• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Category Archives: Poesia Portuguesa sec XIX

E o amor? — poema de Manuel da Silva Gayo

21 Sexta-feira Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Alexej von Jawlensky, Manuel da Silva Gayo

Da poesia hoje merecidamente esquecida de Manuel da Silva Gayo (1860-1934) exumo dois poemas que justificam ser lembrados pela sua construção formal e originalidade temática. O assunto: o conflito entre razão e paixão. 

Ao longo do primeiro poema desenvolvem-se três momentos — nos dois primeiros quartetos uma separação amorosa e uma interrogação sobre a possibilidade da sua compreensão:

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

…

 

 

Segue-se nos terceiro e quarto quartetos uma interrogação sobre a existência de um amor ideal, e a possibilidade de o viver se este fugir à razão:

…

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

…

 

 

Depois do relato e das dúvidas, a resposta vem pela aceitação desesperada da impossibilidade pessoal de conciliar o amor e a razão:

…

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

 

 

Isto por culpa do que o poeta qualifica como um dom, ou seja: estando sempre em si a natureza dual humana, instinto e pensamento, observa o poeta uma sua impossibilidade de entrega incondicional com o que ela implica de esquecimento de si, decorrente de uma personalidade antropocêntrica:

…

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

…

 

 

Esta é, na verdade, a impossibilidade do amor total, ou seja, um amor sem contabilidade de reciprocidades, nem espaço para o desenvolvimento da individualidade, e em grande medida associado ao entendimento da posse total e absoluta do outro.

 

 

Eis o poema na sequência original:

 

 

“E o amor? — insiste a voz — nem esse amor,

Que ainda é de dois tortura

E alto sonho já, dará valor

A tão fria amargura?

 

Não logrará o Amor ainda dar-te asas

Que te levem a ver

Duma altura de graça o fumo e as brasas

Do teu castelo a arder?”

 

Em vez de responder, eu só pergunto

Onde e quando nasceu

Essa alma que pudera erguer-me junto

Às portadas do céu?

 

E não serão tais núpcias, tais momentos

Um singular condão

Das almas novas, virgens dos tormentos

Que nascem da razão?…

 

Ah! quer suspire ao céu do puro Amor

Quer no lodo rasteje

É sempre o mesmo o mal, a mesma a dor

Que o meu destino rege:

 

— Esse dom de jamais me abandonar

Ao longo da existência;

De tudo dividir e desdobrar;

Duma dual consciência;

 

Esse dom de me ver no que possua,

De em nada me absorver,

De reduzir a mim quanto flutua

À volta do meu ser —

 

Fatal dom que, nascido já comigo,

Aumenta a cada hora,

Quanto mais eu caminho e ao longe sigo

Pela existência fora.

 

Ai! não! não tem remédio este tormento

É minha lei a dor;

Não me dá paz o sol do pensamento

Nem o luar do Amor.

in Novos Poemas, ed. do autor, Coimbra, 1906.

 

 

Numa espécie de epílogo às interrogações formuladas no poema anterior, o livro Novos Poemas termina com um soneto, Diálogo, dando-se nele conta de como a razão compreende os assuntos do coração, e os desvarios a que ele pode conduzir:

…

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

 

Poema

 

Diálogo

Disse-me um dia à mente o Coração

“Quando lembro que aos fogos da Quimera

Teu amor imolei, fria Razão,

Logo um vago terror me aflige e altera;

 

Porque temo não vás, fada severa,

Para agora punir minha traição,

De teu porto negar-me a paz austera

Ao ver-me naufragante da ilusão!”

 

Mas a Razão, serena, respondeu:

“Descansa, Coração, se me traiste,

Já meu alto ditame te absolveu,

 

Pois li sempre — através do que tentaste —

Na mentira de quanto possuíste 

A verdade de quanto desejaste”.

Coimbra, abril de 1902

 

 

Dos tempos de Coimbra como estudante, publicou antes Manuel da Silva Gayo o livro Poesias (1892), com o qual pretendia despedir-se em definitivo da poesia, o que vimos, não aconteceu. Nele inclui o que chamou Canções do Mondego, com assuntos de alguma forma cristalizados na poesia oitocentista, e uma e outra vez repetidos nas versalhadas de memórias coimbrãs do passado. Entre eles as variadas visões de moças do povo, tricanas, fascínio dos estudantes universitários que todos os anos enchiam a cidade. Desse livro exumo parcialmente o poema A Vizinha, história de uma bela tricana, escrito em quadras rimadas de sete sílabas, transmitindo um sabor popular, adequado ao diz-que-disse das aparências e julgamentos sem base que o poema descreve.

 

 

A Vizinha

Se assomava entre os craveiros 

que o seu peitoril bordavam

todos na rua gabavam 

aqueles olhos trigueiros.

 

Cantava sempre, talvez 

para as mágoas espalhar,

porque assim faz, muita vez,

quem passa a vida a pensar.

 

E se havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

pois canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece”.

 

Quando os seus olhos erguia,

um momento, da costura, 

a luz que neles sorria 

era feita de amargura.

 

Um poeta enamorado 

da costureira vizinha, 

só para cantá-la tinha 

aulas e livros deixado.

 

E ouvi mesmo, — a quem não sei —

que um doutor de teologia, 

e velho doutor da Lei,

— profundo em quanto sabia —

 

de tal modo se prendera 

no encanto daquele olhar,

que, só de nele pensar,

— toda a ciência perdera.

 

Por ela — flor das trigueiras, 

entre as moças cobiçadas —

se ouviam noites inteiras 

descantes e guitarradas.

 

Mas ninguém lograra ainda 

descobrir a quem amava 

aquela tricana linda 

que à janela costurava.

…

 

Constou-me, no entanto, um dia 

que aquela doce morena 

com seu cantar encobria 

segredo de íntima pena, 

 

história triste… de amores 

que a morte cortara breve 

como uma chuva de neve 

crestando um campo de flores.

 

E ainda havia quem dissesse:

“Não leva vida de moura, 

se canta ao raiar da aurora 

e canta até que anoitece!”.

 

— Dá muita sentença louca 

quem dá de tudo razão,

pois muita vez canta a boca 

quando chora o coração.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Alexej von Jawlensky (1864-1941) Retrato de Rapariga (1909).

 

 

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Obscenidades poéticas oitocentistas

31 Sexta-feira Jul 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Brancusi, João Penha

Começo por clarificar o assunto subjacente ao título do artigo: as poesias que hoje transcrevo e qualifico como obscenas referem-se a práticas sexuais recorrendo a um vocabulário procaz, ou seja, um vocabulário que choca, ou talvez ofenda, apenas isso. Estão assim os leitores que prossigam avisados.

Comparada com outras literaturas, a produção poética antiga de conteúdo obsceno conhecida em português com um mínimo de qualidade formal, é escassa. Hoje, dessa escassez trago três exemplos.

Começo com uma espécie de manifesto por João Penha (1838-1919) sobre o primado da cópula em detrimento de outras práticas sexuais, poema até há pouco inédito. 

Escrito no que chamaria uma espécie de soneto curto, pois na métrica é uma redondilha menor, no desenvolvimento do assunto respeita a regra do soneto com apresentação do assunto, desenvolvimento, e conclusão ou chave de ouro. Isto em quatorze versos, dois quartetos e dois tercetos, com rima abab abba aba bab. Ei-lo:

*

A foda, a luxuria, 

No doce orifício 

Que terna lamúria, 

Que brando exercício! 

 

A mão, que penúria! 

O cú para o vicio 

Cono ficticio 

De Venus espúria. 

 

Ao leito morena, 

Requebros agora 

A noite é pequena. 

 

Meu Deus, que demora, 

Ó filha tem pena 

Da porra que chora. 

João Penha, 1879

 

Agora um soneto, diria canónico na forma: verso decassilábico, desenvolvimento do assunto dentro do esquema que referi acima, e a mesma sequência de rima. O assunto que hoje, em tempos de adolescência retardada, seria matéria de polícia, não espantaria o século XIX pela idade da protagonista.

 

Soneto

Linda pequena de quatorze estios, 

mas já crescida em corpo e maroteira,

co’a nivea mão de jaspe tão veleira*

dez caralhos por noite põe vazios.

 

Com que garbo ela embala os mais esguios!

Como ela afia os grossos prazenteira!

Ó!… Não há quem a branca pingadeira 

veloz tire com modos mais macios!

 

Um dia arremeteu-a tal furor 

ao sopesar um membro de pau-santo, 

que disse, erguendo as saias com ardor

 

e mostrando da porra o doce encanto:

— Mete-mo todo aqui, meu lindo amor

que é pra quando eu casar não custar tanto.

*rápida

Anónimo séc. XIX

 

À linearidade sexual acima descrita, acrescento um soneto de complexa leitura sexo-comportamental, certamente merecedora de divã psicanalítico.

Notável na originalidade da escrita e factura formal, apenas na sonoridade da língua hoje, a rima entre o primeiro e o quarto verso pode surgir menos consonante do que devia. Não sabemos se tal seria o caso à data da composição do poema.

 

Soneto

Dum frade franciscano aos sacros pés, 

Dizia de confesso a meia voz 

Um tal pintor de nome; e o frade a sós 

Saboreava o conto do freguês:

 

— A Vénus que pintei é duma vez,

É digna dum fodão tal como vós!…

Que imensa pentelheira!,… Aqui pra nós,

eu já me ponho nela há mais de um mês. 

 

— Mas…; valha-me S. Pedro, mais S. Brás!

(Rosna o frade coçando no nariz),

A porra não lhe doi? Isso não faz…

 

— Nada!…frei Julião, (o artista diz).

Não, que eu tenho cuidado em pôr atrás

o rechonchudo cu dum aprendiz.

Anónimo séc. XIX

 

Por hoje chega de escândalo para os leitores mais sensíveis ou austeros e selectivos sobre que deve tratar a poesia.

Abre o artigo a imagem de uma escultura de Constantin Brancusi (1876-1957), Princess X de 1915. Pretende-se que, apesar da forma fálica, a escultura evoca Marie Murat Bonaparte, o seu pescoço curvado e a cabeça, que constantemente olhava num espelho que transportava. Ironias que ajudam a sublinhar a variedade poética do artigo.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O cheiro de Lisboa e poesia popular a Santo António

14 Domingo Jun 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

≈ 5 comentários

Etiquetas

Augusto Gil, Francisco Xavier da Silva, J. Leite de Vasconcelos, Maria Helena Vieira da Silva

Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

…

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

…

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

…

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

…

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.

 

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Lisboa por Gomes Leal

03 Sexta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Gomes Leal

É a uma espécie de jogo veja as diferenças que convido os leitores, ao transcrever o poema Lisboa de Gomes Leal (1848-1921).
Retrato de uma capital fim de século, parente da visão deixada por Cesário Verde (1855-1886) em O sentimento dum ocidental, sem a amplidão e a reflexão pessoal deste, é, no entanto, um poema/retrato onde da alegria ao sórdido, com ênfase na sensualidade, a vida decorre.

 

O desafio enunciado é triplo: comparar os retratos da cidade de final de oitocentos pintados por Gomes Leal e Cesário Verde, por um lado, e por outro a capital cosmopolita de início do século XXI, e encontrar tanto continuidades como roturas que dão a medida de quanto o nosso tempo é diferente do passado, e simultaneamente como nele radica.

(Nota: O poema de Cesário Verde encontra-se algures no blog, acessível aqui)

Lisboa

De certo, capital alguma do Ocidente
Tem mais afável sol, ou um céu mais clemente,
Mais colinas azuis, rio d’águas mais mansas,
Mais tristes procissões, mais pálidas crianças,
Mais igrejas e cães — e vargens, onde a esteira
Seja em tardes d’estio a flor da laranjeira!

A cidade é garrida e esbelta de manhã! —
É mais alegre então, mais límpida, mais sã.
Com certo ar virginal ostenta suas graças…
Há vida, confusão, murmúrios pelas praças.
— E, às vezes, em roupão, uma violeta bela
Vem regar o craveiro e assoma na janela.

A cidade é beata — e, às lúcidas estrelas,
O vicio, à noite, sai aos becos e às ruelas
Sorrindo, a perseguir burgueses e estrangeiros…
E à triste e dubia luz dos baços candeeiros,
— Em bairos imorais, onde se dão facadas —
Corre às vezes o sangue e o vinho nas calçadas.

As mulheres são gentis. — Umas altas, morenas,
Graves, sentimentais, amigas de novenas,
Ébrias de devoções, relêem as suas Horas.
— Outras fortes, viris, os olhos cor d’amoras,
Os lábios sensuais, cabelos bons, compridos,
— Às vezes, por enfado, enganam os maridos!

Os burgueses banais são gordos, chãos, contentes,
Amantes de cupido, egoistas, indolentes,
Graves nas procissões, nas festas, e nos lutos.
Bastante sensuais, bastante dissolutos,
Mas humildes cristãos!.. e, em místicos momentos,
— Tendo, ainda, crueis saudades dos conventos!

Viciosa ela se apraz num sono vegetal,
Adversa ao Pensamento e contrária ao Ideal.
— Mas, mau grado assim ser viciosa, egoista, à lua,
Como Nero também dá concertos na rua,
E, em noites de verão quando o luar consola,
— Põe ao peito a guitarra e a lírica viola.

No entanto a sua vida é quase intermitente,
Chafurda na inação, feliz, gorda, contente.
E, eclipsando as acções dos seus navegadores,
Abrilhanta a batota e as casas de penhores.
Faz guerra à Vida, à Acção, ao Ideal!.. e ao cabo
— É talvez a melhor amiga do Diabo!

in Claridades do Sul, segunda edição revista e aumentada, Empresa da História de Portugal, Lisboa, 1901.
Modernizei a ortografia.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlos Botelho (1899-1982), Lisboa e o Tejo; Domingo, 1935, da colecção do Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado (MNACC).

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Bum, bum, bum, ressoam simbaloques — O absurdo e um soneto do início de oitocentos

01 Quarta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ 2 comentários

Temos o absurdo na realidade quando esta se mostra destituída de propósito, razão, ou sensatez, e temos a sua representação. A linguagem é um dos caminhos para essa representação do absurdo. Entre eles, vocabulário desconhecido no interior de um discurso gramaticalmente reconhecível, de mistura com palavras cuja função de comunicação é usual noutros contextos. A consequência é a insinuação no espírito de um entendimento outro, diferente do comum, de uma realidade padronizada, daí nos parecer absurda aquela abordagem ou a realidade que ela transcreve.
O absurdo não busca a adesão, apenas desafia a olhar diferente o adquirido como certo e estável.

Se na poesia experimental da segunda metade do século XX os exemplos de desmontar o absurdo no real através da linguagem abundam, na poesia antiga rareiam. Recolho numa colecção de poesias anónimas um desses raros exemplos. Trata o soneto em apreço de um acontecimento solene, presumivelmente em Lisboa, quando da ocupação francesa de Portugal no início do século XIX, enquanto rei e corte se encontravam refugiados no Brasil. Refere-se à comemoração do aniversário de Napoleão. Ofensiva para patriotas, a celebração teve o apoio de todos os aduladores do poder e dos que com a ocupação beneficiaram. No entanto, não é um indignado ou ofendido retrato do acontecido que o poema traz. O soneto, através de uma abundante variedade de vocábulos desconhecidos em português, mas evocadores de enorme chinfrineira, variadas defecções, e figuras de espavento, faz uma leitura metafórica da gratuitidade da celebração, transmitindo de forma eloquente o absurdo de tal cerimónia:

 

Soneto

De soleques, meliques, trapaloques,
Sulfúreos, sulfurantes, sulfurados,
Rotundos, salitrosos, cavornados,
Bum, bum, bum, bum, ressoam simbaloques:

Espaventos flamantes, trepiquoques,
Imbeles, infecundos, insolados,
Xenofes, xenofontes, xenofados,
Tripodeão berliques, e berloques:

Strangurio, scalponio, figurato,
Gerivasio de gimbo, que gambeia
Do zimborio de boreas, boreato.

Eis aqui o primor em que se arreia*
O dia natalicio celebrado
De um tal Napoleão em terra alheia.
***

*primor em que se arreia — primor com que se veste, associando-o à equipagem de gado cavalar.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do pintor chinês Fang Lijun (1963), 30 de Maio. Sobre o pintor e a sua obra, à falta de outras fontes ocidentais, a Wikipédia em inglês contém interessante informação baseada numa obra publicado em Itália.

Qualquer associação entre a imagem de abertura, o texto do artigo, e a fanfarra sobre o actual domínio chinês em sectores estratégicos da economia portuguesa, está completamente fora do meu propósito. Sabemos que oficialmente a China é apenas um parceiro económico de Portugal.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Ilusões do poeta/deputado oitocentista Diogo Macedo

27 Sábado Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Diogo Macedo

A vida tem destas coisas…
No bailado clássico Coppélia(1870), um rapaz enfeitiça-se por uma boneca de tamanho natural e feições vividamente humanas, qual robot da ficção dos nossos dias. É a namorada preterida que, substituindo a boneca, finge ganhar vida, e assim consegue trazer o rapaz à realidade.

A história dançada, com argumento a partir de dois contos de E. T. A. Hoffmann (1776-1822), foi muito popular à época e continua no repertório das companhias de bailado, incluindo a CNB.

Encontro uma reminiscência desta história num poema, Ilusões, de um obscuro poeta oitocentista, Diogo Macedo (1844-1938). O poema tem, no entanto, mais: é simultaneamente uma crítica de um embeiçamento por uma “boneca de sala” com os atributos femininos cantados pelos poetas da época, e um relato do encantamento pelas aparências. O todo contado com desenvoltura métrica e rítmica. O poema escolheu-o Camilo Castelo Branco para incluir no seu Cancioneiro Alegre. Aí faz uma breve apresentação do autor com a verve habitual, e que aproveito para transcrever:

Diogo de Macedo

É um dos bons poetas que esmalta o parlamento actual. São bastantes. Se se combinassem, poderiam dar o Diário das Câmaras em quintilhas, ou redigirem um lindo semanário intitulado A lyra de S. Bento, 10 reis, vale a pena. E outrosim ilustrarem o periódico com veras efígies dos Isócrates em grupos, e charadas e estudos sobre a língua para uso da casa. O snr. Macedo entra no parlamento com a fé robusta dos homens novos e com bom carcaz de adjectivos lancinantes.
Camilo Castelo Branco, in Cancioneiro Alegre.

Apresentado o poeta/deputado, eis o poema:

 

Ilusões

Ela, que eu não julgo feia,
possui a pupila azul
e dá sempre certa idéia
das filhas de John Buli.

Os bons pintores de França
coloriram-lhe o cabelo…
Que trança de ouro! que trança
se os seios não fossem gelo!

Seduz quando se lhe vê
do colo a brancura, e enfim
tem de alvos lirios o pé
e a mão é como um jasmim.

Ninguém no mundo presuma
sonhar beldade maior;
nasceu num lençol d’espuma
depois de um sonho de amor.

É pena ter, como a face,
o seio desfeito em neve:
por mais que à porta se passe
a sorrir jamais se atreve!

Esbanjei tempos imensos
no fervor de remirá-la
e, apesar dos meus incensos,
nunca chegámos à fala.

Por fim mais me aproximei
um dia pelo sol posto
e então com pasmo notei
que era pintura o seu rosto.

Fez-lhe o vestido a Férin
de um estofo um pouco espesso,
mas logo vi muito bem
uma boneca de gesso.

Uma boneca de sala,
inerte, desanimada,
sem luz, sem vida, sem fala,
uma boneca e mais nada!

 

Diogo Macedo, com poesias dispersas por jornais e revistas da época, e hoje perdidas, publicou em livro Noites d’Ocio, 1866, e terá publicado outro livro, em edição particular, Sonetos de um devoto das mudas, em final de vida. Encontro em Noites d’Ocio alguns poemas de fina ironia e escorreita versificação. Transcrevo uma escolha:

Começo com um auto-retrato:

 

O meu retrato

Nem alegre, nem triste em demasia,
Um pouco à folga*, um pouco ao ócio dado;
Amigo do dinheiro e apaixonado
Da mulher que o amor no peito cria;
Bom filho, bom irmão, e amigo e amante,
Fiel ao rei, fiel à pátria amada:
É assim que sou eu — pobre estudante,
Poeta em embrião, autor de … nada!

* brincadeira

 

Moço, e estudante, não faltaria o sonho do sexo, evidentemente, e ei-lo, neste

Amor feliz

Quem, neste mundo, é mais feliz do que eu?
             Um teu sorriso
             É para mim
             O paraíso;
             Um olhar teu
             Dá-me sem fim
             Gozos do céu…
Só falta — para a ventura ser maior —
Deixares que te leve nos meus braços
E fugirmos, voando nos espaços,
        Ao céu do amor!

 

Não sendo esta necessidade consumada com a destinatária do sonho, ei-lo nos braços de uma Amélia, prostituta:

A Amélia

Não negues, lira d’amor,
Mais um canto ao Trovador,
Que o trovador vai cantar;
As cordas presto afinemos
E não te importe onde entremos,
Seja templo ou lupanar!

És tu, mulher desgraçada,
Que vais hoje ser cantada,
Que inspiras o canto meu;
Ouve, escuta o trovador,
E fica certa que o amor
Me tornou amante teu.

Para ti um dia olhei
E em teu peito divisei
Que pulsava um coração;
Consultei o meu, e logo
Vi que lhe lançaste fogo
Nascendo nele a paixão…

Que me importava saber
Quem és ou podias ser,
Se era amar-te o gosto meu?
Nem me importa o que se diz,
Só me importa ser feliz
Sendo agora o amante teu!…

E sou feliz, na verdade,
Que mulher, anjo ou deidade,
Com seus olhos e sorrisos
Me daria amores tantos,
Venturas de mil encantos,
Gozos de mil paraísos?

Seja templo ou lupanar,
Sempre aqui virei sagrar
Meu afecto mais profundo;
Despreze-te o mundo embora,
És e serás, desde agora,
Quem mais amo neste mundo…

E porque não devo amar-te?
Devo acaso desprezar-te
Em vez de estender-te a mão?
Não sei de virgem ou donzela
Mais do que tu meiga e bela,
De mais alto coração!

Mas cala, lira, o teu canto,
Que de Amélia um olhar de encanto
Fascinou o trovador.
Já não tem voz pra cantar;
Tem só coração pra amar;
Deixa-o nos braços do amor!

 

Termino com a a memória de Camões nas Endexas a Bárbara Escrava : Eu nunca vi rosa / em suaves molhos / que para meus olhos / fosse mais formosa / …, reflectidas de passagem no poema O amor-perfeito:

O amor-perfeito

Entre as flores, ela um dia,
Passeava no jardim;
Ora olhava para mim,
Ora de mim se escondia.

Tinha um ramalhete ao peito
Das flores as mais viçosas;
Eram um lírio e duas rosas,
Um cravo e um amor-perfeito.

“Como é belo o teu jardim!
— Lhe disse eu, baixando os olhos —
“Nunca vi, em suaves molhos,
Rosas, cravo ou lírio assim.”

Então ela do seu peito
Uma flor me ofereceu.
Qual delas? — pergunto eu —
Responde ela: O amor-perfeito.

 

E com este amor-perfeito vindo do coração se conclui a viagem pela poesia esquecida de mais um obscuro poeta oitocentista.

 

Nota bio-bibliográfica

Não existindo notícia na net do homem, socorro-me da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira para deixar aqui alguns dados de biografia que completem o retrato pintado por Camilo, e acima transcrito.

Nasceu em Peso da Régua em 1844. Grave doença obrigou-o a abandonar os estudos em Coimbra. Recuperado, dedicou-se ao jornalismo e à literatura. Traduziu Corneille, Byron e Racine. Foi companheiro de Antero de Quental, João de Deus e Guerra Junqueiro, e deputado nas legislaturas de 1878 e 1879. Quando administrador do concelho de Peso da Régua, fundou o hospital D. Luís. Publicou, além da poesia referida no início, dois romances: Josefina, a Provinciana, e O Cristão Novo. Morreu em 1938.

Diogo de Macedo, Noites d’Ocio, Poesias, Porto, Typographia Portuense, 1866.
Cancioneiro Alegre de Poetas Portugueses e Brasileiros, 2 vol., 2.ªed., Livraria Internacional de Ernesto Chardron, 1887.

Acompanha o artigo a imagem de uma pintura de Henri Gervex (1852-1929), Rolla, de 1878, pertença da colecção do museu d’Orsay em Paris.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

António Feliciano de Castilho e o macaco janota

31 Domingo Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Feliciano de Castilho

Para recreio de alguns leitores que apreciam dar folga à transcendência, trago vez por outra, poesia de autores obscuros, uns, esquecidos e ilustres no seu tempo, outros.
Hoje uma ironia poética de António Feliciano de Castilho (1800 -1875), As Metamorfoses do Macaco.

No poema, António Feliciano de Castilho entretém-se, e nós com ele, a brincar com O Janota:

…
Mira-se, exulta. Só nota
Perfeições no todo seu.
Hoje chamam-lhe “janota”,
Bicho incógnito a Lineu.
(*)

 

Com elegância, para evitar o desprimor de alguns dos seus contemporâneos, A. F. Castilho evita um nome comum, chamando ao seu macaco janota, Jacó.

Servindo-se da sua proverbial mestria versificatória e rítmica, António Feliciano de Castilho dá-nos em quadras heptassilábicas de rima abab nunca repetida, uma pérola de graça e inocência satírica. Nele lemos uma caricatura acerba de quem se desgosta da sua pessoa e procura por todos os meios noutro se transformar.

Acrescento no final um pequeno glossário para elucidação de alguns vocábulos no poema que me pareceram de inteligência menos comum ao leitor de hoje, ainda que o seu significado decorra com facilidade da leitura.

 

 

As Metamorfoses do Macaco

Jacó, flor das raças monas
E aluno de um piemontês,
Fazia entre mil gaifonas
Coisas que o demo não fez.

Quanto via, arremedava
Por modo tão natural,
Que o piemontês lhe chamava
Daguerreótipo animal.

Se falasse assombraria;
Porém, mesmo sem falar,
Em toda a macacaria
Era um bichinho sem par.

Um dia em certa barraca
De uma feira, onde brilhou,
Com arte mais que velhaca,
Lustroso espelho empalmou.

Viu-se; pasmou. «Que diabo!
Pois eu tenho a cara assim?!
Ó bruxas, de mim dai cabo,
Ou condoei-vos de mim!

Machuchas mestras de tretas,
Se cabe em vós pio dó,
Deixai-me o dom das caretas,
No mais transformai Jacó.»

Bruxinha de génio gaio
Despachou-lhe a petição.
Eis, o mono, papagaio!
Eis nova consumição!

«O meu falar é mui rico!
Quanto às penas, guapo estou!
Mas este bico!… este bico!
Quem tal ratice inventou?!

Bruxa honrada! eu to aconselho,
Vá nova transformação.»
Diz: torna a encarar o espelho…
Vê-se estrelado pavão!

Espaneja-se garboso!
Ama-se; está como um dez.
Senão quando… ai, desditoso!
Repara… que horrendos pés!

Novo rogo impertinente:
«Por esta vez, e não mais»,
Diz a velha impaciente,
«Quero ceder aos teus ais.

Do que tu mesmo aprovaste
Nas três formas que te dei,
Para teu consolo baste,
Que esta final te armarei;

Terás as visagens ricas,
O papagaial palrar;
Do pavão as galas ricas…
Pegar no espelho! mirar!»

Mira-se, exulta. Só nota
Perfeições no todo seu.
Hoje chamam-lhe «janota»,
Bicho incógnito a Lineu.
(*)

 

(*) Glossário
Dez —Eestá como um dez: sente-se o máximo.
Empalmar — Furtar com destreza.
Gaifona — Trejeito.
Gaio — Alegre, Jovial, Folgazão.
Janota — Aqui usado no sentido de Peralta: indivíduo afectado nos modos ou trajes.
Lineu — Inventor da classificação das espécies vivas.
Machuchas — Diz-se de pessoas que têm influência.
Mono — Macaco.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Otto Dix (1891-1969), O negociante Max Roesberg, de 1922.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Recepções de Inverno — Um quadro aristocrático pelo Conde de Monsaraz

12 Terça-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

António Macedo Papança, Conde de Monsaraz, John Singer Sargent

A vida mundana e de sociedade alta, mesmo na poesia antiga, não foi pretexto para invenções poéticas frequentes. De Gomes Leal (1848-1921) temos o fabuloso retrato da Senhora Duquesa de Brabante, mais psicológico que mundano. António Macedo Papança (1852-1913), mais tarde Conde de Monsaraz, rapaz e homem rico, a quem a fortuna, e aproveitar as suas benesses, não parece ter perturbado, deixou na sua obra poética pontuais retratos aristocráticos, alguns em grande voga à época, como A Arquiduquesa, por exemplo.

Mundo extinto de que hoje apenas a literatura dá conta, recupero entre a poesia do Conde de Monsaraz um quadro aristocrático: Recepções de Inverno.

 

Recepções de Inverno

Em Dezembro é na estufa que a Marquesa
                Recebe às quintas-feiras,
Sob os leques dormentes das palmeiras,
No ambiente abafadiço dos fogões,
As pessoas de suas relações.

A estufa é alta, quadrilonga e clara;
Os bustos e as estátuas de Carrara,
Tocadas pelo escopro florentino,
Branquejam na folhagem verde-escura;
Adivinha-se o gosto e a compostura
Dum paladar meticuloso e fino.

As orquídeas de rútilos matizes,
Os cóleos e as begónias do equador,
Fartas de seiva e imóveis no torpor
              Dos vegetais felizes,

As avencas do norte e os largos fetos
              Duma suprema graça,
Onde se aninha o beijo que esvoaça
Na sombra dos recantos predilectos,

Revelam no salão por toda parte
               A distinção, a arte
               E a verve sedutora
               Dessa gentil senhora.

Nas festas da Marquesa toda a gente
               Se esforça por mostrar
Que é íntimo da casa, ou que é parente
               Da ilustre titular.

E ela passa por entre os convidados,
               Risonhos e curvados
               Defronte do espelhos,
Prodigamente desfolhando frases
Que animam os desejos dos rapazes
               E as ilusões dos velhos!

O busto firme e decotado; o rosto
               É uma graça vê-lo!
Nunca teve na vida um só momento
Em que o toldasse a sombra dum desgosto
Ou o fantasma trágico e sangrento
               De qualquer pesadelo.

As mulheres odeiam-na; pudera!
               A inveja corrói-as,
Ante essa apetecida Primavera
De colo nu, a transbordar de jóias,
E que arrasta, ondulando como as cobras,
A longa cauda de insolentes dobras.

Não lhe perdoam essas três virtudes:
O espírito, a beleza e a mocidade;
               Três coisas, na verdade,
                Que mordem, como abelhas,
As feias, as estúpidas e as velhas.

A Marquesa, porém, pouco lhe importa
                Que a boca da calúnia
                 Lhe vá gritar à porta;
Ela encara-a de frente, à luz do dia,
O seu olhar fulmina-a, e a ironia
                 Do seu sorriso pune-a!

Que lindas festas no palácio dela!
E é das mais procuradas distinções
                A entrada nos salões
Dessa mulher, tão caprichosa e bela.

                Ali nunca se dança,
                O que muito incomoda
As raparigas cujas mães consentem
Que andem nas salas de cabeça à roda
                E apertadas nos braços
Duns  jovens e finíssimos devassos!

Conversa-se e discute-se entre as flores;
Um quinteto de exímios professores
               À distância executa
Trechos da mais correcta procedência
               Que pulsam na regência
Duma ardente e fantástica batuta.

A estufa comunica por arcadas
               Com os vastos salões,
Galerias de telas afamadas,
               Apenas admiradas
Por um ou outro artista que frequenta
               Aquelas recepções .

Dispersas sobre os móveis, em vitrinas,
Mil coisas antiquíssimas e raras:
As velhas jóias da família, as rendas,
Os esmaltes, as pratas estupendas
               E as porcelanas caras.

Ao fundo a sala do bufete. As portas
               Abrem-se geralmente
À meia noite; e toda aquela gente
A invade num tropel que se baseia
Nessa suprema aspiração: — a ceia!

………………………………………………………

Mas nessas noites, que a Marquesa esmalta
Duma antiga e fidalga polidez,
Falta alguém, que afinal nunca faz falta:
Um fantoche tristíssimo — o Marquês!

in Poesias, 1892.

 

Acompanha o artigo a imagem de uma pintura de John Singer Sargent (1856-1925), Retrato de Madame X, pintado em 1883-84, e pertença da colecção do Metropolitan Museum of New York. A dama pintada é Madame Gautreau.

Vale a pena fazer um pouco da história da pintura e da modelo.
A pintura, exibida no Salon de Paris de 1884, como retrato de MadameXXX, não iludiu ninguém sobre a identidade da retratada, dama da alta sociedade. Considerado ousado para o cânone do retrato de sociedade à época, foi tal o escândalo — “rodeado por cardumes de atónitas e repugnadas mulheres” nas palavras de Vernon Lee (*)—, que o pintor, americano em Paris, deixou a França definitivamente, partindo para Inglaterra onde teve retumbante sucesso entre a sociedade vitoriana. Conservou o quadro consigo até o vender ao Metropolitan Museum em 1916, pedindo ao museu que não identificasse a modelo. Ficou por isso a pintura conhecida como retrato de Madame X.

Madame Gautreau (1859-1915), de solteira Virginie Avegno, nasceu na Louisiana. Por morte do pai na guerra civil, aos três anos a mãe deixou definitivamente os EUA e instalou-se em Paris com as duas filhas. Em 1881 Virginie casou com o banqueiro Pierre Gautreau.
Era à época uma celebrada beleza. Leiamos o que sobre ela escreveu um americano, Edward Simmons, estudante em Paris ao tempo: Lembro-me de ver Madame Gautreau, a famosa beleza da altura, e não conseguir resistir a segui-la silenciosamente como se segue um veado. Andava como Vergílio fala das deusas — deslizando — e parecia não dar passos. A cabeça e o pescoço ondulavam como uma jovem corsa, e qualquer coisa nela dava-nos a impressão de proporção infinita, infinita graça, e infinito balanço. Todos os artistas a queriam plasmar em mármore ou pintura (*).

(*) Americans in Paris (1860-1900), National Gallery Company Limited, London, 2006.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Saudade! Gosto amargo de infelizes

11 Segunda-feira Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Almeida Garrett, António Botto, Bernardim Ribeiro, Bernardo de Passos, Fernando Pessoa, Geza Voros, Marquesa de Alorna, Sebastião da Gama

Saudade, que vos farei?
Pois vos não posso deixar,
por descanso vos busquei:
achei-vos para cansar.
…
(*)

 

A saudade, esse impalpável desejo do que se perdeu, por nós anda, associado à tristeza e ao desgosto.
Subtil e imprecisa, é a palavra perfeita para o complexo de sentimentos que nos assaltam no tempo, ao avivar de recordações e memórias, de pessoas, acontecimentos e lugares, com quem e onde fomos felizes.

Ó sino da minha aldeia,
…
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.
(**)

 

A saudade passa na poesia sem cessar, por vezes de forma consciente e explícita. São sem fim os poemas onde ela transparece.
Se titulei o artigo com um verso de um poema de Almeida Garrett (1799-1854):

Saudade! Gosto amargo de infelizes.
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor que os seios d’alma dilacera,
— Mas dor que tem prazeres — Saudade!

 

agora recuo um pouco no tempo, à poesia de métrica precisa, melodia irresistível, e pendor filosofante da Marquesa de Alorna (1750-1839), de quem não há muito trouxe ao blog uma glosa sobre a saudade.

 

Marquesa de Alorna — Sem título

Sozinha no bosque
com meus pensamentos,
calei as saudades,
fiz trégua a tormentos.

Olhei para a lua,
que as sombras rasgava,
nas trémulas águas
seus raios soltava.

Naquela torrente
que vai despedida
encontro, assustada,
a imagem da vida.

Do peito em que as dores
já iam cessar,
revoa a tristeza,
e torno a penar.

 

Quando a memória o consente, nem sempre a saudade será tristeza, o que Sebastião da Gama (1924-1952) capta no poema Lembrança:

 

Lembrança

Foi naquela tarde,
já distante…

Mas foi tão nítido e tão vivo,
Amor!, o beijo que me deste,
que não consegue ser saudade.

Flor cálida, vermelha flor tenrinha
que nos lábios contentes me deixaste…

Triste, já o Outono se avizinha.

Só essa flor não quer tombar da haste…

 

Deixo-o agora, leitor, com dois poemas em que saudade e melodia do verso se enlaçam, ajudando com isso a sossegar as almas que a saudade atravessa.

Primeiro um poema de Bernardo de Passos (1876-1930), deliciosa brincadeira à volta da palavra pena: pena (desgosto) e pena (revestimento das aves):

 

Saudades…

Saudades de amor são penas
que nascem do coração…
É como a pena das aves,
quanto mais, mais brandas são!

Meu coração fez um ninho
como o das aves, perfeito,
juntando todas as penas
de que ele me encheu o peito…
E nesse ninho, a sonhar,
dorme, assim, horas serenas,
como dorme um passarinho
sobre o seu ninho de penas…

 

E por fim, uma canção de António Botto (1897-1959) escrita com uma mestria de sabor popular:

 

Canção

De saudades vou morrendo
E na morte vou pensando;
Meu amor, porque partiste
Sem me dizer até quando?
Na minha boca tão triste
Ó alegrias cantai!
Mas quem acode ao que eu digo?
— Enchei-vos d’água meus olhos,
Enchei-vos d’água, chorai!

 

Encerro este longo artigo com esperança, esperança de que, qual flor, a saudade há-de murchar como anseia a Marquesa de Alorna neste poema final:

 

Saudade

A uma flor chamam Saudade,
Que é primor da natureza;
Mas a que nasce em meu peito
É produção da tristeza.

Enquanto a saraiva, os Notos
Destes gelados países
Açoutam as plantas, cresce,
Lança profundas raízes;

Mas se um dia, transplantada,
Outro terreno buscar,
Alívio terá meu peito,
E a saudade há-de murchar.

 

Notas:
(*) Atribuído a Bernardim Ribeiro no manuscrito da Biblioteca Nacional de Lisboa, (cód. 11353).
(**) Fernando Pessoa, 1ª publ. in Renascença. Lisboa: Fev. 1924.
Os restantes poemas encontra-os o leitor em A Saudade na Poesia Portuguesa, seleção e prefácio de Urbano Tavares Rodrigues, Portugália editora, 1967.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Geza Voros (1897-1957), Mulher em vermelho, de 1933.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo

11 Sexta-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa sec XIX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Francesco Hayez, Gonçalves Crespo, Heinrich Hein

Nem todos reagimos da mesma forma aos acontecimentos. A exteriorização dos sentimentos que nos assaltam é nuns matéria de reserva, noutros histriónica manifestação. No entanto, para algumas situações tipo há sempre reações que social e psicologicamente se esperam, permitindo aos outros medir a extensão do efeito em nós do que nos atinge, seja na alegria como no desgosto. Para um par apaixonado, forçado à separação, o visível desgosto, se não desespero, tristeza ou desolação, é o que se espera que mostrem.
É nessa expectativa, e no seu não acontecer, que o poema de Heinrich Heine (1797–1856) que escolhi, e a correspondente paráfrase por Gonçalves Crespo (1846-1883) se desenvolvem.
Na primeira quadra os poemas referem a expectativa comum numa separação de apaixonados indivíduos, na segunda quadra os poemas remetem para um tempo posterior à separação o aflorar da sua dor que a separação traz.

 

O poema de Heinrich Heine é o número XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823. A paráfrase de Gonçalves Crespo ao poema desenvolve e explícita o que o curto poema de Heine trazia implícito. No final acrescento uma minha transposição rimada do poema para português, tanto quanto possível fiel ao original, para permitir identificar os acréscimos introduzidos por Gonçalves Crespo na sua paráfrase.

 

 

Paráfrase de Gonçalves Crespo a um poema de Heinrich Heine

 

No momento do adeus sucede que os amantes
Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes.
Força é força partir; a mão prende-se à mão,
E uma infinda tristeza inunda o coração.

Para nós, meu amor, nessa hora de agonia
Não houve o padecer que as almas excrucia;
Foi grave o nosso adeus e frio, e só agora
É que a dor nos subjuga, e a angústia nos devora.

 

 

 

Poema original de Heinrich Heine

 

Wenn zwei voneinander scheiden,
So geben sie sich die Händ,
Und fangen an zu weinen,
Und seufzen ohne End.

Wir haben nicht geweinet,
Wir seufzten nicht weh und Ach!
Die Tränen und die Seufzer,
Die kamen hintennach.

 

Poema XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823.

 

 

Transposição rimada para português do poema de Heinrich Heine

Intermezzo lírico XLIX

Ao separar-se, as mãos
costumam dar-se os amantes
e desfazerem-se em prantos
e suspiros incessantes.

Mas entre nós não chorámos
nem ais nem queixas lançámos
só bem mais tarde chegaram
as lágrimas e o desgosto.

 

Transposição por Carlos Mendonça Lopes.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do italiano Francesco Hayez (1791-1882), O Beijo de 1859.

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...
← Older posts

Visitas ao Blog

  • 2.038.883 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 873 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo
  • Eugénio de Andrade — Green god

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 873 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: