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vicio da poesia

Category Archives: Poesia Portuguesa do sec. XX

Negócios num soneto de Vasco Costa Marques

12 Quinta-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Ten Brock, Vasco Costa Marques

Negócios e poesia são certamente realidades que improvavelmente se cruzam, a não ser fazer de negócios assunto de poesia, cometimento que de forma brilhante Vasco Costa Marques (1928-2006) consegue no poema que hoje transcrevo.

Não só a dificuldade do assunto é de monta como a forma escolhida, o soneto, no rigor da sua construção é um obstáculo acrescido ao sucesso da empresa. E assim, a urgência de um negócio nas suas múltiplas vertentes fica plasmado num primoroso soneto de inultrapassável ironia.

 

 

De 3 Poemas de “Importação-Exportação”

 

Note que o tempo foge-nos dos dedos,

veloz como um foguete supersónico.

Não podemos perder os barcos gregos:

mantenham-se em contacto telefónico.

 

É de prever a curva do negócio:

conservas para Goa no embarque.

Sonde-me o Ministério e o Consórcio

New Manufactur’s of Lorenzo Marques.

 

Prometa o que quiser, mas verbalmente.

Sinto que está a ser ultrapassado

e isso, meu caro, é a morte de um gerente.

 

Temos de ir mais depressa, mais depressa!

Veja se a Union Bank envia o delegado,

e ature-me esses tipos da Imprensa.

do livro O mundo possível, (1961)

 

 

Pela data do poema e a referência a Goa suponho que o pretexto directo do soneto foi a crise da chamada Índia Portuguesa, com a invasão iminente pela União Indiana dos territórios ainda ocupados por Portugal no sub-continente indiano. É esta a urgência reflectida no assunto do poema e de que a imprensa não devia dar notícia. Podia ser qualquer outro o quadro histórico. O poema não perde um grão do seu brilho formal retirado deste contexto de realidade.

 

 

Nota bibliográfica

Poema transcrito de Maria Alberta Menéres e E. M. de Melo e Castro, antologia da novíssima poesia portuguesa, 2.ª edição revista, actualizada e com uma nova introdução, Livraria Morais Editora, 1961.

 

 

Abre o artigo a imagem de um poster de Willem Frederick Ten Brock de 1936.

 

 

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Alguns poemas de J. J. Cochofel

09 Segunda-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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J. J. Cochofel, Picasso

Poesia, realejo

dos sentimentos que estão

entre o sonho e o desejo

de os não sentir em vão.

in Quatro Andamentos

 

 

Sabemos de que falam os poetas quando os lemos. João José Cochofel (1919-1982) figura de proa do movimento neo-realista e à sua poesia associado, é autor de uma obra poética bem longe da retórica panfletária associada ao movimento neo-realista na imagem corrente. Pode ser exemplo desta distância o poema XII do livro Sol de Agosto:

 

                                     XII

O concreto, o real — coisas que me comovem.

     É sobre os sentidos que vivo debruçado

             — Fácil o que a vida enxerga —

                      o resto é-me vedado.

                                      …

 

 

Poesia de enorme sensibilidade no seu dizer, é servida por uma forma depurada e constantemente preocupada com a eufonia do poema, qual seja o poema Breve:

 

 

Breve

 

Breve

o botão que foste

e o pudor de sê-lo

 

Breve

o laço vermelho

dado no cabelo.

 

Breve

a flor que abriu

e o sol saudou

 

Breve

tanto sonho findo

que a vida pisou.

in 46.º Aniversário 

 

 

Fala-nos esta poesia do desencanto dos dias, do tempo e do seu passar, com luminosas e quase epigramáticas observações:

 

II

Sem desespero

nem alegria,

vai correndo a vida,

esta coisa fria

 

que é a gente erguer-se

para mais um dia

de gato que salta,

de rato que chia.

 

Que é a gente deitar-se

de corpo cansado,

alheio à fragrância

da mulher ao lado.

 

Até indiferente

ao meu cuidado

de me ver assim

tão desencantado.

in 4 andamentos

 

 

III

Vive ao dia a dia,

sem sonhos nem ilusões.

Sonhar é adiar

a fome dos corações.

 

O presente está aqui

ao alcance da mão.

O futuro será

o que fizeres ou não

 

ao sabor do momento

que é a tua razão

profunda e tão certa

como o teu coração.

in 4 andamentos

 

 

É sempre o eu poético, e não as massas ou o “povo”, que está por detrás destas reflexões poéticas, como já a abrir o seu primeiro livro Instantes, aos dezoito anos, o poeta anuncia no poema Pórtico:

 

 

Pórtico

 

Outros serão

os poetas da força e da ousadia.

Para mim

— ficará a delicadeza dos instantes que fogem

a inutilidade das lágrimas que rolam

a alegria sem motivo duma manhã de sol

o encantamento das tardes mornas

a calma dos beijos longos.

 

       (Um ócio grande. Morre tudo

         dum morrer suave e brando…)

 

Que os outros fiquem com o seu fel

as suas imprecações

o seu sarcasmo.

Para mim

será esta melancolia mansa

que me é dada pela certeza de saber

que a culpa é sempre minha

se as lágrimas correm…

in Instantes

 

 

e quase trinta anos mais tarde volta a referir em Os dias íntimos:

 

*

Lasso, triste, venho

do silêncio em mim.

Que escuro o caminho!

Que longe do fim!

 

Indeciso ainda

como um cristal baço;

mas que fome existe

já no meu cansaço!

 

Olho-me por dentro:

que frio, sozinho!

Aqueço-me ao fogo

do comum destino.

Os dias íntimos in 46.º Aniversário

 

 

Feita esta curta viagem termino com dois poemas que sublinham a presença da memória nos dias e no seu passar:

 

VIII

Saudade de qualquer coisa

que a memória, só ela,

realiza ainda.

Lembra e dói 

apenas porque é finda.

 

A manhã sem sol nem música

cria-me melancolia.

— Porque mastigo eu lágrimas que já não sinto

e me vergo em sobressaltos

já alisados pela tua mão?

 

A manhã fria

trouxe-me este absurdo desejo de inverno

em pleno Verão.

in Sol de Agosto

 

 

*

O som

de um piano antigo

atravessa vinte anos

para vir tocar

na minha rua.

 

Que menina será,

a mãe ou a filha,

que veio dar-me

o passado a ouvir!

in Quatro Andamentos

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de:

João José Cochofel, Quatro Andamentos, edição do autor na colecção Cancioneiro Vértice, Coimbra, 1966.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

Novo Cancioneiro, edição conjunta dos dez livros publicados na colecção. Prefácio, organização e notas de Alexandre Pinheiro Torres, Editorial Caminho, Lisboa, 1989.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973) de 1971, Busto de Homem escrevendo, da colecção do Museu Picasso de Paris.

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Alguns poemas de Saúl Dias

02 Segunda-feira Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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David Mourão-Ferreira, Júlio, Saúl Dias

É simultaneamente um pudor de linguagem e um olhar de esteta o que encontramos na curta obra poética de Saúl Dias (1902-1983), pseudónimo do pintor Júlio dos Reis Pereira. O poeta, irmão de José Régio, é conhecido sobretudo como pintor, assinou Júlio, e é autor de uma obra plástica notável. A presença do olhar de esteta reconhece o poeta explicitamente no poema Quieta com que abro esta curta visita à sua poesia, que não é uma estreia no blog. Outros poemas seus encontram-se algures transcritos.

 

 

Quieta

 

Passaste

subtil

na tarde quieta.

 

O ar anil

ondulou…

Como uma seta

uma ave baixou

da velha torre

e pousou quieta.

 

Eu era o esteta

procurando

entre fórmulas mil

o ancoradouro, a meta…

 

Inúteis tentativas!…

 

Tudo passou…

Tudo queimou 

o tempo vil…

 

Só perdurou

o ar anil

da tarde quieta.

 

 

De novo o artista plástico por detrás do poeta se revela neste Desenho de rapariga:

 

 

Desenho de rapariga

 

Corpo suave,

de traços finos,

modulados trinos

ao entardecer…

 

A linha esguia

que delimita

e acaricia

o braço de ave

é tão bonita…

 

Quase mulher…

Quase criança…

 

Toda pureza…

 

— Vede

a beleza

como se enlaça

na sua trança!

 

 

É uma poesia servida por um verso insistentemente despido do supérfluo, como o poeta refere neste poema:

 

Na tarde longa

imaginei um longo poema.

Depois,

fui-o encurtando

e reduzi-o a pequenos versos.

 

Quisera que os meus versos

fossem duas palavras apenas,

aéreos como penas,

leves

como tons dispersos…

 

 

A impalpável e fugaz beleza à nossa volta que acontece, talvez, ocasionalmente pressentirmos, surge em alguns dos seus poemas, límpidos, diáfanos, como as pinturas da sua série O poeta:

 

 

do Ciclo NUA

 

V

 

No meu sono

ela flutua

a cada passo…

 

Nua,

riscando o espaço

numa névoa de outono…

 

Apenas nos cabelos

um azulado laço…

 

E assim enlaço

a imagem sua…

 

 

*

A chama ainda perdura

iluminando a noite,

indo acordar os astros…

 

vestindo de alabastros

as ruas derradeiras…

 

desdobrando bandeiras

lá no topo dos mastros…

 

 

*

Essa figura

que sempre volta sem eu querer,

porque abandona a sepultura

do esquecer

e em rosicler

volve e perdura,

iluminando a noite escura

do esquecer?…

 

Uma vulgar figura de mulher!…

 

 

Refere David Mourão-Ferreira no estudo introdutório à edição da sua obra poética, “… a poesia de Saúl Dias, pela impenitente fidelidade a este pessoalíssimo percurso de decantação, constitui um dos mais delicados e rigorosos aparelhos produtores de encantamento que se nos deparam em toda a longa história do lirismo português;…”. E este encantamento no leitor sente-o o poeta no mundo e pela vida em redor, e que a sua poesia procura captar:

 

 

Do ciclo Poeta

 

I

— Vai!

Corre o mundo

encostado

a um bordão de esperanças!

 

Hão-de ferir-te os pés

as pedras dos caminho.

Mas entenderás a conversa dos ninhos

e o riso das crianças.

 

Afecto

 

Tanto afecto disperso pelo mundo!

 

Um cão que não nos deixa.

 

Uma madeixa

de cabelo emoldurada.

 

O olhar fundo

de uma criança pobre.

 

Versos de António Nobre

guardados numa estante.

 

E um Poeta, sem idade,

sentado num bar,

tentando fixar

em castigados versos

um fugidio instante

de felicidade.

 

 

Termino com dois poemas: Envelhecer e Menino; poemas onde ao permanente encanto pela gente e pelo mundo, se acrescenta o encontro da experiência da vida com a infância dos sonhos:

 

 

Envelhecer

 

É bom envelhecer

 

Sentir cair o tempo,

magro fio de areia,

numa ampulheta inexistente!

 

Passam casais jovens

abraçados!…

 

As árvores

balançam novos ramos!…

 

E o fio de areia 

a cair, a cair, a cair…

 

 

Menino

 

Em mim

a infância permanece,

tal num jardim

o canteiro se aquece

de rosas e alecrim.

 

De encontro ao velho muro

que ruir de ilusões!

 

E eu continuo

a ter medo do escuro

e a sonhar com ladroes!

 

Poemas transcritos de Saúl Dias, Obra Poética, 2.ª Ed aumentada, Brasília Editora, Porto, 1980.

 

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Júlio, Aparição, óleo s/tela, de 1972, da colecção moderna da Fundação Gulbenkian.

 

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Poemas de Carlos Maria de Araújo

20 Terça-feira Out 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Carlos Maria de Araújo, Pablo Picasso

O dia vai e noutro se encadeia

e este meu querer mais se liberta

de gestos, palavras, outras peias,

para ser

apenas

uma ideia

in Ofício de Trevas, Poema XII 

 

 

Há um desperdício no gesticular diário de cada um ao correr atrás do efémero, ou momentaneamente relevante, que no final nos deixa as mãos cheias de nada, parafraseando Irene Lisboa. Para a consciência desta vacuidade nos chama a atenção o poema de Carlos Maria de Araújo (1921-1962) com que abro o artigo.

 

São poucos poemas a obra conhecida de Carlos Maria de Araújo (1921-1962). Curta vida e edições pequenas fazem dos seus três livros publicados raridades bibliográficas. 

Talvez o nome do poeta Carlos Maria de Araújo de quem hoje transcrevo alguns poemas, seja familiar aos leitores de Hilda Hilst (1930-2004) pelos poemas de 1967, Pequenos funerais cantantes ao poeta Carlos Maria de Araújo. 

Foi Jorge de Sena quem, na edição de 1969 de Líricas Portuguesas, 3.ª Série, chamou a atenção em Portugal, em termos encomiásticos, para esta poesia: “A sua obra muito breve é por certo das mais puras e notáveis da poesia portuguesa …” e mais à frente acrescenta: “Poesia extremamente despojada e densa, de um intensa severidade formal e de vigorosa emoção contida numa expressão lapidar, é bem a de um oficiante das trevas que tão terrivelmente cobrem o mundo.”

Feita a apresentação, necessária face à pouca visibilidade pública desta poesia, vamos à escolha:

 

 

XVIII

De longe

não se sabe se é orvalho

se são contas de vidro

se apenas a tristeza

e uma flor…

 

 

XVI

Ainda se caíssemos como a noite

 

ainda se o vento nos levasse

em suas longas crinas de cavalo

 

ainda se fôssemos um gesto

de mar se alongando para o longe

 

ainda se não fôssemos semente

do grande medo que se levanta em nós

 

 

XXIII

Ofício de Trevas

 

A nossa fome

senhor

quotidiana

 

a nossa sede

de água

e de justiça

 

a carnagem do sal em nossos pés

as raízes da noite em nossos olhos

 

nosso caminho

senhor

senhor

nosso caminho

 

em nossas mãos

abertas

nosso grito

 

 

II

Oh! A terra

vermelha

do meu corpo,

que tantos pés

já pisaram

em ritmo apressado

e em todos os sentidos

mas onde

jamais alguém ficou

sequer por um instante

adormecido

sonhando

 

 

XI

Já foi um barco à vela 

este meu corpo

hoje um madeiro, algas e salsugem

 

já foi proa de aventuras

e em seu seio

vozes cantaram e arderam lumes

 

rasgou-lhe o peito o amor

um desespero

um arrecife sem nome, de tão grande

 

já foi um barco à vela

este meu corpo

hoje nudez, hoje ausências, hoje brumas

 

 

V

Elegia

 

Os dedos

que percorrem meus cabelos

e aquietam os meus olhos

que afagam os meus lábios

e seguram minha mão

que afastam minha angústia

hoje

não são 

 

 

X

Porque nunca foste nostalgia

 

porque nunca foste insónia

febre de aventura

navio

 

porque nunca foste a lua

vento nocturno

agonia

 

porque nunca foste desatino

luzir de faca

cilício

 

porque és penumbra e quietude

capela nua

vigília

 

és tu esta poesia

minha amiga

 

 

Nota bibliográfica

Poemas transcritos de Carlos Maria de Araújo, Ofício de Trevas, c/retrato e ilustrações de Clóvis Graciando, Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1960.

Líricas Portuguesas, 3.ª Série, vol. I, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Picasso (1881-1973), O Marinheiro (1938), de colecção particular.

 

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Bolas de sabão — Rememoração com a pintura de Manet e o poema de Afonso Lopes Vieira em fundo

18 Domingo Out 2020

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Portuguesa do sec. XX

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Afonso Lopes Vieira

Durante alguns anos o museu Gulbenkian em Lisboa foi-me um lugar tranquilo de convívio com a arte. Acontecia ir estudar para o jardim da fundação, ou para o bar do seu museu, aí almoçar, e algumas tardes deambular no silêncio das salas sem gente, seguido apenas pelo olhar dos vigilantes. Olhava aqui, parava ali, e nas primeiras visitas era poderosamente atraído pela pintura de um velho pintado por Rembrandt (1606-1669). Na gigantesca mancha escura das suas vestes sobressaía uma cabeça pequena que olhava com uma tristeza infinita. E eu, sentado no banco frente à pintura ali ficava longos minutos fascinado, não sei se pela perplexidade de como se consegue pintar a tristeza com tamanha emoção, ou pela interrogação de como a vida consegue trazer tamanha tristeza ao olhar. Será que hoje tenho algumas respostas?

Havia outras pinturas e objectos que me atraiam e atraem a cada nova visita. Os vidros pintados e as cerâmicas do médio oriente, os marfins medievais, ou os livros de horas, são parte de um mundo de fascínio que na demora das visitas me abraçava.

Nos primeiros anos de abertura do museu mostravam-se algumas gravuras japonesas, que pela sua fragilidade, suponho, foram mais tarde retiradas de exposição. Revelação de um género na elegância e sofisticação do seu grafismo, tornou-se uma paixão que me conduziu mais tarde à sua colecção. Mas a pintura europeia continuou anos fora a ser o motor das minhas deambulações por horas entre as salas do museu.

Circulando entre o sumptuoso mobiliário surgia a pintura de intimidades de alcova de Boucher (1703-1770), que um fio invisível puxado por Casanova (1725-1798) me levava à jóia formada pelas pinturas de Guardi (1712-1793), conduzindo-me primeiro a uma Veneza de sonho, e depois de lá ter estado, ao debate entre a realidade e a sua pintura dela, sendo que tantos dos lugares captados pelo pincel do séc. XVIII continuam reconhecíveis à mesma luz de milagre da cidade mágica.

Se os retratos do séc. XVIII da colecção, franceses ou ingleses, nunca me atraíram particularmente, chegado aos impressionistas e afins é outra história. 

Quando pintei, acontecia ir ao museu estudar uma pintura de Monet (1840-1926) em particular que me fascinava e fascina, O Degelo de 1880, retrato da fria e avassaladora beleza de uma natureza perante a qual o homem é nada. Perscrutava cada pincelada na sua textura e cor, e afastando-me da pintura avaliava o efeito no conjunto que a distância produzia. Em pausa deste estudo olhava para a esquerda, e lá estava Madame Claude Monet pintada por Renoir (1841-1919) em 1872-74, pousada num canapé, com ar de quem pertence, não a um ambiente de salão mas a um universo rústico. À direita olhava de soslaio um jovem um tanto empertigado na sua elegância citadina, apreciador de intimidades com bailarinas, como sabemos, pois tratava-se de um auto-retrato de Degas (1834-1917) em 1863. E entre estes polos segui eu fascinado com a arte de pintar de Monet. Um pouco mais afastada estava então a pintura de Manet (1832-1883), O rapaz das bolas de sabão de 1867, pretexto desta deambulação induzida pelo poema de Afonso Lopes Vieira (1878-1946), que a seguir transcrevo.

O poema capta com rara felicidade, servindo-se da frágil beleza e brilho das bolas de sabão, e do encanto de as soprar, a realidade do homo faber que, se por momentos se entusiasma no seu fazer, rapidamente esse conseguimento se desvanece na sucessão dos efémeros de que a vida se faz, quais

… vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

…

Esta extinção antecipadamente conhecida não é suficiente, como sabemos, para impedir a procura continuada do belo que a vida trás. E pela metáfora da aventura da vida segue o poema:

…

E [a criancinha] continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

…

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Eis o poema na totalidade:

Bolas de sabão

Assenta-se no chão a criancinha

cruza as pernitas,

… e na ponta do tubo incham e crescem 

aqueles vagos, pequeninos mundos

que, como todos os mundos, evolucionam e desaparecem.

Já profundos, os seus olhos

contemplam nessas quebradiças bolas 

a sua aérea evolução etérea.

Débeis, duma ideal fragilidade 

tão frágil que, suspensa e receosa,

inda mais leve, mais, que suspirando,

com vago sentimento de ansiedade

é que o contido bafo as vai lançando…

São corpos cuja alma vaporosa

apenas é um sopro de criança.

E continua, absorta; o rosto sério,

como de quem trabalha e não descansa; 

cresce uma…, e parte-se; outra…, já soçobra.

E brincando, embebido no mistério, 

esse poeta cria a sua obra…

Mas o sol, que ali vem do céu distante,

trespassa-as, colorindo-as reverbera:

e então a luz cintila deslumbrante 

em cada efémera esfera.

Cada raio de sol que vem pôr

o seu divino ser, vai, glorioso,

criando com poder maravilhoso

a maravilha da cor!

Assim por elas, num deslumbramento,

canta, perpassa, brilha à claridade,

este abismo infinito dum momento: um pouco de Eternidade.

Afonso Lopes Vieira

in O Pão e as Rosas, Livraria Ferreira — Editora, Lisboa, 1908.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Eduard Manet (1832-1883), As bolas de sabão, de 1867. A pintura pertence à colecção do Museu Calouste Gulbenkian de Lisboa.

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Merícia de Lemos — O amor talvez seja o que do nada resta

30 Domingo Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Cícero Dias, Merícia de Lemos

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

…

 

 

A obra de Merícia de Lemos (1913-1996(?)) é uma obra poética decantada de excessos retóricos onde por vezes o verso cintila, e poemas há que são uma absoluta revelação do eu pela palavra.

 

 

Onde Estive?

Andei esquecida da morte

anos e anos

numa graça de amor

numa harmonia de fontes cantar

e que mais canta

 

Andei esquecida da morte

dias e noites

— o tempo mais não é que sol e sombra

 

Andei esquecida da morte

— o coração tornado nova estrela

 

Andei a viver!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Este viver que o poema mostra reflecte a sua poesia. Poesia que fala “com elegante fantasia e sóbria segurança das suas emoções e mágoas de mulher” na penetrante apreciação de Jorge de Sena  na antologia Líricas Portuguesas 3.ª série. 

Nos poemas que seguem leremos da emoção do desejo e da entrega contados com essa “sóbria segurança”: Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

…

Para o homem o amor é praia aprazível

onde é bom pôr-se nu.

Para a mulher um desejo de mar

anseios de sereia

sem coragem, afundados em lagos

às vezes nem profundos.

…

do poema Catedral I, Tangentes

 

 

Tua

Apenas vestida pelas tuas mãos

estou nos teus braços toda nua.

Sôfrego o teu corpo chama pelo meu,

e os poros da tua pele a acariciar-me

são como mil pequenas bocas

que me beijam

 

Quando estou completamente tua

fecho os olhos para que te não vejam.

Não quero que eles sintam tanto como eu.

 

E entre os desejos mais vãos

e as aspirações mais loucas

eu queria que este nosso abraço

em que eu gosto de amar-te

e tu gostas de amar-me

abolisse entre nós até o próprio Espaço

e que nada pudesse de mim separar-te.

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

Vencida 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

senti as alegrias do amor que começa

e dei-lhe igual altura à da amizade.

Fui sincera, leal e espontânea, meiga, ardente, apaixonada.

Senti o amor, a fé, a esperança.

Senti a violência da paixão na tortura da carne a desejar.

Senti a ansiedade curiosa do espírito em busca de outro espírito

e senti em mim o que é verdade.

 

Porque quis ser mulher no teu abraço de homem,

conheço o rasgar da luta, do desespero, da dor, do orgulho e da renúncia.

Conheço a fraqueza que me fez vencida.

Conheço o poder que te dei e me domina.

 

Sou a pedra rolada pelo rio e pelo oceano,

sou a erva pisada que não dá malmequer,

sou o grão lançado à terra e que não germinou,

sou a pata do animal desmembrado,

o tronco do pinheiro abatido,

a trave da casa que ruiu,

o leme do barco afundado pelo temporal

— Porque quis ser mulher no teu abraço de homem!

in Merícia de Lemos, Tangentes

 

 

A voluntariosa entrega aqui contada tem uma contraparte no esgotamento da paixão, e o poema Domingo dá dela conta:

 

 

Domingo

As aspirações mais exaltadas

em abismos profundos

separadas pela realidade do quotidiano

 

Os pequenos gestos repetidos do dia-a-dia

repetidos interminavelmente

repetidos automaticamente

repetidos necessariamente

repetidos resignadamente

repetidos cansativamente

repetidos exasperadamente

repetidos exaustivamente

repetidos inconscientemente

 

Repetido o beijo do “até logo”

é já um adeus ignorado

 

O acordar 

o adormecer

deixam-nos em abismos profundos

separadas pela realidade do ontem hoje amanhã

das ambições antigas vivas futuras

 

Nesse domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambição de agora agora

e já

para cada folha uma gota de orvalho

que o Sena amoroso, deslizando colhe sôfrego

enlaçando Paris apaixonado lento e insistente

apertado no mesmo abraço

a mulher desmaiada

ultrapassado do orgasmo o êxtase

atingida a luxúria exasperada e pura

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Ambicão ambições

de carregar as roseiras de violetas

apanhadas às mãos cheias, não importa onde

às acácias mimosas vergar os galhos

de cerejas aos cachos

dos lírios do jardim delirantes

voarem para o cipreste sentinela à porta

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

os melros passeavam ousados e sem medo

atrevidos na relva

nos muros as trepadeiras, estremecendo

ao canto dos pássaros em mal de bem querer

floriam em pétalas de lua e aos de espuma

fitas de olhos em laços de afecto

colares de estrelas negras na verdade branca

secretos luxos da minha ideia

renegando o tempo

 

Nesse Domingo em que eras tu o meu amor

 

Era Domingo

outro Domingo

Domingos

segunda 

terça

quarta

quinta

sexta-feira 

sábados

repetidos

os pequenos gestos do dia-a-dia

repetidos intencionalmente

repetidos carinhosamente

repetidos tristemente

repetidos raivosamente

repetidos teimosamente

repetidos dolorosamente

repetidos passivamente

repetidos distraíramo-nos

 

e o beijo do “até logo”

foi adeus definitivo

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Com esta finitude onde a esperança residiu aproximamo-nos do final deste périplo com dois poema: primeiro o poema Amor que citei a abrir, o qual remata com a reflexão O amor talvez seja o que do nada resta.; e a seguir o poema republicado com o título Testamento no livro Tangentes, e onde um desejo de amor pós-morten se reflecte.

 

 

Amor

De um amor morto

sepultado no tempo

surge em condensação

duma afeição rara

a beleza do abraço 

mais íntimo

mais voraz

mais nu

 

O arco-íris risca no firmamento

o desfio ao Sol

Brilha o luar mais do que a Lua

Sente-se o perfume da rosa

e não a rosa

É poesia a silenciosa

distância entre a emoção 

e o seu canto

 

É poema ainda o já poema?

 

O amor talvez seja o que do nada resta.

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Testamento

Antes de morrer

vou dizer-te as minhas últimas vontades,

vou fazer

o meu testamento.

 

Não quero que o meu corpo vá

para jazigo ou campa rasa.

Quero, depois de bem fria,

ser incinerada

e, já em cinzas, ao vento

por ti lançada.

 

Não quero que tenhas tristeza,

mas não queria morrer sem a certeza

que terás saudades.

 

Quando vires no ar o pó

a esvoaçar,

se vier pousar em ti,

não o sacudas, deixa-o ficar.

Posso saber-te só

e ser eu a fazer-te companhia.

Se nesse momento

algum pobre te pedir, dá,

dá e sorri.

 

Tudo quanto tenho para ti será.

Deixo-te: a emoção que se condensa

e em versos se extravasa.

Deixo-te: a minha ternura imensa.

Deixo-te: os beijos que te não dei

e a felicidade que sonhei.

in Merícia de Lemos, Pássaro Preso

 

 

Termino com dois poemas: o poema-metáfora da mulher, Rosa, Rosae, e a reflexão sobre o sentido da vida em Viver.

 

 

Rosa, Rosae

Dá-me rosas, outras rosas

dá-me mais rosas amor.

 

Já olhaste bem as rosas?

Rosas-bocas rosas-olhos

e há rosas coração.

Há rosas que são sorrisos

e rosas que são paixão 

Rosa-beijo, rosa-abraços

e rosas-mãos.

 

Numa noite de luar

uma grande rosa aberta

acenou-me num jardim:

corri logo para ela

— seria a rosa-aventura?

 

Pela tarde num caminho

à hora em que o sol cansado

pensa em ir-se deitar

encontrei uma roseira

com uma rosa em botão

muitas folhas e espinhos

— e estava ali porquê?

Linda rosa cor-de-rosa,

sem saber…

in Líricas Portuguesas 3.ª série

 

 

Viver

A terra

insegurança 

de esperança de medo

motivações

os olhos tropeçando

os sentidos a desbravar

o amor a dor a alegria

o rir contente

dada ao homem

a morte no instante exacto

in Merícia de Lemos, 12 Poemas

 

 

Nota bibliográfica

Merícia de Lemos, Pássaro Preso, Lisboa, 1946, s/indicação de editora e com 3 desenhos de António Dacosta. 

Merícia de Lemos, Tangentes, Edições Ática, Lisboa, 1975. 

Merícia de Lemos, 12 Poemas, ilustrações de Cícero Dias, INCM, Lisboa, 1999.

Líricas Portuguesas 3.ª série, selecção, prefácio e apresentação de Jorge de Sena, 2 volumes, 3.ª edição, Edições 70, Lisboa, 1984.

 

Abre o artigo a imagem de um desenho de Cícero Dias (1907-2003) incluído no livro 12 Poemas.

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Eros na praia — poemas de Dórdio Guimarães

12 Quarta-feira Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Dórdio Guimarães, Tom Wesselmann

Hoje      há um melancólico mar

que afeiçoa tuas coxas jovens

de mulher

 

Na ternura da pensativa tarde

nua e só

teus olhos cantam uma canção que se vê

 

triste

…

do Poema 9

 

 

Os amores de Verão, quando vividos na juventude, ainda que efémeros, acompanham-nos vida fora como momentos de vivida felicidade absoluta. Já por mais de uma vez aqui o referi e é sempre agradável lembrá-lo. E hoje a lembrança vem a pretexto de alguns poemas de um livrinho de juventude de Dórdio Guimarães (1938-1997).

É erótica a poesia de Dórdio Guimarães de que tenho notícia. Com a obra publicada em vários pequenos livros, alguns são hoje raros. É de um desses livros em edição de autor, tinha o poeta 22/23 anos, Mar de Verão (1961), que hoje transcrevo alguns poemas. 

…

Há o longo perfume do amor

no teu corpo.       a vibrar

voluptuoso.      em estertor

como um pássaro.      na dor

…

do poema 17

 

 

São poemas/relato do incêndio de uma paixão de verão, sem o rebuscado da linguagem poética que mais tarde a sua poesia veio a conhecer, (talvez influência de Natália Correia com quem posteriormente foi casado, e é exemplo maior o longo poema que esta escolheu para encerrar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica).

Estes poemas de juventude, raros pela franqueza dos relatos, e incomuns na poesia portuguesa onde à época o pudor era rei, dir-se-á, não são obras-primas! Não são. Mas são poemas que preenchem um vazio no panorama da poesia erótica em Portugal, tão rara dela, e onde a linguagem dá conta do calor dos corpos em desejo, sem eufemismos ou vulgaridades.

Poema 16

No silêncio destes corpos mudos

desce o tempo      hora a hora       lento

manto submarino      de algas   

sargaços      peixes azuis

objectos vivos ou inúteis

do estranho mundo desolado

do pensamento

 

suavemente        liquidamente

um sol de fogo no mar arrefecia

um seio teu cedia        à minha boca humedecida

distante        violeta

o grasnar de uma gaivota desaparecia

no imenso dia que morria

 

e nós

nós dramaticamente

abstractos no espaço

sem cansaço

amando as nossas carnes

insignificantemente

 

 

Poema 14

Pela primeira vez       os dois

vivemos a narrativa do mar      prometido

 

Pela primeira vez       os dois

nus         raciocinados

vivemos o ardor

do sal viajando o sangue

 

a pureza do vento desalinhando

estes cabelos rígidos da cidade

a memória do tempo dissipada

pela repetição das ondas      na harmonia da praia

 

Nossos olhos são uma janela aberta

 

Pela primeira vez        os dois

originais

vivemos no mar        a descoberta!

 

 

Já com outra maturidade poética são estes dois poema do livro Os Cinco Sentidos de Lisboa, Galeria Panorama, Lisboa, 1970, com que termino esta volta.

 

Dois Poemas

 

1

como guelras abertas

a todo o comprimento dos corpos

os amantes bebem-se babam-se

cospem-se respiram-se

 

lisboa é o lençol a colcha

talvez a coxa do outro

e o tejo é mais azul

que a química do ar

 

aquilo irrequieto que escoicinha

quieto o potro

 

2

luxo de pérolas a abrir

te amacia o asfalto

e pernas brancas de fêmea

te apelam de salto alto

se excita o útero vulcânico

seu ciciar de granito

vagina imensa que solta

no tejo a voz do apito

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004), Seascape No. 22, 1967, colecção do artista.

 

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Poemas de Alberto de Lacerda

28 Terça-feira Jul 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alberto de Lacerda, Maria Helena Vieira da Silva

Apesar de tudo há um caso de amor

Entre mim e a vida

1958

in Palácio

 

*

A beleza é um oceano

Aonde o olhar se perde

E regressa

Transfigurado

Londres, 16 de Junho 99

in Horizonte

 

Eros

O meu olhar descia como um íman

Ao centro mais ardente do teu corpo

22.5.62

in Exílio

 

Ao ler os poemas de Alberto de Lacerda (1928-2007), deparamo-nos com uma poesia requintada, progressivamente depurada na forma, onde a adjectivação é contida, atravessada por uma constante densidade intelectual. Por vezes a emoção irrompe neste dizer poético, mas é sobretudo a justeza verbal da observação na matéria de poesia que atrai, perfeito trabalho sobre a língua tornada poesia, e os curtos poemas citados a abrir são exemplo.

Para falar desta poesia sigo o desejo expresso do poeta: “… Que os meus poemas fossem um comércio amoroso. Ao longo do tempo. Dos tempos. Livres do meu rosto. Do meu corpo. Do amor sem explicação e sem limite que os fez nascer a todos, … Livres da minha passagem pela terra. Do meu nome. Isentos de biografia.

                                                                                    Londres. Fev. de 1964.”

in Oferenda II

 

E no poema Cântico espraia o seu propósito:

 

Cântico

Não consentir a fórmula

Não produzir nenhuma 

Nunca pisar os calos

Não desmanchar a cama

Dos sonhos necessários

Não lançar mais tinta

Sobre a mesma tela

Volvidos tantos anos —

Não deixar de beber

O vinho da esperança

Dizer dizer tudo

Dizer quase tudo

Em palavras sem jaça

E um amor sem limites

Por todos por tudo

1.9.63

in Cor: Azul

 

A fechar as duas colecções de livros de poesia, Oferenda I e II, encontra-se uma extensa citação de Bertrand Russell, funcionando esta como retrato desejado do poeta, e da qual retiro este fragmento:

“Três paixões, simples mas infinitamente poderosas, têm governado a minha vida: o desejo do amor, a busca do conhecimento, e uma compaixão esmagadora pelos sofrimentos da humanidade. …”

Bertrand Russell

 

Na digressão prolongada pela poesia de Alberto Lacerda que segue, os detalhes de biografia ficam ausentes, alargando o horizonte de uma poesia de reflexão entre o eu e o mundo. Serão sobretudo poemas do Eu que transcreverei. De fora ficam extensos poemas/comentário sobre relevantes acontecimentos do século XX que o poeta viveu ou de que teve notícia.

 

Janela

Sou uma janela onde se debruçam

todas as coisas da vida.

Não sobre mim: sobre a vida

que passa pelo meu ser

 

E tudo é longe

e aqui.

 

Ser poeta é não pertencer

nem a si.

in 77 Poemas

 

 

No Corpo

Matéria de poemas? Nunca, nunca!

Tivesse eu a resposta dos teus olhos

Continuação dos meus — essa a poesia

Que eu busco desde o vértice do mundo

Esse o tufão glorioso que varresse

As míseras palavras

O sofrimento atroz

 

Matéria de poemas? Sim, cantando

Dois corpos a entrega luminosa

Na afirmação cumprida da existência —

Então, palavras

São triunfos, são Ícaros sem queda

Necessidade linda da nudez

Não míseros silêncios ruidosos

Mas música das esferas

20-11-1965

in Oferenda II

 

 

A um Deus desconhecido

Estou à espera do sol

Que há-de passar de novo

Nesta varanda

 

As raparigas de bronze lânguido

Da minha infância

Continuam a passar nesta varanda

Mesmo quando as não vejo

 

O sol

O sol há-de surgir

Os dez raios de oiro

Das tuas mãos desconhecidas

 

Como te chamas?

23-2-1965

in Oferenda II

 

 

*

Chove lá fora como terá chovido

muitas vezes — no céu da minha infância.

Tão poucas as lembranças que nos ficam

da beleza imortal que foi de outrora!

…

15.10.45

do poema Véu

in 77 Poemas

 

Depois desta busca poética de si, vamos ao encontro do outro:

 

*

Seguias tu pela estrada

e eu seguia plo carreiro:

tão fácil, movimentada;

eu, tão tardo caminheiro.

 

Os pés à vista de ti

inda mais se me toldavam;

se andava junto ou sem ti

meus sentidos ignoravam.

 

Ainda sou caminheiro

ainda vais pela estrada:

sempre mais lento o carreiro,

e tu mais longe na estrada.

21.7.45

in 77 Poemas

 

 

A festa recusada

E nasce entre clarins amachucados

O desejo de nunca mais ouvir

O som de bosques puros deslumbrados

Que os deuses não nos deixam descobrir

 

E nasce aquele som viril e brando

Da minha voz estranha que te despe

Da minha voz ardente imaginando

O amor que passou e que não deste

 

E nasce entre cilícios da orquestra

No soluço mais puro e mais oculto

A presença abolida de outra festa

Que fora prometida no teu vulto

 

A festa recusada que tornara

Os dois um rosto só medalha rara

5.11.62

in Exílio

 

 

*

…

Os dias sem ti

São redes que os séculos esticam 

De ansiedade

 

Dias sem ti

Sem o tocar das tuas mãos

Sem os teus lábios sobre 

Os meus lábios súplices

Sem a tua voz que modula

A exactidão serena

De dois corpos contidos

Num só olhar

Boston, 25 de Setembro 90

de poema s/título in Átrio

 

 

A tua ausência

A tua ausência resume

Como um grito a minha vida.

Sou tu, ao longe —

Até quando?

 

Sou ausência, a tua ausência.

Fiquei deserto de mim.

 

Sou dois olhos marejados

Cravados no horizonte.

3.10.62

in Exílio

 

 

*

Para ficar o universo

Equilibrado de novo

Para que a terra não fosse

Aos poucos arrefecendo

Teu rosto junto a meu rosto

Tudo o mais a esse ritmo

Simplesmente obedecendo

28-2-1965

in Oferenda II

 

 

*

E agora tomba-me a cabeça

Sobre o lado da solidão

…

4.11.62

do poema Declive, in Exílio

 

 

Amor perfeito

Não há

Nunca houve

 

Centenas

Num canteiro

Que contemplo

Surpreendido e distante

Londres, 5 de Junho 97

in Horizonte

 

 

De um soneto dos dezanove anos

Sonhou-te o meu amor. Nunca vieste!

De tanto te sonhar meu coração

decerto já em sonho os conheceste.

 

Não nos pertence a nossa inquietação!

Vem quebrar o encanto em que viveste

tantos anos na minha solidão!

in 77 Poemas

 

 

*

No sol que a pouco e pouco declinando

Irá meus sonhos transportar à noite

Revejo em fuga aquele esplendor de quando

O trigo se alternava com a foice.

 

Era a imagem de uma tarde infinda,

Redoma aberta de uma luz doirada.

Certos amigos não tinham ainda

Desaparecido ao voltar da estrada.

 

Ficou esse horizonte na lembrança,

Linha a perder de vista no olhar.

E é este o sol, o mesmo, na mudança,

E é este o trigo, a foice, e à noite, o luar.

 

O amor, a própria morte nos aumenta

Sua luz obscura — que nos alimenta.

Yêvre-le-chatel, 25 de junho 90

in Átrio

 

 

Para encerrar, um vislumbre da carga erótica que por vezes surge neste poemário:

 

*

Eu busco a maravilha duma outra nudez

Que os deuses partilham com certos mortais

1958

in Palácio

 

 

*

Há dias em que sou um corpo que pegou fogo

E ficou todo

Em ferida

Outubro de 64

in Oferenda II

 

 

*

Deixa navegar no silêncio

A alegria das nossas cinturas

12-6-1964

in Oferenda II

 

 

J.

O ritmo o ritmo intacto desse corpo

A graça enxuta dos gestos desse corpo

E a luz que emana quando as nossas noites

Se encontram se entregam se confundem:

Beijos estrelas vendavais e praias

in Palácio

 

 

O livro SONETOS, edição do Autor em Veneza no ano de 1991, merece uma referência autónoma, tanto pela unidade formal — são 147 sonetos, como pela unidade temática. Relato explícito de paixão/paixões homossexuais, onde a exaltação da posse, a angústia da ausência ou da perda se espraiam, o conjunto dos sonetos, revelando a mestria oficinal do poeta, apenas em alguns falha no apuro estético que toda a sua obra revela. Provavelmente o canto poético da homosexualidade já estava presente nos últimos quatro poemas transcritos, mas neste livro ela surge explícita e assumida.

Transcrevo apenas dois sonetos do livro dando conta de momentos de uma paixão: o encontro, e a sua memória. 

 

Soneto 40

Mas onde fica o teu dizer ardente

Onde a palavra não formule mais

Do que a curva da anca adolescente,

Filho dos deuses e dos animais?

 

O teu dizer ardente: o ar em arco

Reteso, duplo, sobre o peso duplo

Dos nossos braços: busco essa palavra

Que o teu corpo segreda quando nu

 

Se transforma no meu e eu me transformo

Na poesia do mundo que sonhaste

Pôr em verso. Silêncio. Não há forma.

Há essa maravilha que fixaste

 

Somente no que és e não consente

Que o saibas, meu amor, inteiramente

Lisboa

8 Agosto 70

 

 

Soneto 92

De noite, era de noite que chegavam

Teus lábios como versos que mordiam

Minha contemplação febril e casta.

De noite, era de noite que eu morria

 

Quando subitamente me surgias

E a casa por completo transformavas

E foi de noite anos depois no estio

Que em Lisboa nos fomos desvelar,

 

Nu contra nu, a assombração inteira,

Terramoto dos astros na cidade,

Simplicidade humana derradeira,

Mistério de presença e já saudade,

 

De que nem homem nem mulher nenhuma

Dividirá a maravilha una

Londres

14 de Junho 72

 

 

Vai longa a viagem, terminemos com este Impromptu:

 

Impromptu

E assim te foste, luz de vaga-lume,

feita de segredo e brevidade.

Impossível definir aquele perfume

que o teu surgir me trouxe nessa tarde.

in 77 Poemas

 

 

Nota bibliográfica

Alberto de Lacerda, Oferenda I, INCM, Lisboa, 1984. Contém os livros

Alberto de Lacerda, Sonetos, capa de Vieira da Silva, edição do autor, Veneza, 1991.

Alberto de Lacerda, Oferenda II, INCM, Lisboa, 1994.

Alberto de Lacerda, Átrio , INCM, Lisboa, 1997.

Alberto de Lacerda, Horizonte, INCM, Lisboa, 2001.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), Le jeu de cartes (1937), de quem o poeta foi amigo, e por vezes dedicatária de poemas:

…

Irmã de Camões

Maravilha fatal 

Da nossa idade

Redentora heróica

Duma raça triste

Ó majestosa

Senhora guardando

Nossa glória alta

O troféu de luz

O deslumbramento

Que mais nos faltava

No século negro

Ó guarda serena

Dum monumental

Trágico e sublime

Segredo que esplende

Para toda a parte

Como o sol que brilha

Apesar de tudo

Na tua pátria o mundo

E em Portugal

Lisboa, 8.11.61

do poema Homenagem a Maria Helena Vieira da Silva

 

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O cheiro de Lisboa e poesia popular a Santo António

14 Domingo Jun 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa antiga, Poesia Portuguesa do sec. XX, Poesia Portuguesa sec XIX

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Augusto Gil, Francisco Xavier da Silva, J. Leite de Vasconcelos, Maria Helena Vieira da Silva

Regressei, e não consigo dizer com a canção popular: Cheira bem, cheira a Lisboa. Lisboa cheira a tristeza. Nem o sol que por vezes surge a consegue dissolver. Tempo de festa pelos Santos Populares era este, e nestes dias a festa está ausente. Aquela alegria espontânea que se apossava de nós sem razão aparente, apenas por circular entre a multidão disponível e alegre, desapareceu. Estão aí as músicas que faziam o pano de fundo das festas; e a memória de as ter vivido. São apenas um pálido arremedo da sua alegria, que voltará, espero.

Se pelo país a devoção a cada um dos santos populares: S. António, S. João, e S. Pedro, é variável, e cada povoação tem o seu preferido, em Lisboa, Santo António tem a primazia. Santo brejeiro na imagem popular, a ele se associa a alegria que por estes dias invadia a cidade:

 

Ó meu Santo galhofeiro,

Ó meu Santo brincalhão,

Descei do vosso poleiro,

Vinde ouvir minha canção…

 

Comia-se, bebia-se, e amores efémeros ou duradouros começavam. Seja ou não a tradição o que era, é facto que a alegria associada às festas de Santo António tem continuado, adaptando-se às peculiaridades do tempo que passa, e este ano não foi excepção. À espera que a alegria partilhada nas ruas esteja de regresso no próximo ano, continuemos esta digressão por poesia de recorte popular.

A invocação ao Santo citada antes, é o início de um poema do século XIX, O Casamenteiro. Foi escrito por Francisco Xavier da Silva (1832-????) em véspera de Santo António, no ano de 1867(1), e é retrato de um sentir profundamente enraizado que associa a imagem de António a casamentos felizes:

…

Tu ó Santo milagroso 

Atende seus requerimentos,

Faz este povo ditoso;

Decreta mil casamentos…

…

 

Os riscos da vida urbana fizeram desaparecer as fogueiras de Santo António onde se queimava alecrim, perfumando a noite, e nós, moços, numa inebriante alegria, saltávamos, na emulação de ver quem cobria a fogueira mais alta. O baile fazia-se na sua proximidade, numa partilha socialmente indistinta:

…

Aqui em torno à fogueira,

Santo de tantos primores,

Vem a cachopa altaneira 

Dançar com os seus amores…

 

Vem da cidade o janota,

Vem da montanha o lapónio,

Reina o prazer, a risota,

Seu patrono é Santo António.

…

 

Além de evocar tradições enraizadas nas festas de Santo António, o poema sublinha também, a terminar, a faceta brejeira que a crença popular associa ao santo:

…

Mancebos  beijai-lhe o manto

António é vosso rival!

 

Ele às donzelas quer tanto…

Mas não julguem que é por mal…

Quebra as bilhas por encanto…

Manda-as ir ao roseiral…

 

Estes versos ecoam uma quadra popular recolhida por  J. Leite de Vasconcelos (2) que dá também ela conta de comportamentos do santo, não tão santos assim:

 

Santo António, com ser santo, 

Também teve os seus amores;

Quando os santinhos namoram, 

Que farão os pecadores?

 

ou está outra:

 

Santo António, por ser santo

Não deixa de ser velhaco:

Levou as moças à fonte,

Levou duas, trouxe quatro!

 

Outras quadras populares alusivas ao santo há, e transcrevo desta recolha mais duas que referem amores e casamentos, a primeira com a novidades de pedir marido rico, a segunda pede protecção e sublinha a capacidade de o santo fazer milagres de amor:

 

*

Ó meu rico Santo António,

Meu santo casamenteiro,

Dai-me vós um bom marido,

Que tenha muito dinheiro.

 

*

O Santo António é bom santo,

Pois faz milagres de amor;

Hei-de a ele ir confessar-me

E há-de ser meu protector.

 

O mesmo Francisco Xavier da Silva, autor do poema de início, publicou em 1871 uma colecção de cantigas populares (3), na qual recolho estas quadras a Santo António, onde a mesma imagem do santo casamenteiro transparece:

 

*

Casai-me meu Santo António 

já que és tão milagreiro, 

conhecido em toda a parte 

como bom casamenteiro.

 

*

Vou rezar um padre nosso 

ao meu rico Santo António 

para que me case cedo 

e me livre do demónio.

 

*

Ó meu rico Santo António

rogai ao vosso menino 

que faça mudar depressa 

Este meu cruel destino. 

 

Numa abordagem diferente da cumplicidade entre o santo e Jesus referida na quadra anterior, Augusto Gil (1873-1929), num poema há décadas assimilado pela memória popular, O Passeio de Santo António, retrata além de uma simpática bonomia, imagem de marca do santo, uma atitude tolerante de António relativamente a comportamentos que a igreja condenava, protegendo e desviando a atenção do menino Jesus (a igreja) das manifestações amorosas do par entrevisto:

 

Augusto Gil — O Passeio de Santo António 

 

Saíra Sto. António do convento 

a dar o seu passeio costumado, 

e a repetir num tom pesado e lento 

um cândido sermão sobre o pecado. 

 

Andando, andando sempre, repetia 

o divino sermão, piedoso e brando, 

e nem notou que a tarde esmorecia, 

que vinha a noite plácida baixando. 

 

E andando, andando, viu-se num outeiro

com árvores e casas espalhadas,

que ficava distante do mosteiro

uma légua das fartas, das puxadas.

 

Surpreendido por se ver tão longe, 

e fraco por haver andado tanto, 

sentou-se a descansar o bom do monge 

com a resignação de quem é santo. 

 

O luar, um luar claríssimo, nasceu: 

num raio dessa linda claridade, 

o Menino Jesus baixou do céu, 

pôs-se a brincar com o capuz do frade. 

 

Perto uma bica d’água soluçante 

juntava o seu murmúrio ao dos pinhais; 

os rouxinóis ouviam-se distante; 

o luar mais alto iluminava mais. 

 

De braço dado para a fonte vinha 

um par de noivos, todo satisfeito: 

ela trazia ao ombro a cantarinha; 

ele trazia o coração no peito… 

 

Sem suspeitarem de que alguém ouvisse 

trocaram beijos ao luar tranquilo…

o Menino, porém, ouviu e disse: — 

oh! Frei António, o que foi aquilo? 

 

O Santo, erguendo a manga do burel 

para tapar o noivo e a namorada, 

mentiu numa voz doce como o mel: 

— não sei que fosse… eu cá não ouvi nada. 

 

Uma risada límpida, sonora, 

vibrou com timbres d’oiro no caminho. 

— ouviste, Frei António? Ouviste agora? 

— ouvi, Senhor, ouvi; é um passarinho. 

 

— Tu não estás com a cabeça boa; 

um passarinho e a cantar assim? 

E o pobre Santo António de Lisboa 

calou-se embaraçado. Mas por fim 

 

corado como as vestes dos cardeais, 

achou esta saída redentora: 

— Se o Menino Jesus pergunta mais 

queixo-me a sua Mãe, Nossa Senhora. 

 

Voltando-lhe a carinha contra a luz, 

e contra aquele amor sem casamento 

pegou-lhe ao colo e acrescentou: 

— Jesus são horas. E abalaram para o convento. 

 

in Augusto Gil, Luar de Agosto, 1909.

 

Notas

 

(1) in Francisco Xavier da Silva, Ensaios Poéticos, Tipographia Universal, Lisboa, 1868.

(2) in Cancioneiro Popular Português, coligido por J. Leite de Vasconcelos e coordenação de Maria Arminda Zaluar Nunes, III, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1983.

(3) in Cantigas Populares colecionados por Francisco Xavier da Silva, Porto, tipografia de Rodrigo José de Oliveira Guimarães, 1871.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Vieira da Silva (1908-1992), Tempo de Paz, de 1985, de colecção partícular.

 

 

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DIZER MULHER …segundo RUY BELO

21 Sábado Mar 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Ruy Belo

Embora trate habitualmente no blog de um mundo de mortos, é a eternidade da sua fala e do que ela nos pode dizer, a nós vivos (ou nem tanto), quando a escutamos na sua intemporalidade, o que leio.

No ano em que nasci, Hollywood ofereceu ao mundo pela mão de Howard Hawks o filme Gentlemen Prefer Blondes, ou como se chamou em português Os Homens Preferem as Louras.

Filme onde passeiam o contraste da sua beleza Jane Russell e Marylin Monroe, que

na voz derramada canta

os segredos do prazer.

Anatomia única

de mamilos divergentes

no movimento das ancas

incendeia coxas e almas

em labaredas faustosas

de sonhada epifania.

Vê-lo hoje acaba com qualquer depressão decorrente da crise. Temos tudo: a graça da história, a beleza das mulheres e o eterno número de musical Diamonds Are A Girl’s Best Friend.

Numa leveza de champanhe a que talvez falte a elegância de Lubitsch, Hawks leva-nos entre o efémero e o eterno na mestria da sua realização.

Embora seja um hitchcockiano entusiasmado, a quem os filmes de John Ford lavam a alma, acabam por ser alguns filmes de Hawks que prefiro acima de todos. E desde logo aquele Rio Bravo, retrato absoluto da amizade entendida no companheirismo solidário, no respeito pelas opções de cada um, e onde o desafio da morte revela o valor de cada ser humano.

Fez Hawks alguns filmes para a minha ilha deserta além destes, onde atrizes, mulheres maiores, brilharam: Katharine Hepburn (A Grande) e Lauren Bacall (A Mulher-Desafio) para quem um dia escrevi este texto:

A voz está lá

num esplendor de assombro

capaz de sussurrando ao ouvido

desencadear cascatas de orgasmos.

E o resto?

continua perfeito.

A boca,

a lamina do olhar,

a pose,

apenas embrulhados nas rugas do tempo.

A idade na evidência dos seus sinais.

Há mulheres que não imaginamos no dia seguinte

são apenas o motor do antes

desencadeiam o desejo e a paixão.

No entanto,

fazem-nos sonhar com o depois.

Como foi?

Como será?

Escrever é desconcertar, perturbar e, em certa medida, agredir. (Ruy Belo)

A escolha iconográfica de uma mulher mutilada pelo cancro da mama, num artigo que passeia pela beleza da mulher, desafia-me sobre a perenidade e o efémero, e sobretudo sobre o valor das escolhas que fazemos.

Deixo-o agora, leitor, com a superior leitura da beleza feita por Ruy Belo.

O poema foi inicialmente publicado no livro TRANSPORTE NO TEMPO, em 1973.

Transcrevo a versão incluída na reedição num volume de TODOS OS POEMAS publicada por Assírio & Alvim em 2000.

NA MORTE DE MARILYN

Morreu a mais bela mulher do mundo

tão bela que não só era assim bela

como mais que chamar-lhe marilyn

devíamos mas era reservar apenas para ela

o seco sóbrio simples nome de mulher

em vez de marilyn dizer mulher

Não havia no fundo em todo o mundo outra mulher

mas ingeriu demasiados barbitúricos

uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha

ou suspeitou que tinha errado a vida

ela de quem a vida a bem dizer não era digna

e que exibia vida mesmo quando a suprimia

Não havia no mundo uma mulher mais bela mas

essa mulher um dia dispõs do direito

ao uso e ao abuso de ser bela

e decidiu de vez não mais o ser

nem doravante ser sequer mulher

O último dos rostos que mostrou era um rosto de dor

um rosto sem regresso mais que rosto mar

e toda a confusão e convulsão que nele possa caber

e toda a violência e voz que num restrito rosto

possa o máximo mar intensamente condensar

Tomou todos os tubos que tinha e não tinha

e disse à governanta não me acorde amanhã

estou cansada e necessito de dormir

estou cansada e é preciso eu descansar

Nunca ninguém foi tão amado como ela

nunca ninguém se viu envolto em semelhante escuridão

Era mulher era a mulher mais bela

mas não há coisa alguma que fazer se certo dia

a mão da solidão é pedra em nosso peito

Perto de marilyn havia aqueles comprimidos

seriam solução sentiu na mão a mãe

estava tão sozinha que pensou que a não amavam

que todos afinal a utilizavam

que viam por trás dela a mais comum imagem dela

a cara o corpo de mulher que urge adjectivar

mesmo que seja bela o adjectivo a empregar

que em vez de ver um todo se decida dissecar

analisar partir multiplicar em partes

Toda a mulher que era se sentiu toda sozinha

julgou que a não amavam todo o tempo como que parou

quis ser até ao fim coisa que mexe coisa viva

um segundo bastou foi só estender a mão

e então o tempo sim foi coisa que passou

 

Por alturas da crise de 2010 publiquei no blog este artigo que agora trouxe ao encontro de novos leitores.

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