Etiquetas
Os versos impressivos não nos devem fazer esquecer a dimensão do real e o multifacetado que a vida é. No entanto, o gosto da língua tornada poesia tem um apelo por vezes irresistível, fazendo, se distraídos, a vida saber ao que a poesia conta. E hoje, Fernando Pessoa (1888-1935), por via do heterónimo Ricardo Reis quase nos convence da nossa nulidade e apagamento, no peculiar e recorrente entendimento do eu que atravessa a sua poesia:
…/ Perene flui a interminável hora / Que nos confessa nulos. / …
ou ainda:
… / Que é qualquer vida? Breves sóis e sono. / …
Nos três poemas que escolhi e hoje transcrevo, surgem diferentes formas de, com ligeiras variações, dizer o mesmo: Nada fica de nada. Nada somos. / …
Logo no primeiro poema lemos:
… / No mesmo hausto / Em que vivemos, morreremos. Colhe / O dia, porque és ele.
para no segundo poema encontrarmos: Sereno aguarda o fim que pouco tarda. / …
e no poema com que encerro esta volta: … / O que fazemos é o que somos. .. / … cadáveres / Adiados que procriam.
O diálogo do que somos com o que lemos é parte essencial de um aprofundar do conhecimento de si, levando à reflexão sobre o porquê de certa leitura se nos acomodar e aqueloutra nos deixar indiferentes ou mesmo incomodar.
Eis os poemas:
[Uns, com os olhos postos no passado]
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, vêem
O que não pode ver-se.
Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
28-8-1933
Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.
[Sereno aguarda o fim que pouco tarda]
Sereno aguarda o fim que pouco tarda.
Que é qualquer vida? Breves sóis e sono.
Quanto pensas emprega
Em não muito pensares.
Ao nauta o mar obscuro e a rota clara.
Tu, na confusa solidão da vida,
A ti mesmo te elege
(Não sabes de outro) o porto.
31-7-1932
Odes de Ricardo Reis, Obras Completas de Fernando Pessoa, Edição Ática, Lisboa, 1978.
[Nada fica de nada. Nada somos.] [2]
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pesa
Da húmida* terra imposta.
Leis feitas, estátuas altas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
O que fazemos é o que somos. Nada
Nos cria, nos governa e nos acaba.
Somos contos contando contos, cadáveres
Adiados que procriam.
28-9-1932
Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. – 168a.
* A edição Ática que referi antes lê no manuscrito humilde em vez de húmida.
Em apêndice, e como curiosidade para o leitor exigente, transcrevo outra versão do último poema:
[Nada fica de nada. Nada somos.] [1]
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da húmida* terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas —
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, porque não elas?
Somos contos contando contos, nada.
28-9-1932
Poemas de Ricardo Reis. Fernando Pessoa. (Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994. – 168.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Carlo Carrá (1881-1966), O menino-prodígio, 1915.
Reis, o preferido de Sophia…
GostarLiked by 1 person