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vicio da poesia

Category Archives: Poesia Portuguesa Contemporânea

Pessoa, Lessing, e um soneto setecentista de reflexão agnóstica sobre a morte

10 Terça-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Alemã, Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa Contemporânea

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Fernando Pessoa, Gotthold Ephraim Lessing, H. Bosch, Ingmar Bergman, Jan Provost, Manuel Rodrigues Maia

Provavelmente, mais que em qualquer época anterior, enfrentar a reflexão sobre o medo da morte, que não o medo de morrer, é acto de que se foge a sete pés. E, no entanto, ela, a morte, está sempre como possibilidade enquanto se vive. Morrer, é possível de muitas maneiras, e essa variedade retira acuidade à sua reflexão. Morrer é o caminho, a morte é o final. Ter medo da morte é viver em pânico constante, e este medo impedirá amar a vida mais. 

Fernando Pessoa enuncia a vantagem de pensar sobre a morte com a peculiaridade habitual: 

 

Quando, com razão ou sem,

Sobre o medo amplo da alma

A sombra da morte vem,

É que o espírito vê bem,

Com clareza mas sem calma,

Que sombra é a vida que passa,

Que mágoa é a vida que cessa,

E ama a vida mais.

10-2-1933

 

Após este prelúdio, passemos ao assunto de hoje: dois testemunhos poéticos setecentistas sobre como enfrentar a morte. No primeiro poema encontramos a desassombrada afirmação:

…

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

…

 

No segundo poema, o medo da morte é declarado, e iremos assistir a uma negociação para a adiar:

Ontem — crē-lo-eis amigo?

…

Vem a morte ter comigo.

…

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

…

 

 

Lia eu uma colecção de sonetos antigos e deparei-me com alguns sonetos sobre a morte. Num dos poemas, um soneto assinado Maia, talvez de Manuel Rodrigues Maia (?-1804) encontrei, não a reflexão filosófica em filme de Ingmar Bergman no seu O Sétimo selo que acabara de rever: indagação alegórica sobre o sentido da vida e o silêncio de Deus, onde a morte se personifica na figura assustadora que nos persegue em vida, e ter-lhe medo ou não, condiciona-nos inevitavelmente a existência; mas uma sua descrição em palavras que dá a medida desse monstro terrível que ninguém quer conhecer, e que ao morrer figuradamente se materializa:

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

…

 

Não estamos, evidentemente, perante a reflexão platónica sobre a morte a pretexto da morte de Sócrates, abordado por Platão no diálogo Fedon, nem sequer sobre a estóica reflexão desenvolvida por Cícero num dos Diálogos em Túsculo. Antes encontramos no resto do poema uma veemente defesa epicurista da vida pelo prazer. No soneto, que à frente transcrevo na totalidade, o nosso poeta setecentista aceita a chegada da morte sem arrependimentos de última hora:

…

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

 

O interessante no poema prende-se com a época em que foi escrito, o século XVIII. Época de profunda crença religiosa, e temor do além-vida pelo castigo dos pecados cometidos, afoitamente salpicada de agnósticos e ateus. No poema encontramos uma manifestação absoluta de agnosticismo, sem proclamações doutrinárias sobre a vida além-morte, tão só a afirmação da supremacia dos prazeres da vida sobre o horror da morte. Eis o soneto na totalidade:

 

 

Soneto

 

Ui! como é feia, torpe, e descarnada; 

Dente tão negro, queixo tão pontudo! 

Traz na direita o ferro pontiagudo, 

Curva foice fatal, forte e farpada! 

 

— Ah! chega, chega à misera morada, 

Aproxima teu gesto carrancudo; 

Eu te espero tranquilo, afoito, e mudo, 

És muito para os mais, comigo és nada. 

 

Eis-me convulso já; a voz perdendo; 

Ao lado um padre tolo, meu vizinho, 

E eu querendo me rir porém morrendo! 

 

Vem, ó morte, não pares no caminho, 

Se outra vez cá vier, achar pertendo 

Mais dinheiro, mais moças, e mais vinho.

 

Manuel Rodrigues Maia (?)

 

 

É diferente o que pela mesma época o poeta e filósofo do iluminismo alemão Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781) nos traz no poema tangencialmente faustiano Der Tod (A Morte). Deixando também de lado as questões de além-morte, é o desejo absoluto de continuar a viver, a motivação do protagonista e assunto do poema. Mostra ele uma conversa fantasiada com a morte, ao chegar a sua hora:

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

…

 

Para o impedir propõe o poeta à morte outras vidas em troca dos prazeres do vinho e do amor até à saciedade:

…

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

…

 

Este desenlace é motivo de júbilo pois o poeta acredita que … Já de vinho e beijos farto. nunca estará, conseguindo assim vida eterna:

…

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

 

Na aparente ligeireza dos argumentos que dão sentido à vida, vamos encontrar a postura edonista dos nossos dias de que viver a vida vale a pena se for para ter prazer. E no caminho, para o conseguir, vale tudo.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing

A Morte

 

Ontem — crē-lo-eis amigo?

Dando-me ao rubro licor, 

(Imaginai meu terror!)

Vem a morte ter comigo.

 

Brandindo a foice dest’arte

Brada o fantasma cruel:

“Servo de Baco fiel!

Vem! Tens bebido que farte.” 

 

E eu chorando: “Ó cara Morte 

Já vos eu apeteci?

Tomai um copo daí 

Não deis inda o fatal corte.”

 

C’um sorriso vinho bota,

Diz, erguendo o copo ao ar:

“Viva a Peste! e a virar.”

E dum trago vaso esgota.

 

Eu já quite me julgava,

Eis que torna ela a dizer:

“Pobre louco! e podes crer

 Que por vinho te largava?”

 

— “Ah! suspende por piedade;

Medicina estudarei 

E juro que te darei 

De meus doentes metade.”

 

— “Está dito: sem ti me parto,

Bebe e beija até fartar,

Vir-te-hei depois buscar,

Já de vinho e beijos farto.”

 

— “Que suave linguagem!

Que nova vida me dais!

Vá um copo, um copo mais 

À nossa camaradagem!” 

 

Vida eterna já adivinho, 

Sim pelo Deus do licor!

Não serei farto de amor,

Nem jamais farto de vinho!

 

Tradução de José Gomes Monteiro (séc.XIX)

 

 

E com estas reflexões brincadas sobre a morte termino, deixando o original do poema de G. E. Lessing recolhido na net, e que, espero, esteja correcto.

 

 

Gotthold Ephraim Lessing 

 

Der Tod

 

Gestern, Brüder, könnt ihrs glauben?

Gestern bei dem Saft der Trauben,

(Bildet euch mein Schrecken ein!)

Kam der Tod zu mir herein.

 

Drohend schwang er seine Hippe,

Drohend sprach das Furchtgerippe:

Fort, du teurer Bacchusknecht!

Fort, du hast genug gezecht!

 

Lieber Tod, sprach ich mit Tränen,

Solltest du nach mir dich sehnen?

Sieh, da stehet Wein für dich!

Lieber Tod verschone mich!

 

Lächelnd greift er nach dem Glase;

Lächelnd macht ers auf der Base,

Auf der Pest, Gesundheit leer;

Lächelnd setzt ers wieder her.

 

Fröhlich glaub′ ich mich befreiet,

Als er schnell sein Drohn erneuet.

Narre, für dein Gläschen Wein

Denkst du, spricht er, los zu sein?

 

Tod, bat ich, ich möcht′ auf Erden

Gern ein Mediziner werden.

Laß mich: ich verspreche dir

Meine Kranken halb dafür.

 

Gut, wenn das ist, magst du leben:

Ruft er. Nur sei mir ergeben.

Lebe, bis du satt geküßt,

Und des Trinkens müde bist.

 

O! wie schön klingt dies den Ohren!

Tod, du hast mich neu geboren.

Dieses Glas voll Rebensaft,

Tod, auf gute Brüderschaft!

 

Ewig muß ich also leben,

Ewig! denn, beim Gott der Reben!

Ewig soll mich Lieb′ und Wein,

Ewig Wein und Lieb′ erfreun!

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura do holandês Jan Provost (1465-1529), A morte e o avarento. Termino com a imagem da pintura do mesmo nome de H. Bosch (1450-1516), feita pela mesma época, e cuja imagem segue:

 

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Eugénio de Andrade — nunca o amor foi fácil, nunca

05 Quinta-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Eugénio de Andrade, Heinrich Hoerle

É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá o nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. …

 

Do anúncio da paixão à sua consumação, escolho quatro poemas de Eugénio de Andrade (1923-2005) para ilustrar o erotismo velado que percorre a poesia portuguesa do século XX e em tempos referi a pretexto do poema Metafísica de Adolfo Casais Monteiro.

Nestes poemas Eugénio de Andrade fala da paixão com uma tocante arte da palavra escrita. Na obsessiva limitação do léxico faz maravilhas:

 

Talvez nem tenha nome.

Anunciado só pelo frémito

da folhagem.

O riso invisível, o grito

de um pássaro, o escuro

da voz. …

 

Anunciada a chegada do amor, a sua consumação é contada com a economia, elegância, e emoção constantes na sua poesia:

…

respiro rente à tua boca,

abre-se a alma à língua, morreria

agora se mo pedisses, dorme, …

 

 

Eis os poemas antes citados:

 

Talvez

 

Talvez nem tenha nome.

Anunciado só pelo frémito

da folhagem.

O riso invisível, o grito

de um pássaro, o escuro

da voz. Certa doçura,

certa violência.

O espesso, volúvel

tecido da noite agora a roçar

o corpo da água. E por fim

a muito lenta paixão

do fogo, sufocada.

Era o verão.

 

in O Sal da Língua, 1995

 

 

Da Maneira Mais Simples

 

É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá o nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode

acontecer da maneira mais simples:

umas gotas de chuva no cabelo.

Aproximas a mão, os dedos

desatam a arder inesperadamente,

recuas de medo. Aqueles cabelos,

as suas gotas de água são o começo,

apenas o começo. Antes

do fim terás de pegar no fogo

e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.

 

in Os Sulcos da Sede, 2001.

 

 

Poema 25

 

Cala-te, a luz arde entre os lábios

e o amor não contempla, sempre

o amor procura, tacteia no escuro,

esta perna é tua?, é teu este braço?

subo por ti de ramo em ramo,

respiro rente à tua boca,

abre-se a alma à língua, morreria

agora se mo pedisses, dorme,

nunca o amor foi fácil, nunca,

também a terra morre.

 

in Matéria Solar, 1980.

 

 

Poemas sem que o género dos protagonistas se explicite, ganham uma capacidade universal de falar ao coração das gentes, aflorando um erotismo de que Vaguíssimo retrato, com que termino esta volta, é um paradigma:

 

Vaguíssimo retrato

 

Levar-te à boca:

beber a água

mais funda do teu ser…

Se a luz é tanta

— como se pode morrer?

 

in Obscuro Domínio, 1971.

 

Poemas transcritos de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto Editora, lda, V.N.Gaia, 2011.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Heinrich Hoerle (1895-1936), Rapariga melancólica, de 1930.

É fácil imaginar esta rapariga leitora de poesia, sonhadora com os frémitos da paixão, e melancólica na expectativa da sua espera.

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Artemidoro — poema de Jorge de Sena

27 Terça-feira Ago 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Jorge de Sena

O poema Artemidoro de Jorge de Sena (1919-1978) leva-nos por uma densa e intensa meditação sobre a história e o devir: o homem, indivíduo na sua singularidade, e a parte de uma humanidade que culturalmente o identifica:

 

Artemidoro,

a tua múmia está no Museu Britânico

entre as fileiras tristes do segundo andar.

Alguém ta descobriu num cemitério copta,

que os areais e o tempo haviam ocultado,

por séculos de calma eternidade

que em teu caixão não profanado por

ladrões de sepulturas conheceste.

Secaste assim serenamente, enquanto

quem tu eras se perdeu depressa

nas memórias humanas que habitaste.

Não eras rei, nem príncipe. E célebre

talvez o tenhas sido para os mercadores

que trataram contigo, para os teus amigos

com quem ceavas altas horas, para

tua mulher, teus filhos (só, quando pequenos,

te viam gigantesco e absorto e paternal).

…

É bem possível que tu próprio encomendasses,

risonho e pensativo, esse retrato, ou que,

depois de ter’s morrido, teus irmãos de igreja

o hajam decidido e colocado

essa máscara nobre de tragédia,

convencional tragédia em palcos de outro mundo.

…

 

O sentimento do passado nos artefactos herdados permite a viagem cultural que nos faz ir ao encontro das raízes de ser quem somos, e neste poema Jorge de Sena exercita de forma fulgurante:

…

E o teu líquido olhar ficou fitando

— num jeito que passou a Creta,

atravessou incólume Veneza,

o Tintoreto e Roma até Toledo,

em que é de Apostolado para o Greco,

mas para ti e os teus — um pouco egípcios,

um pouco sírios, gregos e romanos,

cristãos e persas: Cristo Pantocrator,

Ísis, Pan-águia, os anjos e os profetas,

Deméter, a Fortuna, o Jano bifrontal,

Ormuzd e Ariman, Pitágoras, Platão,

o deus Ptah, Adónis, Minotauro,

e as bacantes agitando o torso —

mas para ti e os teus, entre esse mar

de Ulisses e de António, de Pafos e de Chipre,

e o deserto da Esfinge e dos Colossos

que à madrugada num gemer saúdam,

mas para ti e para os teus, nas margens debruçados

para o murmúrio lamacento que afogou Antínoo —

que seria esse olhar tão líquido e profundo que me fita

envidraçado pela morte e pelas crenças todas

e também pela vidraça que, interposta,

nos não separa menos do que os séculos?

…

 

O saber quem somos e a que mundo pertencemos enquanto vivemos não altera a finitude que nos caracteriza e inevitavelmente chegará. Neste poema, no artefacto artístico de um rosto pintado que acompanha a múmia de um desconhecido agora entregue ao pó dos corredores do museu Britânico e à curiosidade de algum visitante, ou à meditação filosófico-poética que hoje transcrevo, se consubstancia esse efémero que trazemos em nós, ou parafraseando o poeta: desaparecer serenamente, enquanto quem fomos se perde depressa nas memórias humanas que habitámos.

 

 

ARTEMIDORO

 

Artemidoro,

a tua múmia está no Museu Britânico

entre as fileiras tristes do segundo andar.

Alguém ta descobriu num cemitério copta,

que os areais e o tempo haviam ocultado,

por séculos de calma eternidade

que em teu caixão não profanado por

ladrões de sepulturas conheceste.

Secaste assim serenamente, enquanto

quem tu eras se perdeu depressa

nas memórias humanas que habitaste.

Não eras rei, nem príncipe. E célebre

talvez o tenhas sido para os mercadores

que trataram contigo, para os teus amigos

com quem ceavas altas horas, para

tua mulher, teus filhos (só, quando pequenos,

te viam gigantesco e absorto e paternal).

A múmia que ficou de ti (só ressequida pele

rasgada aqui e ali, mostrando os ossos

por onde as sujas ligaduras se soltaram)

não se distingue das outras na fileira

envidraçada em que há decénios pó,

um fino pó, será de ti ou Londres.

Importa o teu caixão, ou mais, a tampa

em que, segundo os usos do teu tempo,

um pintor cujo ofício principal seria

retratar os mortos te compôs um rosto.

É bem possível que tu próprio encomendasses,

risonho e pensativo, esse retrato, ou que,

depois de ter’s morrido, teus irmãos de igreja

o hajam decidido e colocado

essa máscara nobre de tragédia,

convencional tragédia em palcos de outro mundo.

Possível é também que esse retrato fosse

menos que tua máscara um rosto

que se escolhia — por ti ou só por eles escolhido

para esse último acto: o de estar morto

de olhos abertos para o que desse e viesse.

E o teu líquido olhar ficou fitando

— num jeito que passou a Creta,

atravessou incólume Veneza,

o Tintoreto e Roma até Toledo,

em que é de Apostolado para o Greco,

mas para ti e os teus — um pouco egípcios,

um pouco sírios, gregos e romanos,

cristãos e persas: Cristo Pantocrator,

Ísis, Pan-águia, os anjos e os profetas,

Deméter, a Fortuna, o Jano bifrontal,

Ormuzd e Ariman, Pitágoras, Platão,

o deus Ptah, Adónis, Minotauro,

e as bacantes agitando o torso —

mas para ti e os teus, entre esse mar

de Ulisses e de António, de Pafos e de Chipre,

e o deserto da Esfinge e dos Colossos

que à madrugada num gemer saúdam,

mas para ti e para os teus, nas margens debruçados

para o murmúrio lamacento que afogou Antínoo —

que seria esse olhar tão líquido e profundo que me fita

envidraçado pela morte e pelas crenças todas

e também pela vidraça que, interposta,

nos não separa menos do que os séculos?

 

Artemidoro: Escuta! No silêncio ouves

os “buses” que passam, a gralhada que

em salas mais curiosas visitantes fazem.

Que mais escutarás com esses olhos que ouvem

atentamente os breves estalidos que o eterno,

como o romper da aurora nas estátuas,

provoca em nós e em nossas coisas, fissurando

a pouco e pouco a carne, a pele, os ossos, tudo

o que de deuses palpita e ressuscita em nós,

e em que talvez, sereno mercador, nem mesmo acreditasses?

 

Publicado no livro Metamorfoses, e transcrito de Jorge de Sena, Obras Completas, Poesia 1, edição de Jorge Fazenda Loureirio, Babel, 2013.

Abre o artigo a imagem da urna de Artemidoro pertença do museu Britânico.

 

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Fernando Pessoa — O peso de haver o mundo

22 Quinta-feira Ago 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Alex Katz, Fernando Pessoa

Aqueles imprecisos nadas que vez por outra nos assaltam, e no seu inesperado criam uma insatisfação do existir, capta Fernando Pessoa (1888-1935) no poema  O peso de haver o mundo. É a sensação de um vago desejo de mudança, de que algo não bate certo na nossa vida, e também não sabemos como ultrapassar…

 

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.

…

 

Se persiste, torna-se problema, se pontual é tão só um saudável questionar do estável e adquirido, fazendo-nos perguntar: não há mais mundos?

…

Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?

…

 

No poema, a conhecida incapacidade para a acção que percorre a poesia de Pessoa, dá a dimensão que torna grave a insatisfação continuada:

 

… / Não sei, mas subitamente / Sinto a tristeza de estar / O sonho triste que há rente / Entre sonhar e sonhar.

 

Ao concluir com o verso : Entre sonhar e sonhar temos a medida dessa incapacidade para a acção, quando uma atitude saudável seria: Entre sonhar e agir. Mas aí não seria o poeta a falar, mas filosofia de vida explicitada.

 

 

O peso de haver o mundo

 

Passa no sopro da aragem

Que um momento o levantou

Um vago anseio de viagem

Que o coração me toldou.

 

Será que em seu movimento

A brisa lembre a partida,

Ou que a largueza do vento

Lembre o ar livre da ida?

 

Não sei, mas subitamente

Sinto a tristeza de estar

O sonho triste que há rente

Entre sonhar e sonhar.

 

19.05.1932

 

Transcrito de Quadras e Outros Cantares, Editora literária Teresa Sobral Cunha, Relógio D’Água Editores, Lisboa, 1997.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Alex Katz (1927), Passing, óleo s/tela de 1962. Pertence à colecção do MOMA de New York.

Este auto-retrato de Alex Katz, lembrando vagamente a figura conhecida de Fernando Pessoa, é em si a imagem mesma desse peso de haver o mundo de que fala o poema.

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Alguns poemas de Célia Moura

23 Quinta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Célia Moura

Há um explícito/implícito erotismo em muita da poesia de Célia Moura (1971) que faz mover a imaginação nos territórios onde a palavra cruza o frémito do corpo:

*

Entrego meu corpo

à rebeldia do vento.

Nele me dispo, danço

e descanso.

…

 

Escolhi para trazer ao blog alguns poemas onde o caminho para a evidência da ideia global se percorre no sinuoso da palavra poética, explosiva e iridiscente, virando faiscante incêndio, quais sejam o poema Promessa transcrito à frente, ou este:

*

Que tuas mãos sejam

o lume que me invade as coxas

e os sentidos.

 

Que eu seja a pele e a loucura

brincando entre os cabelos

dessa tua lucidez

amado!

 

Que para sempre nos percamos

no fluído dos corpos

embriagados de paixão

baloiçando risos e mostos

num alpendre de beijos.

 

in No Hálito De Afrodite

 

 

A recusa total do inócuo pela afirmação explícita do desejo que alimente o corpo e dele vive, é marca de água desta poesia:

*

Faz-me vir de novo

orquídea,

girassol,

deserto

ou todas as palavras

que nunca ousaram

os poemas

para ti

paridos!

…

 

 

Em todos este poemas, mais de aspiração que de experiência feitos, e que o desejo destila e alimenta, há sempre o outro, o não nomeado ausente, destinatário desta poesia, e esta ocultação é o estímulo que alimenta a imaginação do leitor.

Além da afirmação do desejo satisfeito ou manifestado, há também uma interrogação poética sobre a sua natureza, origem e finalidade, em poemas como [Talvez amanhã alguém] ou O cérebro do mundo:

 

Busco incessantemente o cérebro do mundo,

essa lava que me dói o corpo inteiro

esse caos, essa ordem desordenada

cuja vertigem

se apodera das fêmeas

e da volúpia que trilha caminhos novos.

…

 

ou ainda no poema que encerra o artigo, No Corpo:

…

— Porque tudo é tão belo assim Pai e tão triste?!

E não cesso de O questionar, e me zango com Ele

Ainda que O ame ou respeite, nem eu sei…

…

 

 

Seguem os poemas citados, agora na totalidade. Os poemas sem título abrem com o primeiro verso destacado entre [ ].

 

Promessa

 

E quando finalmente meu corpo

Em Primavera florescer

Para ti

Sequioso de vida

E minhas pernas queimarem o feitiço

Dormente dos teus flancos

Como uma tenaz em brasa

Saboreando odores

Doando néctares como licores,

Numa embriaguez prometida

Rebolando o êxtase da poesia

Nos teus braços

E aí me fizeres morrer

Te fizer morrer

E nos fizermos renascer…

Saberás amor que permanecerei.

 

Serei qualquer estação do ano

E antes que pronuncies meu nome

Te beijarei.

 

in No Hálito de Afrodite

 

 

No teu sémen

 

Faz-me vir de novo

orquídea,

girassol,

deserto

ou todas as palavras

que nunca ousaram

os poemas

para ti

paridos!

 

Sonho que sou barro

em teu sopro,

candeia de azeite

no sobrado

acariciando esses cabelos

anunciados de neve

enquanto me decifras

os mamilos

e sussurras lentamente

— era uma vez…

 

Era uma vez,

um sémen novo

a escorregar pelas virgens

do Jardim

incensando pelo meu corpo

uma fogueira de rubras rosas

no meu ventre,

champanhe estremecendo-me

o sangue nas artérias

e tango em Buenos Aires

mordendo-me ânsias

beliscando a alma

desassossegando

alvoradas,

enquanto adormeces

nesse teu silabar sereno

— era uma vez…

 

E saio para a cidade

inaugurada de nós,

sou semente primeira

de um girassol.

 

in No Hálito De Afrodite

 

 

[Entrego meu corpo]

 

Entrego meu corpo

à rebeldia do vento.

Nele me dispo, danço

e descanso.

 

Cruel tem sido este desassossego

asfixiando borboletas dentro do peito

enquanto me morrem entre os dedos

suculentos beijos.

 

Entrego meu corpo

ao sarcasmo do tempo

mas é ao vento que pertenço.

 

Mais tarde me vestirei de chuva

 

a publicar

 

 

[Talvez amanhã alguém]

 

Talvez amanhã alguém

venha fechar meus olhos.

Hoje não!

 

Talvez amanhã alguém

me recorde com saudade

quando na enseada das ausências

eu já tiver partido nas asas de uma gaivota.

 

Sim,

amanhã eu voarei

hoje não!

 

Amanhã serei finalmente o grito amarfanhado

por décadas poetizado,

gargalhado

absurdamente sentenciado!

 

Deixarei decerto tantas bocas por beijar

tantos corpos por amar

tantos órfãos por acarinhar…

 

Amanhã, hoje não!

Preciso libertar-me de quem julgo ser

e ajoelhar-me indigna, imunda aos pés

do Criador.

08 de Março de 2019 — a publicar

 

 

O cérebro do mundo

 

Busco incessantemente o cérebro do mundo,

essa lava que me dói o corpo inteiro

esse caos, essa ordem desordenada

cuja vertigem

se apodera das fêmeas

e da volúpia que trilha caminhos novos.

 

Ah ser inteira e tão despedaçada

ó venusta peregrina!

 

Busco as palavras perfeitas

mas todas já foram celebradas

no fogo do meu e do teu baptismo

meu Irmão,

que desolação

não haver palavras mais

despertas

nem tão pouco o cérebro do mundo

esse que algures possa existir

e me escorra dos dedos

deixando-me gritos, tantos

dentro da cabeça.

 

Ah não parar o pensamento,

estancá-lo com um garrote,

cicatrizá-lo.

 

Vai peregrina, leva a loucura

morde o silêncio,

o cérebro do mundo é nada

busca somente o voo das andorinhas.

 

A publicar em Terra De Lavra

 

 

No Corpo

 

Eu me puxo

Repuxo

Envolvo

Deito

Deleito

Revolvo

Embriago

Não ressaco…

 

Eu me viro, reviro

Choro, gargalho, sorrio

Rascunho a vida,

Deito fora

Busco outra mais bonita,

Troco de caneta

Para sair bem a letra

Nunca me sinto só

Mas olho à minha volta

E não tem ninguém do meu lado.

E quando tem,

Não me sinto eu…

Eu me revolvo no caminho

E falo com Deus

 

— Porque tudo é tão belo assim Pai e tão triste?!

E não cesso de O questionar, e me zango com Ele

Ainda que O ame ou respeite, nem eu sei…

 

Eu caio prostrada bem no meio das pedras

E silencio o grito inútil da dor

Me amordaço no corpo

Para me libertar no espírito

E uma vez mais resmungo com o Criador

Mas é cambaleando que renasço

É mutilada,

Jorrando sangue pela caneta

Que eu quisera bonita da vida.

 

Uma criança me pega pela mão,

Ela que eu nem sei quem é,

Confusão se instala neste cérebro louco

De tanta lucidez,

E como uma brisa fresca de Outono

Me beija.

 

O céu tem agora odor de alfazema e risos de andorinhas.

 

A publicar em Terra De Lavra

 

 

Os poemas foram transcritos do blog celiamoura.wordpress.com/ com pequenas alterações pela autora.

Nota sobre a iconografia

A imagem de abertura mostra uma obra de Niki de Saint Phalle (1930-2002), São Sebastião ou Retrato do meu amor.

Hesitei em associar ao artigo uma imagem de explícita carga erótica, sublinhando a superfície dos poemas. Decidi-me por destacar o que lá não é nomeado mas cuja existência é a causa e fundamento desta poesia: o inominado parceiro para o prazer.

No incógnito do rosto, de onde pende a gravata de conotação fálica, e no acidentado da vida que atinge o corpo vestido, se consubstancia o ausente parceiro da paixão nesta escaldante poesia.

Adenda talvez desnecessária

A referência a São Sebastião no título da obra de arte prende-se com a tórrida carga erótica que a representação plástica de São Sebastião e seu martírio têm tido ao longo da história de arte.

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