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É uma enorme alegria ver o renascer recente de urbes como Lisboa e Porto que durante longos anos foram sendo abandonadas e entregues à devastação do tempo e duma ignara gestão de prioridades económicas e sociais.

É ainda de uma cidade em abandono onde a usura do tempo tudo arrasta, que fala o poema de Vasco Graça Moura (1942-2014), Sobre a minha cidade.

Felizmente uma conjuntura económica favorável permitiu nos últimos anos a sua inversão, e hoje o Porto resplandece cada dia mais.

 

Sobre a minha cidade

 

sobre a minha cidade, falei-te ontem, mostrei-te

as esquinas do tempo, a imagem de fachadas

que ainda conheci, de outras que

eu próprio ignorava; sobre

 

a minha cidade e suas pedras, seus espaços

de árvores graves; e o que foi arrasado,

ou está a desfazer-se; as manchas do presente, a

poluição dos homens; e o que foi

 

violentamente arrancado por negócios sucessivos,

erros, brutalidades: o que era e o que foi

o que é dentro de mim o seu obscuro,

imaginário ser: costumes e conflitos,

 

maneiras de falar, a gente

e a confusão das ruas, as casas do barredo;

sobre a minha cidade achei que tu

tiveste gratidão, a viste.

 

que percorreste as pontes que da minha

cidade a ti me trazem, entre

gaivotas alastrando e músicas diferentes,

e foste nascer nela.

 

Vasco Graça Moura — poema publicado em os rostos comunicantes, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1984.

 

 

Falar poeticamente de cidades não é necessariamente desenvolver uma descrição. Há também uma expressão da cidade na osmose dela com o individual que a habita e a faz, nela se fazendo, como escreve Jorge de Sena (1919-1978) no poema Metamorfose, espécie de desejo da cidade em si:

 

 

Metamorfose

 

Para a minha alma eu queria uma torre como esta,

assim alta,

assim de névoa acompanhando o rio.

 

Estou tão longe da margem que as pessoas passam

e as luzes se reflectem na água.

 

E contudo, a margem não pertence ao rio

nem o rio está em mim como a torre estaria

se eu a soubesse ter…

                                       uma luz desce o rio

                                       gente passa e não sabe

que eu quero uma torre tão alta que as aves não passem

                                                           as nuvens não passem

                                                           tão alta tão alta

que a solidão possa tornar-se humana.

25/10/1942

 

Jorge de Sena — poema publicado em Coroa da Terra, 1946. Transcrito de Jorge de Sena, Obras Completas, Poesia 1, Babel, 2013.

Segundo Mecia de Sena, no poema o poeta refere-se à Torre dos Clérigos.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de James Holland (1799-1870), Torre dos Clérigos.