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Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.