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torna-te voz…
(fr. 118 L-P)
Solta-se uma brisa suave à leitura dos poemas de Safo (séc. VII a. C) na versão de Eugénio de Andrade (1923-2005) e o encantamento cresce à medida que as folhas passam. Poema a poema surge uma atmosfera de magia naqueles fragmentos, pretexto para deixar o pensamento voar, e ao virar a última página é uma plenitude extasiada que nos invade.
São o amor, a natureza, as emoções, coisas simples e essenciais da vida a matéria mesma dos poemas, e lê-los assim em português é um privilégio absoluto.
Dou a medida destes superlativos com a transcrição de alguns dos LXXV poemas e fragmentos traduzidos.
Como já em artigo anterior escrevi, da poesia de Safo restam hoje apenas fragmentos, e tal com na escultura grega admiramos a sua beleza mutilada, nesta poesia saboreamos com comoção e embevecimento os restos que nos embalam a imaginação.
Poemas
II
Semelhante aos deuses me parece
o homem que diante de ti se senta
e, tão doce, a tua voz escuta,
ou amoroso riso — que tanto agita
meu coração de súbito, pois basta ver-te
para que nem atine com o que diga,
ou a língua se me torne inerte.
Um subtil fogo me arrepia a pele,
deixam de ver meus olhos, zunem meus ouvidos,
o suor inunda-me o corpo de frio,
e tremendo toda, mais verde que as ervas,
julgo que a morte não pode já tardar.
…
(fr. 31 L-P)
IX
Com pés ligeiros, assim dançavam
noutro tempo as raparigas de Creta
à roda do altar; frescas eram
e frágeis as flores da relva que pisavam.
(fr. 16 Alceu ou Safo)
XXIX
De novo me tortura e quebra os membros,
Eros, doce-amarga indomável serpente.
(fr. 130 L-P)
XXXII
Outra vez Eros me agita o coração —
assim nos montes
o vento sacode os carvalhos.
(fr. 47 L-P)
XLII
Eros, para além da dor
tece a mentira
(fr. 172, 188)
XLIII
Quem é belo é belo de ver, e basta;
mas quem é bom subitamente será belo.
(fr. 50 L-P)
LXXV
…
O que eu quero é morrer, morrer!
Ela em lágrimas banhada dizia-me
ao partir: “Ah, Safo, que sorte tão cruel.
Juro-te, é contra minha vontade
que te abandono!”
Eu respondi-lhe: “Adeus,
sê feliz e lembra-te de mim.
Bem sabes quanto te quis.
Mas se esqueceres (e tu
esquecerás…) deixa-me que lembre,
entre tantas, algumas horas belas:
as grinaldas tecidas, lado a lado,
de rosas, violetas e alguma
flor de açafrão sobre o teu cabelo;
os colares de corolas várias
e fragrantes
em redor do colo delicado;
as essências de ervas raras
e um perfume real
derramado sobre a pele;
o leito onde o desejo
profundamente apaziguavas
ao meu lado…”
(fr. 94 vi. 1-23 L-P)
Para o leitor ter a medida do virtuosismo poético da versão de Eugénio de Andrade no fr. 31, (poema II) leia agora a tradução de Frederico Lourenço, o celebrado tradutor de Ilíada, Odisseia, e vária poesia grega, tão fiel do original quanto o domínio do grego antigo pelo tradutor. Delas destaco como exemplo os versos finais do poema:
…
o suor inunda-me o corpo de frio,
e tremendo toda, mais verde que as ervas,
julgo que a morte não pode já tardar.
…
por Eugénio de Andrade
…
o suor escorre-me do corpo e o tremor
me toma toda. Fico mais verde do que a relva
e tenho a impressão de que por pouco
que não morro.
por Frederico Lourenço
Eis a tradução integral por Frederico Lourenço:
Ele, tu e eu
Aquele parece-me ser igual dos deuses,
o homem que à tua frente
está sentado e escuta de perto
a tua voz tão suave
e o teu riso maravilhoso. Na verdade isto
põe-me o coração a palpitar no peito.
Pois quando te olho num relance, já não
consigo falar:
a língua se me quebrou e um subtil
fogo de imediato se põe a correr debaixo da pele;
não vejo nada com os olhos, zunem-me
os ouvidos;
o suor escorre-me do corpo e o tremor
me toma toda. Fico mais verde do que a relva
e tenho a impressão de que por pouco
que não morro.
Nota bibliográfica
Eugénio de Andrade, Poemas e Fragmentos de Safo.
in Poesia e Prosa (1940-1986), 3.ª ed. aumentada, II vol, Círculo de Leitores, 1987.
Tradução de Frederico Lourenço in Poesia Grega de Álcman a Teócrito, Livros Cotovia, Lisboa, 2006.
Numeração dos fragmentos E. Lobel e D. Page, Poetarum Lesbiorum Fragmenta (L-P), Oxford, 1955.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Simeon Solomon (1840-1905), Safo e Erina num Jardim em Mitilene, de 1864.
A pintura pertence à colecção da Tate Britain.