A força com que o amor nos prende é um mistério que tem permanecido insolúvel pelos séculos. Pensar que com ele rompemos tão logo o queiramos é a ilusão dos neófitos. A curiosidade de o experimentar leva ao desejo de o conhecer melhor. À medida que a ele nos entregamos fazem-se mais fortes as amarras com que nos prende. Invisíveis são, mas estão lá, e rompê-las acaba por ser a custo emocional elevado.
Fazendo uso de uma metáfora impressiva, Paulo Silenciário (séc. VI) primeiro, e António Dinis da Cruz e Silva (1731-1799) numa paráfrase do poema daquele, mostram-no de forma eloquente:
Epigrama de Paulo Silenciário
O cabelo
Arrancando um cabelo da dourada cabeleira,
Dóris atou as minhas mãos como um prisioneiro de guerra.
A princípio ri às gargalhadas, pensando
que sacudiria facilmente as cadeias da minha Dóris.
Mas, sem forças para as romper, comecei a gemer
como se estivesse preso por grilhetas de ferro.
E agora, três vezes infeliz, vivo suspenso de um cabelo,
seguindo amarrado para onde a minha amante me leva.
Tradução de Albano Martins
in Antologia da Poesia Grega Clássica, Edições Afrontamento, Porto, 2011.
Soneto de António Dinis da Cruz e Silva
Centúria II
Soneto XCI
Parafraseando o epigrama grego de Paulo Silenciário
Estava eu com Licori à sombra fria
De um florido murtal de Amor tratando;
A Ninfa, seu poder exagerando,
Mil prodígios contou, de que eu me ria.
Ela porque eu pagasse a zombaria,
E de Amor fosse a força em mim provando,
Um cabelo das tranças arrancando,
Ambas as mãos com ele me prendia.
Zombei eu ao princípio destes laços;
Pois ao ver sua frágil contextura
Cri, que pronto os faria em mil pedaços.
Mas logo conheci minha loucura;
Que depois quis em vão soltar os braços,
E a prisão cada vez sinto mais dura.
Obras de António Dinis da Cruz e Silva vol. II, edição de Maria Luísa Malaquias Urbano, Edições Colibri, Lisboa 2001.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Egon Schiele (1890-1918), Nu feminino e masculino de 1913.