Surpreendido no estrangeiro pela quarentena de combate à pandemia, aqui permaneço longe da biblioteca. Dispondo quase só dos recursos digitais, dei comigo no outro dia saudoso de folhear e ler livros em papel e em português. As bibliotecas digitais são cómodas para viajar, tanto como armazéns de livros disponíveis, como oportunidades de leitura nas situações mais inesperadas. Mas o prazer de umas horas de leitura, confortavelmente instalado com um livro em papel na mão, que nos devora a atenção ao virar de cada página, é sem paralelo. É simultaneamente o tacto e o cheiro do papel associado à mancha gráfica que os olhos ávidos percorrem, qual estrada de horizonte surpreendente a cada quilómetro percorrido para um destino ora desconhecido, ora familiar e sempre de enorme alegria, o que inebria a quem, como eu, viciado na leitura, os livros em papel fazem falta. Esta convocação dos sentidos para o prazer intelectual da leitura estará provavelmente perdida para as gerações mais novas. Outros prazeres encontrarão.
Olho o meu neto recém-nascido, e não deixo de me perguntar: que interesse lhe poderá despertar a minha biblioteca em papel? Provavelmente a curiosidade de relíquias da história familiar. Tenho sempre presente algo que o meu filho na adolescência me disse quando o questionei sobre o pouco interesse que os livros da biblioteca de casa lhe despertavam, sendo ele um leitor ávido. Respondeu-me: esses foram as tuas escolhas, as minhas serão outras certamente. E assim foi, embora uma vez por outra coincidamos nelas. E no entanto, quando ele partiu para a aventura da vida e empacotou os seus livros, não deixou de referir: vou guardá-los, talvez um dia um meu filho goste de os ler. Não sei, não sabemos.
Vivemos tempos de enorme mutação onde a incógnita do futuro é talvez maior que em toda a minha vida vivida. Nunca como agora fomos confrontados com a aguda evidência da nossa fragilidade e de como, enquanto humanos dependemos para tudo uns dos outros. E é em situações assim que ir ao encontro das raízes nos diz quem somos e nos ajuda a seguir em frente.
Retomo um artigo dos primeiros meses do blog, pelo Outono há pouco mais de dez anos, onde pelas minhas raízes deambulo, numa partilha de memórias consentidas.
É urbana a minha memória dos cheiros da terra. São, nos mercados as bancas da hortaliça se por acaso entre elas despontam ervas aromáticas: coentro, salsa, hortelã; que me devolvem aquela espécie de segurança despreocupada apanágio da infância.
Quando, chegado Outubro, acontecia a feira anual de sementes, frutos secos e gado, bujigangas e figurinhas de barro para o presépio à mistura, em grandes sacos de serrapilheira lá estavam: peros, vermelhos, raiados, verdes, bravo d’esmolfe; e então, era a alegria num odor inebriante, talvez perdido para sempre.
É em vão que da prateleira do supermercado levo para casa bolinhas verdes a que chamam peros bravo d’esmolfe, pois aberto o saco, cheiro não há, e o sabor é vago a qualquer coisa indistinta.
Na volta do fim da tarde passei à porta da preciosa charcutaria de bairro e havia, em caixotes, cheirosos, peros bravo d’esmolfe. Entrei e comprei. As tâmaras da Tunísia e Israel, os figos da Turquia, nada disso ainda chegou, mas já há as frutas em açucar da abençoada fábrica Convento da Serra, de Elvas. Se até há uns anos eram as ameixas deles a minha perdição, desde que apareceram figos, não resisto. Com a minha paixão por figos em qualquer estádio, frescos, secos, com açucar, cristalizados, recheados ou em doces os mais diversos, quase me sinto perto dos deuses do Olimpo de quem se diz alimentarem-se a figos e mel.
Na verdade é uma paixão vinda da mais tenra infância. Voltava eu da escola de aprender a ler, mal feitos os três anos, e ao passar em casa da bisavó corria para as algibeiras daqueles saiões rodados onde sempre havia figos secos e torrados. Mais tarde, era o caixote de madeira providenciado anualmente pelo meu avô para o inverno, cheio de figos arrumados às camadas separadas por pauzinhos de funcho, a fonte das delicias. Interrompia brincadeiras para amiúde ir buscar 1 ou 2 figos e o caixote com custo ultrapassava o Natal.
Como algures aqui escrevi, sou decididamente uma criatura do mediterrâneo. Neste folhear de memórias ocorre-me o prazer com que descobri o mercado das Ramblas em Barcelona, espectáculo único para os sentidos de qualquer gourmet, ou os passeios há mais de 40 anos pelos mercados de rua nas cidades italianas, de Veneza a Nápoles, hoje praticamente inexistentes.
O acaso das leituras cruzadas destes últimos dias conduziu-me ao mediterrâneo. Leio Orlando Ribeiro numa viagem fascinada pela paisagem, gentes e cultura. De um fôlego li a última história de mestre Camileri deambulada na Sicilia, e demoradamente caminho na edição de José Ribeiro Ferreira de Trabalhos e Dias de Hesíodo.
Na documentação que acompanha a tradução de Trabalhos e Dias encontro o esquema do arado descrito por Hesíodo e usado há mais de 2600 anos na Grécia. Na página seguinte do livro aparece o esquema do arado usado em pleno século XX na freguesia onde nasci e cresci em tudo semelhante ao arado grego da antiguidade.
Estas continuidades devolvem-me um sentido único de pertença a um mundo do qual gosto de guardar e transmitir a herança.
É Outubro, é mês de lavoura, tempo da passagem do grou pela Grécia vindo dos países nórdicos a caminho de África para aí hibernar e nos Trabalhos e Dias Hesíodo recomenda para esta altura:
…
Presta atenção, quando escutares o grito do grou, 448
no alto, entre nuvens, ele que seu lamento, ano a ano, repete:
dá-te o sinal do trabalho de lavra, a estação do inverno 450
te anuncia, pluviosa, e punge o coração do que não tem bois.
Então engorda os bois de chifres recurvos, em casa.
Pois é fácil dizer: “empresta-me a junta de bois e o carro”;
mas fácil é também recusar: “ já há trabalho para os meus bois”.
O homem rico fala, em espírito, em construir um carro; 455
louco, nem sequer sabe que cem são as peças desse carro,
as quais deve ele, primeiro, ter o cuidado de reunir em casa.
Logo que brilha para os mortais o tempo da lavoura,
aprestai-vos então em conjunto, escravos e tu próprio,
a arar a terra, seca ou húmida em cada estação da lavoura, 460
esforçando-te desde manhã, para que os campos produzam.
…
Talvez nesta eterna viagem algum dos grou de Hesíodo tenha transportado Nils Holgerssons na sua viagem maravilhosa*, aventura que, espero, um dia lerei ao meu neto.
O mundo hoje é outro, e ao meu neto regresso, na dúvida de que histórias que me interessaram lhe despertem, sequer, curiosidade. Luso-britânico com bisavós portugueses, espanhóis e alemães, será talvez a personificação do europeu pelo sangue, se não pelo coração. Nos antepassados encontra vítimas diretas dessas pandemias e guerras do primeiro século XX. E se o sofrimento não se carrega nos genes, a memória deles atravessa os homens e esperemos ajude a não repetir a mesma corrida para o abismo. A memória alimenta-se das histórias que nos fazem e fizeram, e nos livros encontramos condensadas tantas vezes. Ler é sempre um caminho para saber mais sobre nós, sobre o mundo, levando-nos ao encontro de saídas para tanta perplexidade que nos assalta.
Noticia bibliográfica:
O fragmento transcrito do poema Trabalhos e Dias, de Hesíodo, foi retirado da edição conjunta de Teogonia e Trabalhos e Dias de Hesíodo, publicada pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda em 2005 na colecção Biblioteca de Autores Clássicos e da responsabilidade de Ana Elias Pinheiro – Teogonia , e José Ribeiro Ferreira – Trabalhos e Dias.
* Livro de Selma Lagerlöf (1858-1940).
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Nicolas de Staël (1914-1955), Paisagem mediterrânea de 1953, pertença da colecção do Museo Nacional Thyssen-Bornemisza, de Madrid.
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Acabo de saber que é avô! Parabéns! Muitas felicidades.
Martinha
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Martinha, obrigado. Tudo bom para si e até breve.
Carlos
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Já tinha saudades de lê-lo.
Muitos parabéns, pelo neto! As maiores felicidades, para todos. Que a vida lhe sorria, sempre.
Obrigada por tudo quanto nos oferece. É um prazer imenso lê-lo e relê-lo.
M. Cília
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Obrigado pelo calor e simpatia do comentário. É bom saber que temos leitores para além de uma consulta apressada no Google. É para si e os outros reiterados leitores que escrevo e continuarei.
Até breve,
Carlos Mendonça Lopes
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