Apesar de tudo há um caso de amor
Entre mim e a vida
1958
in Palácio
*
A beleza é um oceano
Aonde o olhar se perde
E regressa
Transfigurado
Londres, 16 de Junho 99
in Horizonte
Eros
O meu olhar descia como um íman
Ao centro mais ardente do teu corpo
22.5.62
in Exílio
Ao ler os poemas de Alberto de Lacerda (1928-2007), deparamo-nos com uma poesia requintada, progressivamente depurada na forma, onde a adjectivação é contida, atravessada por uma constante densidade intelectual. Por vezes a emoção irrompe neste dizer poético, mas é sobretudo a justeza verbal da observação na matéria de poesia que atrai, perfeito trabalho sobre a língua tornada poesia, e os curtos poemas citados a abrir são exemplo.
Para falar desta poesia sigo o desejo expresso do poeta: “… Que os meus poemas fossem um comércio amoroso. Ao longo do tempo. Dos tempos. Livres do meu rosto. Do meu corpo. Do amor sem explicação e sem limite que os fez nascer a todos, … Livres da minha passagem pela terra. Do meu nome. Isentos de biografia.
Londres. Fev. de 1964.”
in Oferenda II
E no poema Cântico espraia o seu propósito:
Cântico
Não consentir a fórmula
Não produzir nenhuma
Nunca pisar os calos
Não desmanchar a cama
Dos sonhos necessários
Não lançar mais tinta
Sobre a mesma tela
Volvidos tantos anos —
Não deixar de beber
O vinho da esperança
Dizer dizer tudo
Dizer quase tudo
Em palavras sem jaça
E um amor sem limites
Por todos por tudo
1.9.63
in Cor: Azul
A fechar as duas colecções de livros de poesia, Oferenda I e II, encontra-se uma extensa citação de Bertrand Russell, funcionando esta como retrato desejado do poeta, e da qual retiro este fragmento:
“Três paixões, simples mas infinitamente poderosas, têm governado a minha vida: o desejo do amor, a busca do conhecimento, e uma compaixão esmagadora pelos sofrimentos da humanidade. …”
Bertrand Russell
Na digressão prolongada pela poesia de Alberto Lacerda que segue, os detalhes de biografia ficam ausentes, alargando o horizonte de uma poesia de reflexão entre o eu e o mundo. Serão sobretudo poemas do Eu que transcreverei. De fora ficam extensos poemas/comentário sobre relevantes acontecimentos do século XX que o poeta viveu ou de que teve notícia.
Janela
Sou uma janela onde se debruçam
todas as coisas da vida.
Não sobre mim: sobre a vida
que passa pelo meu ser
E tudo é longe
e aqui.
Ser poeta é não pertencer
nem a si.
in 77 Poemas
No Corpo
Matéria de poemas? Nunca, nunca!
Tivesse eu a resposta dos teus olhos
Continuação dos meus — essa a poesia
Que eu busco desde o vértice do mundo
Esse o tufão glorioso que varresse
As míseras palavras
O sofrimento atroz
Matéria de poemas? Sim, cantando
Dois corpos a entrega luminosa
Na afirmação cumprida da existência —
Então, palavras
São triunfos, são Ícaros sem queda
Necessidade linda da nudez
Não míseros silêncios ruidosos
Mas música das esferas
20-11-1965
in Oferenda II
A um Deus desconhecido
Estou à espera do sol
Que há-de passar de novo
Nesta varanda
As raparigas de bronze lânguido
Da minha infância
Continuam a passar nesta varanda
Mesmo quando as não vejo
O sol
O sol há-de surgir
Os dez raios de oiro
Das tuas mãos desconhecidas
Como te chamas?
23-2-1965
in Oferenda II
*
Chove lá fora como terá chovido
muitas vezes — no céu da minha infância.
Tão poucas as lembranças que nos ficam
da beleza imortal que foi de outrora!
…
15.10.45
do poema Véu
in 77 Poemas
Depois desta busca poética de si, vamos ao encontro do outro:
*
Seguias tu pela estrada
e eu seguia plo carreiro:
tão fácil, movimentada;
eu, tão tardo caminheiro.
Os pés à vista de ti
inda mais se me toldavam;
se andava junto ou sem ti
meus sentidos ignoravam.
Ainda sou caminheiro
ainda vais pela estrada:
sempre mais lento o carreiro,
e tu mais longe na estrada.
21.7.45
in 77 Poemas
A festa recusada
E nasce entre clarins amachucados
O desejo de nunca mais ouvir
O som de bosques puros deslumbrados
Que os deuses não nos deixam descobrir
E nasce aquele som viril e brando
Da minha voz estranha que te despe
Da minha voz ardente imaginando
O amor que passou e que não deste
E nasce entre cilícios da orquestra
No soluço mais puro e mais oculto
A presença abolida de outra festa
Que fora prometida no teu vulto
A festa recusada que tornara
Os dois um rosto só medalha rara
5.11.62
in Exílio
*
…
Os dias sem ti
São redes que os séculos esticam
De ansiedade
Dias sem ti
Sem o tocar das tuas mãos
Sem os teus lábios sobre
Os meus lábios súplices
Sem a tua voz que modula
A exactidão serena
De dois corpos contidos
Num só olhar
Boston, 25 de Setembro 90
de poema s/título in Átrio
A tua ausência
A tua ausência resume
Como um grito a minha vida.
Sou tu, ao longe —
Até quando?
Sou ausência, a tua ausência.
Fiquei deserto de mim.
Sou dois olhos marejados
Cravados no horizonte.
3.10.62
in Exílio
*
Para ficar o universo
Equilibrado de novo
Para que a terra não fosse
Aos poucos arrefecendo
Teu rosto junto a meu rosto
Tudo o mais a esse ritmo
Simplesmente obedecendo
28-2-1965
in Oferenda II
*
E agora tomba-me a cabeça
Sobre o lado da solidão
…
4.11.62
do poema Declive, in Exílio
Amor perfeito
Não há
Nunca houve
Centenas
Num canteiro
Que contemplo
Surpreendido e distante
Londres, 5 de Junho 97
in Horizonte
De um soneto dos dezanove anos
Sonhou-te o meu amor. Nunca vieste!
De tanto te sonhar meu coração
decerto já em sonho os conheceste.
Não nos pertence a nossa inquietação!
Vem quebrar o encanto em que viveste
tantos anos na minha solidão!
in 77 Poemas
*
No sol que a pouco e pouco declinando
Irá meus sonhos transportar à noite
Revejo em fuga aquele esplendor de quando
O trigo se alternava com a foice.
Era a imagem de uma tarde infinda,
Redoma aberta de uma luz doirada.
Certos amigos não tinham ainda
Desaparecido ao voltar da estrada.
Ficou esse horizonte na lembrança,
Linha a perder de vista no olhar.
E é este o sol, o mesmo, na mudança,
E é este o trigo, a foice, e à noite, o luar.
O amor, a própria morte nos aumenta
Sua luz obscura — que nos alimenta.
Yêvre-le-chatel, 25 de junho 90
in Átrio
Para encerrar, um vislumbre da carga erótica que por vezes surge neste poemário:
*
Eu busco a maravilha duma outra nudez
Que os deuses partilham com certos mortais
1958
in Palácio
*
Há dias em que sou um corpo que pegou fogo
E ficou todo
Em ferida
Outubro de 64
in Oferenda II
*
Deixa navegar no silêncio
A alegria das nossas cinturas
12-6-1964
in Oferenda II
J.
O ritmo o ritmo intacto desse corpo
A graça enxuta dos gestos desse corpo
E a luz que emana quando as nossas noites
Se encontram se entregam se confundem:
Beijos estrelas vendavais e praias
in Palácio
O livro SONETOS, edição do Autor em Veneza no ano de 1991, merece uma referência autónoma, tanto pela unidade formal — são 147 sonetos, como pela unidade temática. Relato explícito de paixão/paixões homossexuais, onde a exaltação da posse, a angústia da ausência ou da perda se espraiam, o conjunto dos sonetos, revelando a mestria oficinal do poeta, apenas em alguns falha no apuro estético que toda a sua obra revela. Provavelmente o canto poético da homosexualidade já estava presente nos últimos quatro poemas transcritos, mas neste livro ela surge explícita e assumida.
Transcrevo apenas dois sonetos do livro dando conta de momentos de uma paixão: o encontro, e a sua memória.
Soneto 40
Mas onde fica o teu dizer ardente
Onde a palavra não formule mais
Do que a curva da anca adolescente,
Filho dos deuses e dos animais?
O teu dizer ardente: o ar em arco
Reteso, duplo, sobre o peso duplo
Dos nossos braços: busco essa palavra
Que o teu corpo segreda quando nu
Se transforma no meu e eu me transformo
Na poesia do mundo que sonhaste
Pôr em verso. Silêncio. Não há forma.
Há essa maravilha que fixaste
Somente no que és e não consente
Que o saibas, meu amor, inteiramente
Lisboa
8 Agosto 70
Soneto 92
De noite, era de noite que chegavam
Teus lábios como versos que mordiam
Minha contemplação febril e casta.
De noite, era de noite que eu morria
Quando subitamente me surgias
E a casa por completo transformavas
E foi de noite anos depois no estio
Que em Lisboa nos fomos desvelar,
Nu contra nu, a assombração inteira,
Terramoto dos astros na cidade,
Simplicidade humana derradeira,
Mistério de presença e já saudade,
De que nem homem nem mulher nenhuma
Dividirá a maravilha una
Londres
14 de Junho 72
Vai longa a viagem, terminemos com este Impromptu:
Impromptu
E assim te foste, luz de vaga-lume,
feita de segredo e brevidade.
Impossível definir aquele perfume
que o teu surgir me trouxe nessa tarde.
in 77 Poemas
Nota bibliográfica
Alberto de Lacerda, Oferenda I, INCM, Lisboa, 1984. Contém os livros
Alberto de Lacerda, Sonetos, capa de Vieira da Silva, edição do autor, Veneza, 1991.
Alberto de Lacerda, Oferenda II, INCM, Lisboa, 1994.
Alberto de Lacerda, Átrio , INCM, Lisboa, 1997.
Alberto de Lacerda, Horizonte, INCM, Lisboa, 2001.
Abre o artigo a imagem de uma pintura de Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992), Le jeu de cartes (1937), de quem o poeta foi amigo, e por vezes dedicatária de poemas:
…
Irmã de Camões
Maravilha fatal
Da nossa idade
Redentora heróica
Duma raça triste
Ó majestosa
Senhora guardando
Nossa glória alta
O troféu de luz
O deslumbramento
Que mais nos faltava
No século negro
Ó guarda serena
Dum monumental
Trágico e sublime
Segredo que esplende
Para toda a parte
Como o sol que brilha
Apesar de tudo
Na tua pátria o mundo
E em Portugal
Lisboa, 8.11.61
do poema Homenagem a Maria Helena Vieira da Silva
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