Etiquetas
Foi com uma crescente surpresa que mergulhei na leitura das Odes Anacreonticas de José Agostinho de Macedo (1761-1831).
A biografia do homem, o seu perfil trauliteiro passado à historia, e a vasta produção poética de duvidoso interesse hoje, mantiveram-me arredado desta leitura, na presunção de ausência do sentimento poético necessário a abordar com sensibilidade as temáticas do prazer e do gosto de viver que as odes anacreonticas em voga no séc. XVIII reclamavam.
À medida que a leitura prosseguia e os poemas se sucediam, constactei como a delicadeza do sentimento ia de par com alguma novidade nos argumentos de sedução para além do usual neste tipo de composições. É essa novidade argumentativa que escolho mostrar, transcrevendo três odes.
Na ode XVI é a apologia do prazer em detrimento do estudo o que encontramos, desafiando o poeta a bela Marcia, a o estudo (artes) abandonar:
…
São nada as artes, mais vale
Um dia só de prazer.
…
Na ode LXXXVII encontramos uma curiosa fuga ao compromisso formal na recusa de um anel de noivado entre o namorado e a namorada, invocando a perda de liberdade que ele traz, pois o importante é o amor e não o compromisso dele:
…
Se já lançaste cadeias
De amor ao meu coração,
Para que queres um laço
Visível na minha mão?
Termino a escolha com a ode XCII, e uma temática mais convencional neste tipo de poesia: a beleza da amada, aqui medida pela beleza divina de Vénus, na confusão que o seu filho, Amor, faz entre a mãe, Vénus, e Marcia, a amada do poeta:
…
Cuidou (que fácil engano!)
Ser Vénus que ele buscava
Voa do cedro contente,
E a linda Marcia abraçava.
Amada mãe … diz, e Marcia
Ao colo o numen tomou;
E viu então Natureza,
Que Amor também s’enganou.
…
Eis os poemas:
Ode XIV
O estudo de Amor
Nasceste, Marcia formosa,
Nasceste só para amar;
Não queiras em tanto estudo
Rápida vida passar.
As doces horas do sono
Não queiras diminuir;
De nada presta a ciência,
Se não ensina a sentir.
Encaneceram os homens
Sem nada poder saber
São nada as artes, mais vale
Um dia só de prazer.
A rosa vive um momento,
E os nossos olhos encanta
Que nos importa esse cedro
Que altivo aos céus se levanta?
Agrada a pomba inocente
Que não se eleva no ar:
Deixa que as águias soberbas
Os astros vão devassar.
Do teu Pastor as endeixas
Traze contínuo na mão;
Que ao lado de uma beleza
Nunca achei graça a Platão.
Para uma eterna memória
Profundo estudo que vale?
Nos versos que tu me inspiras
Já tens um nome imortal.
Ode LXXXVII
O Anel oferecido
Não queiras, Marcia formosa
Tão liberal parecer
Podes com outros tesouros
A liberdade prender.
Tão precioso presente
Eu não te devo aceitar,
Pois queres com mais um laço
As minhas prisões dobrar.
Teus dons, ó Marcia, suspende;
Já não duvida ninguém
Que, além de ser teu amante
Sou teu escravo também.
Se já lançaste cadeias
De amor ao meu coração,
Para que queres um laço
Visível na minha mão?
Ode XCII
O engano d’Amor
Pelo aprazível vimeiro
Colhendo de um mirto a flor.
De cima de um verde cedro
Viu Marcia o tirano Amor.
Notou seu talhe donoso.
Seus olhos, claras estrelas;
Viu alvos jasmins, viu rosas
Nos lábios, nas faces belas.
Viu seu andar soberano
Das lindas graças cercado,
E à vista da linda Marcia
D’assombro o rio parado.
Cuidou (que fácil engano!)
Ser Vénus que ele buscava
Voa do cedro contente,
E a linda Marcia abraçava.
Amada mãe … diz, e Marcia
Ao colo o numen tomou;
E viu então Natureza,
Que Amor também s’enganou.
Confuso um pouco cupido
Dos braços se desprendeu,
E as asas equilibrando,
Os livres ares fendeu.
Que Amor menino se engane
Não me causa admiração.
Se até a julga celeste
Filosofia, e Razão.
in A Lyra Anacreontica, Impressão Régia, 1819.
Modernizei a ortografia.
Abre o artigo a imagem de um desenho de Hendrick Goltzius (1558-1617), Vénus entre Ceres e Baco.