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Tag Archives: Eugénio de Andrade

Eugénio de Andrade — nunca o amor foi fácil, nunca

05 Quinta-feira Set 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa Contemporânea

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Eugénio de Andrade, Heinrich Hoerle

É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá o nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. …

 

Do anúncio da paixão à sua consumação, escolho quatro poemas de Eugénio de Andrade (1923-2005) para ilustrar o erotismo velado que percorre a poesia portuguesa do século XX e em tempos referi a pretexto do poema Metafísica de Adolfo Casais Monteiro.

Nestes poemas Eugénio de Andrade fala da paixão com uma tocante arte da palavra escrita. Na obsessiva limitação do léxico faz maravilhas:

 

Talvez nem tenha nome.

Anunciado só pelo frémito

da folhagem.

O riso invisível, o grito

de um pássaro, o escuro

da voz. …

 

Anunciada a chegada do amor, a sua consumação é contada com a economia, elegância, e emoção constantes na sua poesia:

…

respiro rente à tua boca,

abre-se a alma à língua, morreria

agora se mo pedisses, dorme, …

 

 

Eis os poemas antes citados:

 

Talvez

 

Talvez nem tenha nome.

Anunciado só pelo frémito

da folhagem.

O riso invisível, o grito

de um pássaro, o escuro

da voz. Certa doçura,

certa violência.

O espesso, volúvel

tecido da noite agora a roçar

o corpo da água. E por fim

a muito lenta paixão

do fogo, sufocada.

Era o verão.

 

in O Sal da Língua, 1995

 

 

Da Maneira Mais Simples

 

É apenas o começo. Só depois dói,

e se lhe dá o nome.

Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode

acontecer da maneira mais simples:

umas gotas de chuva no cabelo.

Aproximas a mão, os dedos

desatam a arder inesperadamente,

recuas de medo. Aqueles cabelos,

as suas gotas de água são o começo,

apenas o começo. Antes

do fim terás de pegar no fogo

e fazeres do inverno

a mais ardente das estações.

 

in Os Sulcos da Sede, 2001.

 

 

Poema 25

 

Cala-te, a luz arde entre os lábios

e o amor não contempla, sempre

o amor procura, tacteia no escuro,

esta perna é tua?, é teu este braço?

subo por ti de ramo em ramo,

respiro rente à tua boca,

abre-se a alma à língua, morreria

agora se mo pedisses, dorme,

nunca o amor foi fácil, nunca,

também a terra morre.

 

in Matéria Solar, 1980.

 

 

Poemas sem que o género dos protagonistas se explicite, ganham uma capacidade universal de falar ao coração das gentes, aflorando um erotismo de que Vaguíssimo retrato, com que termino esta volta, é um paradigma:

 

Vaguíssimo retrato

 

Levar-te à boca:

beber a água

mais funda do teu ser…

Se a luz é tanta

— como se pode morrer?

 

in Obscuro Domínio, 1971.

 

Poemas transcritos de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto Editora, lda, V.N.Gaia, 2011.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Heinrich Hoerle (1895-1936), Rapariga melancólica, de 1930.

É fácil imaginar esta rapariga leitora de poesia, sonhadora com os frémitos da paixão, e melancólica na expectativa da sua espera.

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A poesia de Safo por Eugénio de Andrade

09 Quinta-feira Maio 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Grega

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Eugénio de Andrade, safo

Divina lira fala,

torna-te voz…

(fr. 118 L-P)

 

Solta-se uma brisa suave à leitura dos poemas de Safo (séc. VII a. C) na versão de Eugénio de Andrade (1923-2005) e o encantamento cresce à medida que as folhas passam. Poema a poema surge uma atmosfera de magia naqueles fragmentos, pretexto para deixar o pensamento voar, e ao virar a última página é uma plenitude extasiada que nos invade.

São o amor, a natureza, as emoções, coisas simples e essenciais da vida a matéria mesma dos poemas, e lê-los assim em português é um privilégio absoluto.

Dou a medida destes superlativos com a transcrição de alguns dos LXXV poemas e fragmentos traduzidos.

Como já em artigo anterior escrevi, da poesia de Safo restam hoje apenas fragmentos, e tal com na escultura grega admiramos a sua beleza mutilada, nesta poesia saboreamos com comoção e embevecimento os restos que nos embalam a imaginação.

 

Poemas

 

II

Semelhante aos deuses me parece

o homem que diante de ti se senta

e, tão doce, a tua voz escuta,

 

ou amoroso riso — que tanto agita

meu coração de súbito, pois basta ver-te

para que nem atine com o que diga,

 

ou a língua se me torne inerte.

Um subtil fogo me arrepia a pele,

deixam de ver meus olhos, zunem meus ouvidos,

 

o suor inunda-me o corpo de frio,

e tremendo toda, mais verde que as ervas,

julgo que a morte não pode já tardar.

…

(fr. 31 L-P)

 

 

IX

Com pés ligeiros, assim dançavam

noutro tempo as raparigas de Creta

à roda do altar; frescas eram

e frágeis as flores da relva que pisavam.

(fr. 16 Alceu ou Safo)

 

 

XXIX

De novo me tortura e quebra os membros,

Eros, doce-amarga indomável serpente.

(fr. 130 L-P)

 

 

XXXII

Outra vez Eros me agita o coração —

assim nos montes

o vento sacode os carvalhos.

(fr. 47 L-P)

 

 

XLII

Eros, para além da dor

tece a mentira

(fr. 172, 188)

 

 

XLIII

Quem é belo é belo de ver, e basta;

mas quem é bom subitamente será belo.

(fr. 50 L-P)

 

 

LXXV

…

O que eu quero é morrer, morrer!

Ela em lágrimas banhada dizia-me

 

ao partir: “Ah, Safo, que sorte tão cruel.

Juro-te, é contra minha vontade

que te abandono!”

 

Eu respondi-lhe: “Adeus,

sê feliz e lembra-te de mim.

Bem sabes quanto te quis.

 

Mas se esqueceres (e tu

esquecerás…) deixa-me que lembre,

entre tantas, algumas horas belas:

 

as grinaldas tecidas, lado a lado,

de rosas, violetas e alguma

flor de açafrão sobre o teu cabelo;

 

os colares de corolas várias

e fragrantes

em redor do colo delicado;

 

as essências de ervas raras

e um perfume real

derramado sobre a pele;

 

o leito onde o desejo

profundamente apaziguavas

ao meu lado…”

(fr. 94 vi. 1-23 L-P)

 

 

Para o leitor ter a medida do virtuosismo poético da versão de Eugénio de Andrade no fr. 31, (poema II) leia agora a tradução de Frederico Lourenço, o celebrado tradutor de Ilíada, Odisseia, e vária poesia grega, tão fiel do original quanto o domínio do grego antigo pelo tradutor. Delas destaco como exemplo os versos finais do poema:

…

o suor inunda-me o corpo de frio,

e tremendo toda, mais verde que as ervas,

julgo que a morte não pode já tardar.

…

por Eugénio de Andrade

 

…

o suor escorre-me do corpo e o tremor

me toma toda. Fico mais verde do que a relva

e tenho a impressão de que por pouco

que não morro.

 

por Frederico Lourenço

 

 

Eis a tradução integral por Frederico Lourenço:

 

Ele, tu e eu

 

Aquele parece-me ser igual dos deuses,

o homem que à tua frente

está sentado e escuta de perto

a tua voz tão suave

 

e o teu riso maravilhoso. Na verdade isto

põe-me o coração a palpitar no peito.

Pois quando te olho num relance, já não

consigo falar:

 

a língua se me quebrou e um subtil

fogo de imediato se põe a correr debaixo da pele;

não vejo nada com os olhos, zunem-me

os ouvidos;

 

o suor escorre-me do corpo e o tremor

me toma toda. Fico mais verde do que a relva

e tenho a impressão de que por pouco

que não morro.

 

 

Nota bibliográfica

 

Eugénio de Andrade, Poemas e Fragmentos de Safo.

in Poesia e Prosa (1940-1986), 3.ª ed. aumentada, II vol, Círculo de Leitores, 1987.

 

Tradução de Frederico Lourenço in Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.

Numeração dos fragmentos E. Lobel e D. Page, Poetarum Lesbiorum Fragmenta (L-P), Oxford, 1955.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Simeon Solomon (1840-1905), Safo e Erina num Jardim em Mitilene, de 1864.

A pintura pertence à colecção da Tate Britain.

 

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Eugénio de Andrade — Em vez da morte, que teremos no paraíso?

19 Sexta-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Eugénio de Andrade

É pela Semana Santa que o mundo cristão reflecte sobre a morte e ressurreição, ou seja, sobre a esperança de vida eterna.
No último verso do poema A Pergunta de Stevens, de Eugénio de Andrade (1923-2005) — Em vez da morte, que teremos no paraíso? — encontro formulada a pergunta insistente sobre o além-vida, para a qual ninguém tem a resposta. É esse desconhecido que ora nos aterra, ora nos tranquiliza, a base do sentimento religioso: a busca da explicação para o inexplicável. E são muitas as formas como com ele lidamos. É de novo Eugénio de Andrade quem nos trás uma das muitas abordagens da tentativa da sua compreensão, através de uma leitura de como sentimos a morte dos outros em nós, com o poema Pequena Elegia de Setembro. Mas ainda aqui são mais as perguntas que as respostas:

 

Pequena Elegia de Setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

 

 

Esta visão da morte banhada em serenidade, ou antes, melancolia, como o poeta refere num poema do mesmo nome, é uma medida da possível relação humana com ela:

 

Melancolia

O sol mal entra em casa — escrevo
sobre a fugidia
luz de areia,
luz que não encontra morada.
Tudo me dói neste dia
em que os mortos deixam à porta
dos vivos
a corrosiva melancolia.

 

 

Sem respostas, … Mas também / o poeta escreve direito por linhas / tortas: a poesia é a ficção / da verdade. … / (do poema São Coisas Assim), é com o poema Balança que termino, dando voz ao profundo significado da vida, pois ao pensar na morte, é sempre sobre a vida que pensamos:

 

Balança

No prato da balança um verso basta
para pesar no outro a minha vida.

 

E no equilíbrio com que pela vida nos movemos se encerra o significado do existir. Sem mais!

Poemas transcritos de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto Editora, lda, V.N.Gaia.

Abre o artigo a imagem de uma pintura do pintor de Siena, Giovanni di Paolo di Grazia (1398-1482), Paraíso.
A pintura é parte de um tríptico que inclui uma Criação e uma Expulsão do Paraíso, todos pertença da colecção do Metropolitan Museum de New York.

Imaginar o além-vida como este mundo de harmonia entre anjos e humanas criaturas no século XV em Siena, ocupados em amena e eterna conversação, é uma deliciosa visão.

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Eugénio de Andrade — Green god

27 Sexta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade

Ocupados com as preocupações de todos os dias, nem sempre temos o olhar disponível para o fulgor do instante, um flash de beleza que nos passa diante dos olhos e perdura longo tempo na memória, por tal forma que, ao recordá-lo, sentimos invadir-nos uma espécie de felicidade inexplicável.

 

É de um momento assim que Eugénio de Andrade (1923-2005) fala no poema Green god.

O poema tem, na concisão da forma, a elegância que caracteriza toda a poesia de Eugénio de Andrade, e interpela-nos sobre a beleza que reside no mundo: na natureza, nos corpos, no movimento, na luz, na música; em tudo o que à nossa volta pode fazer pressentir o paraíso, e com isso sermos felizes; o que talvez o ensimesmamento em que tantas vezes mergulhamos, deixe escapar.

Mais que a letra do poema importa a emoção que a sua leitura desencadeia e a multiplicidade de pistas e caminhos que abre na fruição do sentimento do belo.

Green god

Trazia consigo a graça
das fontes, quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens, quando desce.

Andava como quem passa,
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia do ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
de uma flauta que tocava.

 

O poema foi inicialmente publicado em As mãos e os frutos (1948), o primeiro livro de poemas publicado pelo poeta.
Transcrito de Eugénio de Andrade, Poesia, Rosto editora lda, V. N. Gaia, 2011.

 

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Poemas para o Verão: de novo Sophia com Liberdade e Eugénio de Andrade com As amoras

08 Quarta-feira Ago 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade, Sophia de Mello Breyner Andresen

Aqui nesta praia onde
A minha não é a praia de Sophia onde Não há nenhum vestígio de impureza,
É uma praia popular, onde as multidões se acotovelam quando a maré está alta, ou se espraiam quando chega a baixa-mar.
É uma praia de famílias onde um curioso hiato etário acontece. Encontram-se ausentes os jovens. Apenas nos cruzamos com crianças e adolescentes em idade de ainda acompanharem os pais, ou então casais de meia idade a quem a acessibilidade da praia conforta.
Circulando entre a multidão nos passeios à beira-mar, dou por mim muitas vezes a tentar imaginar as pessoas com que me cruzo, vestidas e ocupadas nos seus afazeres profissionais. Não consigo! Os corpos semi-nus, obesos ou deselegantes, longe dos padrões publicitários como é característico da humanidade, ganham uma identidade que apaga as diferenças existentes entre o banhista do guarda-sol da coca-cola, e o outro que se protege na sombra da dispendiosa palhota da primeira fila, onde repousa na espreguiçadeira.
Mas também nesta minha praia, hoje as Ondas tombando ininterruptamente, / Puro espaço e lúcida unidade, me permitiram sentir, nadando, que Aqui o tempo apaixonadamente / Encontra a própria liberdade.

Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.

As pessoas de quem falei acima são quem faz este meu país, e de quem Eugénio de Andrade (1923-2005) também fala no seu poema As amoras.

As amoras

O meu país sabe as amoras bravas
no Verão.
Ninguém ignora que não é grande,
nem inteligente, nem elegante o meu país,
mas tem esta voz doce
de quem acorda cedo para cantar nas silvas.
Raramente falei do meu país, talvez
nem goste dele, mas quando um amigo
me traz amoras bravas
os seus muros parecem-me brancos,
reparo que também no meu país o céu é azul.

Notícia bibliográfica

O poema de Sophia, publicado inicialmente em Mar Novo (1ª edição 1958), foi transcrito de Obra Poética, Editorial Caminho, 2ªedição, 2011.

O poema de Eugénio de Andrade, publicado inicialmente em O Outro Nome da Terra (1ªedição 1988) foi transcrito de Poesia, Rosto Editora, Vila Nova de Gaia, Abril de 2011.

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Figos: prazer e memória com poesia de Eugénio de Andrade

20 Sexta-feira Jul 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Crónicas, Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade, Figos, Giovanna Garzoni, Tavira

Ardidos que estão milhares de hectares de arvoredo na tragédia do incêndio de ontem, no seu rescaldo, a dureza da perda levará as gentes a um esforço redobrado de recuperação, e a paisagem agora nua e calcinada reverdecerá, como pelos séculos em que estas terras têm sido habitadas, a espaços aconteceu. De toda a vegetação queimada, são as figueiras perdidas que mais lamento.

A Figueira

Este poema começa no verão,
os ramos da figueira a rasar
a terra convidavam a estender-me
à sua sombra. Nela
me refugiava como num rio.
A mãe ralhava: A sombra
da figueira é maligna, dizia.
Eu não acreditava, bem sabia
como cintilavam maduros e abertos
seus frutos aos dentes matinais.
Ali esperei por essas coisas
reservadas aos sonhos. Uma flauta
longínqua tocava numa écloga
apenas lida. A poesia roçava-
me o corpo desperto até ao osso,
procurava-me com tal evidência
que eu sofria por não poder dar-lhe
figura: pernas, braços, olhos, boca.
Mas naquele céu verde da Agosto
apenas me roçava, e partia.

Apenas aflorados neste poema de Eugénio de Andrade (1923-2005), os figos frescos são fruta frágil com exigências caprichosas no seu amadurecimento e apanha, pelo menos para os aficionados. A hora ideal para os apanhar e comer directamente da árvore é o alvorecer, quando a “brandura” derramada pela noite ainda permanece. Apanhados e comidos durante o dia ou mesmo ao entardecer de uma daquelas tardes de verão do Sul, onde o calor brilha no restolho dourado, ao som do zumbido das cigarras, são receita certa para problemas intestinais. Ao entrever as delicias das próximas férias, é neles que penso, e pouco mais. Mar e nadar, certamente. Mas a incerteza sobre a multidão mitiga-me o entusiasmo. Num horizonte de nada fazer, à oportunidade de reencontrar as comidas de boa memória, redobra-me o entusiasmo de partir.
Alimento de excelência no Sul, prepará-los e gozá-los ao longo do ano foi matéria de invenção das gentes onde o figo abunda. Por exemplo, associo o Dia de Todos-os-Santos sobretudo aos figos. Nas terras do Sul foi desde que me recordo um dia festivo, ficando para o dia seguinte, 2 de Novembro, a celebração dos mortos, no que se chamava Dia de Finados. Finados, aqueles para quem a vida chegou ao fim, Apenas recentemente o Dia de Finados se sobrepôs ao Dia de Todos-os-Santos.
Como qualquer dia festivo também o Dia de Todos-os-Santos tinha, e tem para quem ainda pratica, as suas comidas de celebração, e neste dia, no meu berço Natal, são os figos, e os doces com figo, os reis: figos cheios (figos recheados com chocolate, açúcar e canela e ligeiramente torrados no forno), bombons de figo (pasta de figo moído, açúcar, canela e algo mais que faz o segredo da receita), enrolado em pequenas bolas guardadas em papel colorido, e estrelas (figos abertos em três pontas unidos dois a dois com miolos de amêndoa na extremidade e passados ligeiramente pelo calor do forno para colar). Estas especialidades da época, que felizmente a minha mãe não dispensa e continua a fazer, remetem-me para o tempo da despreocupada infância.
São os figos que me trazem a única memória de uma bisavó.
Comecei na escola paga quando fiz três anos. Era a escola da menina Emília. Não existindo infantários, as primeiras letras eram ensinadas aos meninos e meninas naqueles anos cinquenta, em casas particulares, por uma senhora que organizava esta escola doméstica, paga chamada, pois este ensino tinha uma mensalidade, ao contrário do ensino oficial e obrigatório a partir dos sete anos, que era gratuito. Nas famílias com mais necessidades as crianças apenas começavam a aprendizagem das letras nesta escola oficial, e assim se fazia a diferenciação para a vida. Quando cheguei ao ensino oficial lia, escrevia e sabia a matemática elementar (tabuada) como apenas a outra meia dúzia na minha situação o sabiam entre cerca de 30 rapazes.
Voltando à bisavó, morava na mesma rua da menina Emília. A escola ficava ao cimo da rua do Malfor, perto da passagem de nível, ou seja, do cruzamento da rua com a linha de comboio. A casa da bisavó era um pouco mais abaixo. Quando terminada a escola regressava à tarde a casa, passava-lhe junto à porta. Habitualmente estava à janela e muitas vezes chamava-me para lanchar. Nestas visitas, o prémio que recordo era tentar tirar-lhe de dentro dos bolsos das saias alguns figos secos ou torrados que sempre lá estavam, e que ela na brincadeira esquivava. Não sei de outros que, comidos depois, me soubessem melhor.

Despeço-me de toda esta evocação, onde afinal foi do passar do tempo que falei, com Prato de Figos, poema de Eugénio de Andrade em que uma metáfora do envelhecimento se escreve.

Prato de Figos

Também a poesia é filha
da necessidade —
esta que me chega um pouco já
fora do tempo
deixou de ser a sumarenta alegria
do sol sobre a boca;
esta, perdida a fresca
e nacarada pele adolescente,
mais parece um desses figos
secos ao sol de muitos dias
que num inverno sempre se encontram
postos num prato
para comeres junto ao fogo.

Vai o artigo acompanhado pelas apetitosas pinturas de Giovanna Garzoni (1600-1670).

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Uma gaivota – dizes. 3 poemas de Eugénio de Andrade

15 Quarta-feira Jun 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade

ARIMA

Uma gaivota – dizes.

Sim, uma gaivota

passa distante e arde.

O teu rosto é azul,

e contudo está cheio

do oiro da tarde.

 

Uma gaivota.

Alma do mar e tua,

abandona-se à luz.

 

E na boca nem eu sei

se me nasce o coração

ou é a lua.

QUE VOZ LUNAR

Que voz lunar insinua

o que não pode ter voz?

 

Que rosto entorna na noite

todo o azul da manhã?

 

Que beijo de oiro procura

uns lábios de brisa e água?

 

Que branca mão devagar

quebra os ramos do silêncio?

QUE DIREMOS AINDA?

Vê como de súbito o céu se fecha

sobre dunas e barcos,

e cada um de nós se volta e fixa

os olhos um no outro,

e como deles devagar escorre

a última luz sobre as areias.

 

Que diremos ainda? Serão palavras,

isto que aflora aos lábios?

Palavras, este rumor tão leve

que ouvimos o dia desprender-se?

Palavras, ou luz ainda?

 Palavras, não. Quem as sabia?

Foi apenas lembrança doutra luz.

Nem luz seria, apenas outro olhar.

Os poemas, de Eugénio de Andrade, foram publicados no livro Mar de Setembro editado pela primeira vez em 1961.

Nota sobre as fotografias: É deliberada a desfocagem observada nas fotos – Nem luz seria, apenas outro olhar.

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Em Lisboa com Cesário Verde — Eugénio de Andrade a pretexto dos jacarandás

16 Segunda-feira Maio 2011

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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Eugénio de Andrade, jacarandás

Passeamos pelas ruas de Lisboa neste verão de Maio, e o inesperado do azul dos jacarandás floridos, fundido com o céu, enche-nos o olhar.

Este ano aconteceu mais cedo, e a cidade dos poetas estará vestida de azul até aos Santos Populares se a natureza cumprir a sua função.

Em pausa de passeio aqui fica esta visita de Eugénio de Andrade (1923 – 2005) a Lisboa.

EM LISBOA COM CESÁRIO VERDE

Nesta cidade, onde agora me sinto

mais estrangeiro do que os gatos persas;

nesta Lisboa, onde mansos e lisos

os dias passam a ver as gaivotas,

e a cor dos jacarandás floridos

se mistura à do Tejo, em flor também,

só o Cesário vem ao meu encontro,

me faz companhia, quando de rua

em rua procuro um rumor distante

de passos ou aves, nem eu sei já bem.

Só ele ajusta a luz feliz dos seus

versos aos olhos ardidos que são

os meus agora; só ele traz a sombra

dum verão muito antigo, com corvetas

lentas ainda no rio e a musica,

o sumo do sol a escorrer da boca,

ó minha infância, meu jardim fechado,

ó meu poeta, talvez fosse contigo

que aprendi a pesar silaba a sílaba

cada palavra, essas que tu levaste

quase sempre, como poucos mais,

à suprema perfeição da lingua.

1986

Lisboa é pouco frequente na poesia de Eugénio de Andrade, embora sendo a sua uma escrita da terra onde a memória dos lugares perpassa, uma que outra passagem por Lisboa foi pretexto de poema, tal este LISBOA:

 

LISBOA

Esta névoa sobre a cidade, o rio,

as gaivotas doutros dias, barcos, gente

apressada ou com o tempo todo para perder,

esta névoa onde começa a luz de Lisboa,

rosa e limão sobre o Tejo, esta luz de água,

nada mais quero de degrau em degrau.

 

Noticia bibliográfica:

Os poemas foram transcritos de POESIA E PROSA [1940 – 1986],  3ª edição  aumentada, editado por Circulo de Leitores em 1987.

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