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Category Archives: Poesia de Língua Alemã

Pessoa, Lessing, e um soneto setecentista de reflexão agnóstica sobre a morte

10 Terça-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa Contemporânea

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Fernando Pessoa, Gotthold Ephraim Lessing, H. Bosch, Ingmar Bergman, Jan Provost, Manuel Rodrigues Maia

Provavelmente, mais que em qualquer época anterior, enfrentar a reflexão sobre o medo da morte, que não o medo de morrer, é acto de que se foge a sete pés. E, no entanto, ela, a morte, está sempre como possibilidade enquanto se vive. Morrer, é possível de muitas maneiras, e essa variedade retira acuidade à sua reflexão. Morrer é o caminho, a morte é o final. Ter medo da morte é viver em pânico constante, e este medo impedirá amar a vida mais. 

Fernando Pessoa enuncia a vantagem de pensar sobre a morte com a peculiaridade habitual: 

 

Quando, com razão ou sem,

Sobre o medo amplo da alma

A sombra da morte vem,

É que o espírito vê bem,

Com clareza mas sem calma,

Que sombra é a vida que passa,

Que mágoa é a vida que cessa,

E ama a vida mais.

10-2-1933

 

Após este prelúdio, passemos ao assunto de hoje: dois testemunhos poéticos setecentistas sobre como enfrentar a morte. No primeiro poema encontramos a desassombrada afirmação:

…

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

…

 

No segundo poema, o medo da morte é declarado, e iremos assistir a uma negociação para a adiar:

Ontem — crē-lo-eis amigo?

…

Vem a morte ter comigo.

…

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

…

 

 

Lia eu uma colecção de sonetos antigos e deparei-me com alguns sonetos sobre a morte. Num dos poemas, um soneto assinado Maia, talvez de Manuel Rodrigues Maia (?-1804) encontrei, não a reflexão filosófica em filme de Ingmar Bergman no seu O Sétimo selo que acabara de rever: indagação alegórica sobre o sentido da vida e o silêncio de Deus, onde a morte se personifica na figura assustadora que nos persegue em vida, e ter-lhe medo ou não, condiciona-nos inevitavelmente a existência; mas uma sua descrição em palavras que dá a medida desse monstro terrível que ninguém quer conhecer, e que ao morrer figuradamente se materializa:

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

…

 

Não estamos, evidentemente, perante a reflexão platónica sobre a morte a pretexto da morte de Sócrates, abordado por Platão no diálogo Fedon, nem sequer sobre a estóica reflexão desenvolvida por Cícero num dos Diálogos em Túsculo. Antes encontramos no resto do poema uma veemente defesa epicurista da vida pelo prazer. No soneto, que à frente transcrevo na totalidade, o nosso poeta setecentista aceita a chegada da morte sem arrependimentos de última hora:

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

 

O interessante no poema prende-se com a época em que foi escrito, o século XVIII. Época de profunda crença religiosa, e temor do além-vida pelo castigo dos pecados cometidos, afoitamente salpicada de agnósticos e ateus. No poema encontramos uma manifestação absoluta de agnosticismo, sem proclamações doutrinárias sobre a vida além-morte, tão só a afirmação da supremacia dos prazeres da vida sobre o horror da morte. Eis o soneto na totalidade:

 

 

Soneto

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

 

— Ah! chega, chega à misera morada, 

Aproxima teu gesto carrancudo; 

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

 

Eis-me convulso já; a voz perdendo; 

Ao lado um padre tolo, meu vizinho, 

E eu querendo me rir porém morrendo! 

 

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

Manuel Rodrigues Maia (?)

 

 

É diferente o que pela mesma época o poeta e filósofo do iluminismo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) nos traz no poema tangencialmente faustiano Der Tod (A Morte). Deixando também de lado as questões de além-morte, é o desejo absoluto de continuar a viver, a motivação do protagonista e assunto do poema. Mostra ele uma conversa fantasiada com a morte, ao chegar a sua hora:

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

…

 

Para o impedir propõe o poeta à morte outras vidas em troca dos prazeres do vinho e do amor até à saciedade:

…

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

…

 

Este desenlace é motivo de júbilo pois o poeta acredita que … Já de vinho e beijos farto. nunca estará, conseguindo assim vida eterna:

…

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

 

Na aparente ligeireza dos argumentos que dão sentido à vida, vamos encontrar a postura edonista dos nossos dias de que viver a vida vale a pena se for para ter prazer. E no caminho, para o conseguir, vale tudo.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing

A Morte

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

 

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

 

C’um sorriso vinho bota,

Diz, erguendo o copo ao ar:

“Viva a Peste! e a virar.”

E dum trago vaso esgota.

 

Eu já quite me julgava,

Eis que torna ela a dizer:

“Pobre louco! e podes crer

 Que por vinho te largava?”

 

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

 

— “Que suave linguagem!

Que nova vida me dais!

Vá um copo, um copo mais 

À nossa camaradagem!” 

 

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

Tradução de José Gomes Monteiro (séc.XIX)

 

 

E com estas reflexões brincadas sobre a morte termino, deixando o original do poema de G. E. Lessing recolhido na net, e que, espero, esteja correcto.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing 

 

Der Tod

 

Gestern, Brüder, könnt ihrs glauben?

Gestern bei dem Saft der Trauben,

(Bildet euch mein Schrecken ein!)

Kam der Tod zu mir herein.

 

Drohend schwang er seine Hippe,

Drohend sprach das Furchtgerippe:

Fort, du teurer Bacchusknecht!

Fort, du hast genug gezecht!

 

Lieber Tod, sprach ich mit Tränen,

Solltest du nach mir dich sehnen?

Sieh, da stehet Wein für dich!

Lieber Tod verschone mich!

 

Lächelnd greift er nach dem Glase;

Lächelnd macht ers auf der Base,

Auf der Pest, Gesundheit leer;

Lächelnd setzt ers wieder her.

 

Fröhlich glaub′ ich mich befreiet,

Als er schnell sein Drohn erneuet.

Narre, für dein Gläschen Wein

Denkst du, spricht er, los zu sein?

 

Tod, bat ich, ich möcht′ auf Erden

Gern ein Mediziner werden.

Laß mich: ich verspreche dir

Meine Kranken halb dafür.

 

Gut, wenn das ist, magst du leben:

Ruft er. Nur sei mir ergeben.

Lebe, bis du satt geküßt,

Und des Trinkens müde bist.

 

O! wie schön klingt dies den Ohren!

Tod, du hast mich neu geboren.

Dieses Glas voll Rebensaft,

Tod, auf gute Brüderschaft!

 

Ewig muß ich also leben,

Ewig! denn, beim Gott der Reben!

Ewig soll mich Lieb′ und Wein,

Ewig Wein und Lieb′ erfreun!

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do holandês Jan Provost (1465-1529), A morte e o avarento. Termino com a imagem da pintura do mesmo nome de H. Bosch (1450-1516), feita pela mesma época, e cuja imagem segue:

 

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A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo

11 Sexta-feira Jan 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa sec XIX

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Francesco Hayez, Gonçalves Crespo, Heinrich Hein

Nem todos reagimos da mesma forma aos acontecimentos. A exteriorização dos sentimentos que nos assaltam é nuns matéria de reserva, noutros histriónica manifestação. No entanto, para algumas situações tipo há sempre reações que social e psicologicamente se esperam, permitindo aos outros medir a extensão do efeito em nós do que nos atinge, seja na alegria como no desgosto. Para um par apaixonado, forçado à separação, o visível desgosto, se não desespero, tristeza ou desolação, é o que se espera que mostrem.
É nessa expectativa, e no seu não acontecer, que o poema de Heinrich Heine (1797–1856) que escolhi, e a correspondente paráfrase por Gonçalves Crespo (1846-1883) se desenvolvem.
Na primeira quadra os poemas referem a expectativa comum numa separação de apaixonados indivíduos, na segunda quadra os poemas remetem para um tempo posterior à separação o aflorar da sua dor que a separação traz.

 

O poema de Heinrich Heine é o número XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823. A paráfrase de Gonçalves Crespo ao poema desenvolve e explícita o que o curto poema de Heine trazia implícito. No final acrescento uma minha transposição rimada do poema para português, tanto quanto possível fiel ao original, para permitir identificar os acréscimos introduzidos por Gonçalves Crespo na sua paráfrase.

 

 

Paráfrase de Gonçalves Crespo a um poema de Heinrich Heine

 

No momento do adeus sucede que os amantes
Se abraçam, a chorar, com vozes soluçantes.
Força é força partir; a mão prende-se à mão,
E uma infinda tristeza inunda o coração.

Para nós, meu amor, nessa hora de agonia
Não houve o padecer que as almas excrucia;
Foi grave o nosso adeus e frio, e só agora
É que a dor nos subjuga, e a angústia nos devora.

 

 

 

Poema original de Heinrich Heine

 

Wenn zwei voneinander scheiden,
So geben sie sich die Händ,
Und fangen an zu weinen,
Und seufzen ohne End.

Wir haben nicht geweinet,
Wir seufzten nicht weh und Ach!
Die Tränen und die Seufzer,
Die kamen hintennach.

 

Poema XLIX de Lyrisches Intermezzo 1822–1823.

 

 

Transposição rimada para português do poema de Heinrich Heine

Intermezzo lírico XLIX

Ao separar-se, as mãos
costumam dar-se os amantes
e desfazerem-se em prantos
e suspiros incessantes.

Mas entre nós não chorámos
nem ais nem queixas lançámos
só bem mais tarde chegaram
as lágrimas e o desgosto.

 

Transposição por Carlos Mendonça Lopes.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do italiano Francesco Hayez (1791-1882), O Beijo de 1859.

 

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Um Homem Fala — Gottfried Benn

04 Segunda-feira Set 2017

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Alemã

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Gottfried Benn

O que conhecemos, o que sabemos, o que sentimos, é sempre singular e diverso na sua apreensão pessoal, como diversa é a forma de o transmitir; mas o instrumento de excelência dessa comunicação é a palavra.
É a palavra que nos permite ter a consciência detalhada do mundo que nos envolve, ou como diz o poeta de hoje, Gottfried Benn, vácuo espaço entre mim e o mundo, e dessa apreensão dar aos outros conhecimento. Seja discurso, conversa, ou poesia, o propósito é sempre igual: dar voz a um conhecimento, e consciência dele, que importa ou apetece transmitir. E o instrumento é sempre o mesmo: a palavra.


Em dois poemas de Gottfried Benn (1886-1956) que a seguir transcrevo, é exactamente sobre esse propósito essencial que o poeta reflecte. Outras linguagens que não a palavra existem, todos o sabemos, mas nenhuma outra reúne a capacidade do detalhe e variação de perspectiva que a palavra, através do discurso articulado, permite.

 

 

Um Homem Fala

 

Aqui não há consolo. Vê, como a terra
acorda também de suas febres.
Mal brilham ainda algumas dálias. Está devastada
como depois de uma batalha a cavalo.
Oiço a abalada no meu sangue.
Tu — meus olhos bebem já
os azuis das colinas distantes.
Algo toca de leve as minhas fontes.

 

Tradução de Vasco Graça Moura
in Gottfried Benn, 50 Poemas, Relógio d’Água, Lisboa, 1998.

 

 

 

“Ein wort…“

 

Uma palavra vem — dos signos brota
apercebida vida, abrupto senso,
o sol detêm-se, esferas são silentes,
e tudo se concentra à sua volta.

 

Uma palavra — brilho, voo, fogo,
língua de chama, estrela cadente
— e a treva monstruosa que regressa
no vácuo espaço entre mim e o mundo.

 

 

Tradução de Jorge de Sena
in Poesia do Século XX, Antologia, prefácio e notas de Jorge de Sena, Fora do Texto, Coimbra, 1994.

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