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Temos um problema sério no poema de Casimiro de Abreu (1839-1860), Amor e Medo. Senão vejamos: um jovem par de namorados encontra-se: estamos em meados do século XIX no Brasil, entre gente de classe média. Com os interditos sociais da época, nestes encontros nem pensar nas intimidades que o desejo e a juventude exigem. Não aguentando mais, o jovem parte. A namorada, despeitada suspira:
…
— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!
…
Afinal, como a jovem está equivocada, elucida-nos o poeta a seguir:
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Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
…
E para que não tenhamos dúvidas do que a voracidade deste fogo seria capaz, aí temos em toda a segunda parte do poema a descrição detalhada:
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Ai! se eu te visse em languidez sublime,
…
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio!…
…
Trémula a fala a protestar baixinho…
Vermelha a boca, soluçando um beijo!…
…
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
…
É claro que coisa tão magnífica, para ter a cor da época, terá que vir embrulhada em vocábulos de vileza, e por isso, aqui estão:
…
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço,
Anjo enlodado nos paúis da terra.
…
E pronto! Aí está consignado o que amor procura. Depois
… desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: — que é da minha coroa?…
Eu te diria: — Desfolhou-a o vento !…
Num aparte: não creio que à época, ou hoje, alguém tomasse à letra as óbvias metáforas de dedo impuro, grinalda virgem ou lascivo abraço, supondo que o rapaz com um qualquer dedo da mão impediria a rapariga de levar até ao casamento as flores da sua virgindade, desflorando tão preciosa grinalda com um vulgar abraço. É desnecessária qualquer explicação adicional, suponho. A última quadra citada traduz sem equívocos os acontecimentos… que sucederiam se o namorado não fugisse. E esse é o problema sério que referi a abrir: perante o desejo, deve o homem pensar com que cabeça?
O rapaz precisou da cabeça bem fria nesta aventura poética…
É tempo de ler o poema na totalidade:
Amor e Medo
Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
— Meu Deus! que gelo, que frieza aquela!
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo, é que te adoro louco…
És bela,— eu moço; tens amor,— eu medo!…
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes.
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.
É que esse vento, que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrazado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: — que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera
Chovesse embora paternal orvalho!
II
Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!…
Ai! se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos — palpitante o seio.
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trémula a fala a protestar baixinho…
Vermelha a boca, soluçando um beijo!…
Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
— Tu te queimaras, a pisar descalça,
— Criança louca, — sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos paúis da terra.
Depois… desperta no febril delírio,
— Olhos pisados — como um vão lamento,
Tu perguntaras: — que é da minha coroa?…
Eu te diria: — Desfolhou-a o vento !…
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo, é que te adoro e muito,
És bela — eu moço; tens amor, eu — medo!…
Outubro — 1858
in Casimiro de Abreu, As Primaveras, Novíssima edição acrescentada de novas poesias e da Scena Dramática O Camões e o Jáo e Dois romances em prosa, Lisboa, Imprensa de J. G. de Sousa Neves, 1875.
Modernizei a ortografia.
Abre o artigo a imagem do detalhe de uma pintura de Edouard Manet (1832-1883), Chez le père Lathuille, de 1879. A pintura pertence ao Museu de Belas-Artes de Tournai.