade em mais um poema perfeito de Carlos Queiroz (1907-1949) Aranha, uma obra-prima da poesia portuguesa.

 

 

Aranha

 

À sombra dum cedro imenso

Eis-me a sentir e a pensar;

Mas o que sinto não penso

E o que penso está suspenso

Como uma aranha no ar

 

No ar balouça, fremente,

Num débil fio invisível

Dessa teia intermitente

Que liga o passado ingente

Ao presente irreversível.

 

Irreversível instante

O estar aqui na paisagem

Dentro dela e já distante

— Pois o que somos durante

É de nós próprios imagem.

 

Imagem que se desdobra

Sem que a vontade a detenha

No tempo que nunca sobra.

Viver?… Criar uma obra?…

Oh, o mistério da aranha!

 

in Colectânea de Versos Portugueses do séc. XII ao séc. XX, organização de Cabral do Nascimento, Editorial Minerva, Lisboa, 1964.

 

 

Da poesia de Carlos Queiroz publicada no livro Desaparecido, primeiro e fulgurante livro do poeta, escreveu Fernando Pessoa (1888-1935):

“A beleza do livro começa pelo livro. A edição é lindíssima. A beleza do livro continua pelo livro fora: os poemas são admiráveis.

Não se pode dizer deste livro o que é vulgar dizer-se, elogiosamente, de um primeiro livro, sobretudo de um jovem: — que é uma bela promessa. O livro de Carlos Queiroz não é uma promessa, porque é uma realização. Cumpriu, sem ter prometido, sem ter tido que prometer.

Assim se deveria fazer sempre, ou quase sempre. Pertence ao mais íntimo da probidade literária e artística o não se apresentar ao público sem ter plena consciência de que na obra apresentada está tudo quanto em nós haja de forte. Não escrevia Milton um soneto sem que o fizesse como se desse soneto dependesse toda a sua fama futura.

E que prazer o de se poder escrever isto sem que a amizade que tenho pelo poeta, que é muita, uma só palavra me dite; sem o que o gosto de incitar quem é jovem, e tenho esse gosto, me faça sublinhar uma só frase; de poder escrever isto sem mais entendimentos que com a justiça, sem mais combinações que com a verdade.”

1935

in Textos de Crítica e de Intervenção, Fernando Pessoa, Lisboa, Ática, 1980.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Joan Miró (1893-1983), Cabeça e aranha, óleo s/tela de 1925, da colecção do Museu Reina Sofia de Madrid.

 

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Livros, covid-19, e Trabalhos e Dias de Hesíodo

09 Sábado Maio 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Surpreendido no estrangeiro pela quarentena de combate à pandemia, aqui permaneço longe da biblioteca. Dispondo quase só dos recursos digitais, dei comigo no outro dia saudoso de folhear e ler livros em papel e em português. As bibliotecas digitais são cómodas para viajar, tanto como armazéns de livros disponíveis, como oportunidades de leitura nas situações mais inesperadas. Mas o prazer de umas horas de leitura, confortavelmente instalado com um livro em papel na mão, que nos devora a atenção ao virar de cada página, é sem paralelo. É simultaneamente o tacto e o cheiro do papel associado à mancha gráfica que os olhos ávidos percorrem, qual estrada de horizonte surpreendente a cada quilómetro percorrido para um destino ora desconhecido, ora familiar e sempre de enorme alegria, o que inebria a quem, como eu, viciado na leitura, os livros em papel fazem falta. Esta convocação dos sentidos para o prazer intelectual da leitura estará provavelmente perdida para as gerações mais novas. Outros prazeres encontrarão. 

Olho o meu neto recém-nascido, e não deixo de me perguntar: que interesse lhe poderá despertar a minha biblioteca em papel? Provavelmente a curiosidade de relíquias da história familiar. Tenho sempre presente algo que o meu filho na adolescência me disse quando o questionei sobre o pouco interesse que os livros da biblioteca de casa lhe despertavam, sendo ele um leitor ávido. Respondeu-me: esses foram as tuas escolhas, as minhas serão outras certamente. E assim foi, embora uma vez por outra coincidamos nelas. E no entanto, quando ele partiu para a aventura da vida e empacotou os seus livros, não deixou de referir: vou guardá-los, talvez um dia um meu filho goste de os ler. Não sei, não sabemos. 

Vivemos tempos de enorme mutação onde a incógnita do futuro é talvez maior que em toda a minha vida vivida. Nunca como agora fomos confrontados com a aguda evidência da nossa fragilidade e de como, enquanto humanos dependemos para tudo uns dos outros. E é em situações assim que ir ao encontro das raízes nos diz quem somos e nos ajuda a seguir em frente.

Retomo um artigo dos primeiros meses do blog, pelo Outono há pouco mais de dez anos, onde pelas minhas raízes deambulo, numa partilha de memórias consentidas.

É urbana a minha memória dos cheiros da terra. São, nos mercados as bancas da hortaliça se por acaso entre elas despontam ervas aromáticas: coentro, salsa, hortelã; que me devolvem aquela espécie de segurança despreocupada apanágio da infância.

Quando, chegado Outubro, acontecia a feira anual de sementes, frutos secos e gado, bujigangas e figurinhas de barro para o presépio à mistura,  em grandes sacos de serrapilheira lá estavam: peros, vermelhos, raiados, verdes, bravo d’esmolfe; e então, era a alegria num odor inebriante, talvez perdido para sempre.

É em vão que da prateleira do supermercado levo para casa bolinhas verdes a que chamam peros bravo d’esmolfe, pois aberto o saco, cheiro não há, e o sabor é vago a qualquer coisa indistinta.

Na volta do fim da tarde passei à porta da preciosa charcutaria de bairro e havia, em caixotes, cheirosos, peros bravo d’esmolfe. Entrei e comprei. As tâmaras da Tunísia e Israel, os figos da Turquia, nada disso ainda chegou, mas já há as frutas em açucar da abençoada fábrica Convento da Serra, de Elvas. Se até há uns anos eram as ameixas deles a minha perdição, desde que apareceram figos, não resisto. Com a minha paixão por figos em qualquer estádio, frescos, secos, com açucar, cristalizados, recheados  ou em doces os mais diversos, quase me sinto perto dos deuses do Olimpo de quem se diz alimentarem-se a figos e mel.

Na verdade é uma paixão vinda da mais tenra infância. Voltava eu da escola de aprender a ler, mal feitos os três anos, e ao passar em casa da bisavó corria para as algibeiras daqueles saiões rodados onde sempre havia figos secos e torrados. Mais tarde, era o caixote de madeira providenciado anualmente pelo meu avô para o inverno, cheio de figos arrumados às camadas separadas por pauzinhos de funcho, a fonte das delicias. Interrompia brincadeiras para amiúde ir buscar 1 ou 2 figos e o caixote com custo ultrapassava o Natal.

Como algures aqui escrevi, sou decididamente uma criatura do mediterrâneo. Neste folhear de memórias ocorre-me o prazer com que descobri o mercado das Ramblas em Barcelona, espectáculo único para os sentidos de qualquer gourmet, ou os passeios há mais de 40 anos pelos mercados de rua nas cidades italianas, de Veneza a Nápoles, hoje praticamente inexistentes.

O acaso das leituras cruzadas destes últimos dias conduziu-me ao mediterrâneo. Leio Orlando Ribeiro numa viagem fascinada pela paisagem, gentes e cultura. De um fôlego li a última história de mestre Camileri deambulada na Sicilia, e demoradamente caminho na edição de José Ribeiro Ferreira de Trabalhos e Dias de Hesíodo.

Na documentação que acompanha a tradução de Trabalhos e Dias encontro o esquema do arado descrito por Hesíodo e usado há mais de 2600 anos na Grécia. Na página seguinte do livro aparece o esquema do arado usado em pleno século XX na freguesia onde nasci e cresci em tudo semelhante ao arado grego da antiguidade.

Estas continuidades devolvem-me um sentido único de pertença a um mundo do qual gosto de guardar e transmitir a herança.

É Outubro, é mês de lavoura, tempo da passagem do grou pela Grécia vindo dos países nórdicos a caminho de África para aí hibernar e nos Trabalhos e Dias Hesíodo recomenda para esta altura:

…

Presta atenção, quando escutares o grito do grou,             448

no alto, entre nuvens, ele que seu lamento, ano a ano, repete:

dá-te o sinal do trabalho de lavra, a estação do inverno                   450

te anuncia, pluviosa, e punge o coração do que não tem bois.

Então engorda os bois de chifres recurvos, em casa.

Pois é fácil dizer: “empresta-me a junta de bois e o carro”;

mas fácil é também recusar: “ já há trabalho para os meus bois”.

O homem rico fala, em espírito, em construir um carro;                   455

louco, nem sequer sabe que cem são as peças desse carro,

as quais deve ele, primeiro, ter o cuidado de reunir em casa.

Logo que brilha para os mortais o tempo da lavoura,

aprestai-vos então em conjunto, escravos e tu próprio,

a arar a terra, seca ou húmida em cada estação da lavoura,           460

esforçando-te desde manhã, para que os campos produzam.

…

 

Talvez nesta eterna viagem algum dos grou de Hesíodo tenha transportado Nils Holgerssons na sua viagem maravilhosa*, aventura que, espero, um dia lerei ao meu neto.

O mundo hoje é outro, e ao meu neto regresso, na dúvida de que histórias que me interessaram lhe despertem, sequer, curiosidade. Luso-britânico com bisavós portugueses, espanhóis e alemães, será talvez a personificação do europeu pelo sangue, se não pelo coração. Nos antepassados encontra vítimas diretas dessas pandemias e guerras do primeiro século XX. E se o sofrimento não se carrega nos genes, a memória deles atravessa os homens e esperemos ajude a não repetir a mesma corrida para o abismo. A memória alimenta-se das histórias que nos fazem e fizeram, e nos livros encontramos condensadas tantas vezes. Ler é sempre um caminho para saber mais sobre nós, sobre o mundo, levando-nos ao encontro de saídas para tanta perplexidade que nos assalta.

Noticia bibliográfica:

O fragmento transcrito do poema Trabalhos e Dias, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia , e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.

* Livro de Selma Lagerlöf (1858-1940).

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Nicolas de Staël (1914-1955), Paisagem mediterrânea de 1953, pertença da colecção do Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, de Madrid.

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Alguns enigmas da Antologia Grega

04 Sábado Jan 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Para distrair quem me lê de preocupações mais sérias, venho com alguns enigmas recolhidos no tomo XIV da colecção de epigramas conhecida como Antologia Grega. 

Já várias vezes referi com detalhe no blog esta colecção de poemas, nomeadamente a sua antiguidade e origem. Transcrevo tão só alguns poemas de autor ou autores anónimos em tradução e notas de Carlos A. Martins de Jesus. 

 

Enigmas, ou adivinhas, constituem um vastíssimo património presente um pouco por todo o mundo nas diferentes culturas, sendo a tradição portuguesa riquíssima deles. Por gerações, desde a remota antiguidade têm entretido novos e velhos, e continuam presentes logo que um convívio intergeracional se estabeleça e da momentosa actualidade os convivas se distraiam.

 

 

Enigmas:

 

De um pai branco sou o negro filho, ave sem asas

     que a voar atinge mesmo as nuvens do céu; 

às pupilas que encontro gero lágrimas sem dor;

     acabado de nascer, logo me dissolvo no ar.

 

Solução: O fumo.

 

22.

Não fales, e falarás o meu nome. Tens mesmo de falar? 

Espantoso: que mesmo falando tu falarás o meu nome.

 

Solução: O silêncio.

 

A minha mãe dou à luz e ela a mim; umas vezes

      sou maior, outras vezes menor do que ela. 

 

Solução: A noite e o dia, que em grego são ambas palavras do género feminino.

 

Para terminar, dois epigramas com solução idêntica, o segundo mais desenvolvido na argumentação que o primeiro, exemplos de alguma brejeirice em que a Antologia Grega também é pródiga:

 

Sou o único que goza de intimar com mulheres

     com o consentimento dos maridos.

 

Sou o único que goza de intimar com mulheres

     às claras, a pedido dos maridos; 

apenas eu monto rapazes, homens maduros, velhos

     e donzelas, ante a aflição dos parentes.

Odeio a lascívia! Mas a mão curadora bem me quer

     por realizar a tarefa do filho de Anfitrião(1). 

Pelos meus amantes, contra Plutão(2) em pessoa lutaria

     sempre pela vida daqueles com que me uno. 

Sou o filho de belo nariz e brancos dentes, o resultado

      da ciência dos mortais ao misturar o elefante e a cabra(3).

 

Solução: O clister.

 

Notas

(1) Héracles. Refere-se provavelmente à limpeza dos estábulos de Augeu.

(2) Contra a morte.

(3) O clister seria feito de pele de cabra envolvendo uma cânula de marfim.

in Antologia Grega, Epigramas Vários (livros IV, XIII, XIV, XV), Tradução, introdução e comentário de Carlos A. Martins de Jesus, Universidade de Coimbra. Edição digital.

A numeração dos enigmas é a desta edição.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma criação digital que certa tarde, sentado numa esplanada, me entretive a fazer, a partir de fotos tiradas à calçada que tinha sob os pés. É a enigmática surpresa da forma desenhada que me leva a abrir com ela o artigo.

Carlos Mendonça Lopes

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Um milhão e meio de visitas ao blog

04 Sexta-feira Out 2019

Posted by viciodapoesia in Crónicas

≈ 2 comentários

Ultrapassaram ontem o milhão e meio as visitas ao blog na contagem do WordPress.

Partindo da ideia feita de que a poesia não tem leitores, milhão e meio de visitas em menos de dez anos, a um blog votado à poesia sem propósitos de divulgação ou outros que não o prazer de escrever e partilhar um gosto ecléctico, que não conhece fronteiras ou tabus, é no mínimo motivo de espanto e sinalização.

Para a história da vida do blog, aqui fica um gráfico, e respectiva tabela, da evolução do número de visitas e visitantes ao longo destes 10 anos:

                   Gráfico do nº de visitas e visitantes desde o início do blog

                         Tabela do nº de visitas ao blog desde o seu início

Começado o blog em testes em Out/2009, a partir de Jan/2010, dei início à publicação de artigos com incerta regularidade. Hoje totalizam 950 os artigos publicados, este incluído.

Em média os visitantes do Brasil têm sido o dobro dos visitantes em Portugal, e os visitantes dos EUA são cerca de metade dos visitantes em Portugal. De muitos outros países chegam visitantes sem nunca atingirem números expressivos.

Estamos de parabéns todos: os poetas que produziram o mais importante que aqui se mostra, e os leitores que visitam, regressam e partilham o que no blog lhes agrada.

Por mim, obrigado por lerem, eu que escrevo para o leitor ideal, o meu eu-outro, que me conhece as intenções, decifra a escrita sub-liminar e detecta as intenções e ironias que cada artigo sempre contem. Daqui a alguns dias regresso com mais poesia.

Até lá…

Carlos Mendonça Lopes 

Notas iconográficas

A imagem inicial, icon festivo, foi realizada a partir de um original encontrado na net.

O gráfico e a tabela são os fornecidos pelo WordPress ao administrador do site.

 

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Livros?

23 Terça-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Livros? Tal como a roda, depois de inventados nunca mais a humanidade passou sem eles, qualquer que seja a forma que pelos tempos foram revestindo.

Instrumento privilegiado de transmissão ao maior número, de saber, experiências, reflexões, fantasias, ou das mais variadas formas que a vida pode revestir, eles vivem connosco ainda que nem sempre o percebamos.

Livros toda a gente sabe o que são. O que podem conter, menos. E ao deparar com algum ter a curiosidade de saber o que possa estar lá dentro, pouquíssimos. E nisto estamos, e todos os anos há um dia mundial do livro. Para quê? Pergunto-me eu.

Sabe quem lê, que dos livros que lemos fica um rasto, um fio de lembrança, às vezes quase uma nódoa, negra, da dor de saber. Saber dói, mas quando começa, é inescapável.

É a sensibilidade de leitor estribada num gosto decorrente de uma cultura, o que faz as nossas escolhas sinceras. A aceitação da nossa verdade interior facilita a escolha sem receio de opiniões terceiras. Da mundanidade, ou seja, daquele adorno de poderosos, aqui não falo, como não falo dum gostar por ouvir dizer.

Às vezes surpreendo num ou outro blog ou página de Facebook, sobretudo de jovem brasileiro(a), textos que me interrogam: de que estão a falar? Em que língua se exprimem? Imagino que os autores, se o acaso os fizesse ler o que escrevo, teriam as mesmas perguntas. Isto leva-me a uma questão essencial sobre livros: é preciso saber ler o que contêm. E tal exige um conhecimento da língua em que estão escritos um pouco acima dos níveis mínimos. Só depois, pouco a pouco, é possível ir descobrindo os fabulosos segredos que nos livros se guardam. Mas tudo isto sabe quem me lê, pois certamente é leitor de livros, e, talvez, até compulsivo.
Por volta dos meus onze, doze anos, fui leitor voraz de histórias de cowboys. Nos pequenos livros de banda desenhada que à época havia, mas sobretudo de umas historietas em prosa publicadas nuns livrinhos pequeninos de uma colecção 6 balas, se bem recordo. Nesses livros o deserto, e os adversários, eram a matéria de ficção, definidora de uma barreira a vencer, e muitas vezes intransponível, para chegar à terra prometida, que no caso era a Califórnia. Vejo hoje como eram lições de lealdade, bravura, gosto da aventura e recompensa que estimulam o desafio de viver. Se o gosto de ler me chegara antes com as histórias encantadas que a infância aprecia, nunca mais parou. E à ideia de umas férias sem programa todo eu sorrio. Como agora. Encho uma mala de livros e parto para o recatado sossego de leituras e outros pequenos prazeres.

Talvez os livros tenham sido inventados para me fazer feliz…

Carlos Mendonça Lopes

As fotos que acompanham o artigo fê-las o mestre André Kertész (1894-1985) em 1915 na Hungria, a de abertura, a outra não identifiquei local nem data. Ambas integram um vasto conjunto dedicado a captar pessoas a ler, uma pequena parte das quais pode ser encontrada aqui no blog.

 

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Podem chamar-lhe poesia

15 Sexta-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Podem chamar-lhe poesia.

É apenas uma foto,

silenciosa palavra

sobre a Terra.

 

 

You may call it poetry

It’s just a photo,

 silent word

about the Earth.

 

Foto e texto de Carlos Mendonça Lopes

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A alma do vinho segundo Baudelaire

30 Quarta-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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E de novo, mais um contributo para um cancioneiro do vinho que vou arquivando no blog.
Desta vez Charles Baudelaire (1821-1867) e um poema de Fleurs du Mal, L’âme du vin, que assim abre:

 

Nas garrafas cantou, uma noite, a alma do vinho:
“Homem, pra ti exalo, ó caro deserdado,
Nesta prisão de lacre vermelho e de vidro,
Um canto cheio de luz e de fraternidade!
…

 

Ao dar voz à alma do vinho já engarrafado, o poema, percorre o itinerário do vinho entre produzi-lo e bebê-lo:
…
Sobre a colina em fogo, sei quanto é preciso
De esforço, de suor e de sol bem ardente
Pra me engendrar a vida e me criar o espírito;
…

 

 

É um pouco o que Pablo Neruda fará um século mais tarde na sua Ode ao Vinho, de forma mais desenvolvida e ideologicamente não tão distante quanto isso, a qual em tempos transcrevi no blog, e que a segunda versão que transcrevo de L’âme du vin torna mais explícita:

 

“Ó homem querido deserdado”
…
Não penses que ignoro quanto trabalho suor e sol a pique
Foi preciso reunir nas colinas em chama
Para fazer de mim um daimon actuante —
Estou-te grato. Não te farei mal.

…

L’âme du vin integra em Fleurs du Mal um pequeno ciclo de cinco poemas, cada um abordando convívios e consequências diferentes com o vinho. Em A Alma do Vinho, a sua finalidade é confortar e alegrar o homem comum:
…
Porque imensa alegria sinto ao ir caindo
Na goela de um homem gasto plo trabalho
E o seu peito quente é um sepulcro suave
Que me agrada bem mais do que as adegas frias.

Não ouves ressoar os refrãos domingueiros
E no meu peito ansioso a esperança a gorjear?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Irás glorificar-me e estarás satisfeito;
…

 

 

No passo final do poema vem a dimensão mística do vinho ao qual cabe inspirar no poeta composições dignas da divindade:
…
Sou uma ambrosia vegetal, eu sei.
Uma semente preciosa lançada pelo Semeador
Em ti cairei para que do nosso enlace nasça a flor rara do poema —
Falarás, de igual para igual, com esse Criador.
…

 

Citei fragmentos das duas versões do poema que a seguir transcrevo. Uma, de Fernando Pinto do Amaral, tanto quanto possível próximo do original; outra, uma reinterpretação do poema por Maria Gabriela Llansol, dando dele em português uma belíssima versão. Seguem ambas na íntegra rematadas pelo poema original.

A Alma do Vinho

Nas garrafas cantou, uma noite, a alma do vinho:
“Homem, pra ti exalo, ó caro deserdado,
Nesta prisão de lacre vermelho e de vidro,
Um canto cheio de luz e de fraternidade!

“Sobre a colina em fogo, sei quanto é preciso
De esforço, de suor e de sol bem ardente
Pra me engendrar a vida e me criar o espírito;
Porém, não quero ser ingrato ou malevolente,

“Porque imensa alegria sinto ao ir caindo
Na goela de um homem gasto plo trabalho
E o seu peito quente é um sepulcro suave
Que me agrada bem mais do que as adegas frias.

“Não ouves ressoar os refrãos domingueiros
E no meu peito ansioso a esperança a gorjear?
Cotovelos na mesa e manga arregaçada,
Irás glorificar-me e estarás satisfeito;

“Da tua esposa encantada acenderei os olhos;
Devolverei a força e as cores ao teu filho
E serei pra tão frágil atleta da vida
O óleo que enrijece aos lutadores os músculos.

“Em ti hei-de cair, vegetal ambrosia,
Precioso grão que sempre o eterno Semeador
Lança, pra que do nosso amor nasça a poesia
Que brotará pra Deus como uma rara flor!”

 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral
in Baudelaire, As Flores do Mal, Assírio & Alvim, Lisboa, 1992.

 

 

O Daimon do Vinho

“Ó homem querido deserdado”
Cantava pela tarde o daimon do vinho nas garrafas
“Da minha prisão de vidro e de lacre
Te envio uma canção de luz e de fraternidade;
Não penses que ignoro quanto trabalho suor e sol a pique
Foi preciso reunir nas colinas em chama
Para fazer de mim um daimon actuante —
Estou-te grato. Não te farei mal.
É imensa a alegria que sinto
Quando deslizo pelas goelas do trabalhador cansado,
O seu peito quente é uma jazida muito mais do meu agrado
De que as caves frias onde me conservo.

Não ouves as canções de domingo passando de boca em boca
E a esperança que chilreia no meu seio palpitante?
De cotovelos na mesa e de mangas arregaçadas
Teu júbilo crescente à minha gloria canta.

Darei luz aos olhos da tua mulher rediviva
A teu filho, força e cores vitais — serei para esse frágil atleta da vida
O óleo que endurece seus músculos de lutador.

Sou uma ambrosia vegetal, eu sei.
Uma semente preciosa lançada pelo Semeador
Em ti cairei para que do nosso enlace nasça a flor rara do poema —
Falarás, de igual para igual, com esse Criador.

 

Versão de Maria Gabriela Llansol
in Charles Baudelaire, As Flores do Mal, Relógio d’Água, Lisboa, 2003.

 

 

Poema original

 

 

L’âme du vin

Un soir, l’âme du vin chantait dans les bouteilles :
« Homme, vers toi je pousse, ô cher déshérité,
Sous ma prison de verre et mes cires vermeilles,
Un chant plein de lumière et de fraternité !

Je sais combien il faut, sur la colline en flamme,
De peine, de sueur et de soleil cuisant
Pour engendrer ma vie et pour me donner l’âme ;
Mais je ne serai point ingrat ni malfaisant,

Car j’éprouve une joie immense quand je tombe
Dans le gosier d’un homme usé par ses travaux,
Et sa chaude poitrine est une douce tombe
Où je me plais bien mieux que dans mes froids caveaux.

Entends-tu retentir les refrains des dimanches
Et l’espoir qui gazouille en mon sein palpitant ?
Les coudes sur la table et retroussant tes manches,
Tu me glorifieras et tu seras content ;

J’allumerai les yeux de ta femme ravie ;
A ton fils je rendrai sa force et ses couleurs
Et serai pour ce frêle athlète de la vie
L’huile qui raffermit les muscles des lutteurs.

En toi je tomberai, végétale ambroisie,
Grain précieux jeté par l’éternel Semeur,
Pour que de notre amour naisse la poésie
Qui jaillira vers Dieu comme une rare fleur ! »

 

Charles Baudelaire, Les Fleurs du Mal, 1857.

 

 

Depois de tão veemente e certeira glorificação do vinho talvez se imponha alguma reflexão filosófica. Sendo eu um moderado bebedor: limito-me habitualmente a um copo de vinho à refeição, esforço-me por ter presente a máxima de Epicuro (341a.C. – ~270 a.C.):
Nenhum prazer é em si mesmo mau. Contudo, as coisas que produzem alguns prazeres trazem consigo perturbações que são muito maiores que os prazeres.*

Esta máxima que levou à danação dos epicuristas, transparece em Montaigne (1533-1592) em várias reflexões nos seus ensaios. No segundo ensaio do seu livro II de Ensaios, Sur l’Ivrognerie, desenvolve o filósofo interessantes considerações não tanto sobre embriaguês ocasional, mas espraiando-se sobre as vantagens da temperança, tem em conta a expressão de Plinio o Velho (23-79) — in vino vertias,  in aqua sanitas — a verdade está no vinho, na água está a saúde. Aproveita o filósofo para deambular sobre o vinho e os seus efeitos conforme a idade. Como que conversando com os autores greco-latinos, o ensaio é um saboroso percurso de erudição e reflexão. Aqui fica a nota.
Deixemos para outra ocasião o casamento entre vinho e volúpia para não desautorizar tão séria meditação.

* Epicuro, Cartas, Máximas e Sentenças, tradução de Gabriela Baião, Edições Sílabo,
Lisboa, 2009.

Acompanham o artigo três iluminuras do manuscrito medieval Codex Vindobonensis, series nova 2644 conservado na Biblioteca Nacional da Áustria. Mostram elas a apanha da uva e feitura do vinho, a refeição de quem trabalha e com pão e vinho para ganhar forças, e ainda, a abrir, o caminho para a embriaguês de um bebedor ocioso e solitário. Este Codex dá conta em 206 deliciosas iluminuras, de uma arte de viver na Idade Média por vezes surpreendente no registo de um como fazer campestre tão presente ainda nas sociedades rurais.

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Pelo Natal com poemas de Miguel Torga

21 Sexta-feira Dez 2018

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Master Francke, Miguel Torga

Ao longo das páginas dos XVI volumes do Diário (1941-1993) tem Miguel Torga (1907-1995) espalhado um Cancioneiro de Natal. Não livro temático deliberado, mas poemas/apontamentos reflexivos e sentimentais sobre a data e o seu significado pessoal. Se em muitos poemas é a memória e o sentir próprio que se reflectem, noutros é a leitura social do significado da crença, o que encontramos.

Destes vinte e tal poemas explicitamente assinalados, e espalhados ao longo dos últimos cinquenta anos da vida do poeta (do Natal de 1940 ao Natal de 1991), transcrevo a seguir cinco. Se o consolo da fé não surge evocado, a esperança que a mitologia da data encerra nas suas múltiplas possibilidades, está sempre presente, à mistura com a amargura de que o mundo não seja o lugar de paz e harmonia que a cada nascimento se promete.

 

Loa

É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1969.

 

 

Natal

Todos os anos, nesta data exacta,
Momentos antes
De fechar o cartório
De poeta
— Um registo civil ultra-real —,
O mago desse arquivo de presságios
Regista de antemão o mesmo nome
No seu livro de assentos:
— Jesus… — repete com melancolia,
A consumar a morte prematura
Do nascituro,
E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,
Humana criatura,
Continue a ter filhos no futuro
Condenados à mesma desventura.

S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1973.

 

 

Natal

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.

Coimbra, Natal de 1974.

 

 

Natal

Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.

Coimbra, 25 de Dezembro de 1983.

 

 

Natal

Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.

Coimbra, 24 de Dezembro de 1988.

 

 

Poemas transcritos de Miguel Torga, Poesia Completa, 2 volumes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Master Francke, presumivelmente de 1424. Mestre Francke foi pintor activo no norte da Alemanha nos primórdios do século XV, e de cuja vida e obra hoje pouco se sabe.

 

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