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Tag Archives: Tom Wesselmann

Eros na praia — poemas de Dórdio Guimarães

12 Quarta-feira Ago 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Dórdio Guimarães, Tom Wesselmann

Hoje      há um melancólico mar

que afeiçoa tuas coxas jovens

de mulher

 

Na ternura da pensativa tarde

nua e só

teus olhos cantam uma canção que se vê

 

triste

…

do Poema 9

 

 

Os amores de Verão, quando vividos na juventude, ainda que efémeros, acompanham-nos vida fora como momentos de vivida felicidade absoluta. Já por mais de uma vez aqui o referi e é sempre agradável lembrá-lo. E hoje a lembrança vem a pretexto de alguns poemas de um livrinho de juventude de Dórdio Guimarães (1938-1997).

É erótica a poesia de Dórdio Guimarães de que tenho notícia. Com a obra publicada em vários pequenos livros, alguns são hoje raros. É de um desses livros em edição de autor, tinha o poeta 22/23 anos, Mar de Verão (1961), que hoje transcrevo alguns poemas. 

…

Há o longo perfume do amor

no teu corpo.       a vibrar

voluptuoso.      em estertor

como um pássaro.      na dor

…

do poema 17

 

 

São poemas/relato do incêndio de uma paixão de verão, sem o rebuscado da linguagem poética que mais tarde a sua poesia veio a conhecer, (talvez influência de Natália Correia com quem posteriormente foi casado, e é exemplo maior o longo poema que esta escolheu para encerrar a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica).

Estes poemas de juventude, raros pela franqueza dos relatos, e incomuns na poesia portuguesa onde à época o pudor era rei, dir-se-á, não são obras-primas! Não são. Mas são poemas que preenchem um vazio no panorama da poesia erótica em Portugal, tão rara dela, e onde a linguagem dá conta do calor dos corpos em desejo, sem eufemismos ou vulgaridades.

Poema 16

No silêncio destes corpos mudos

desce o tempo      hora a hora       lento

manto submarino      de algas   

sargaços      peixes azuis

objectos vivos ou inúteis

do estranho mundo desolado

do pensamento

 

suavemente        liquidamente

um sol de fogo no mar arrefecia

um seio teu cedia        à minha boca humedecida

distante        violeta

o grasnar de uma gaivota desaparecia

no imenso dia que morria

 

e nós

nós dramaticamente

abstractos no espaço

sem cansaço

amando as nossas carnes

insignificantemente

 

 

Poema 14

Pela primeira vez       os dois

vivemos a narrativa do mar      prometido

 

Pela primeira vez       os dois

nus         raciocinados

vivemos o ardor

do sal viajando o sangue

 

a pureza do vento desalinhando

estes cabelos rígidos da cidade

a memória do tempo dissipada

pela repetição das ondas      na harmonia da praia

 

Nossos olhos são uma janela aberta

 

Pela primeira vez        os dois

originais

vivemos no mar        a descoberta!

 

 

Já com outra maturidade poética são estes dois poema do livro Os Cinco Sentidos de Lisboa, Galeria Panorama, Lisboa, 1970, com que termino esta volta.

 

Dois Poemas

 

1

como guelras abertas

a todo o comprimento dos corpos

os amantes bebem-se babam-se

cospem-se respiram-se

 

lisboa é o lençol a colcha

talvez a coxa do outro

e o tejo é mais azul

que a química do ar

 

aquilo irrequieto que escoicinha

quieto o potro

 

2

luxo de pérolas a abrir

te amacia o asfalto

e pernas brancas de fêmea

te apelam de salto alto

se excita o útero vulcânico

seu ciciar de granito

vagina imensa que solta

no tejo a voz do apito

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004), Seascape No. 22, 1967, colecção do artista.

 

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Um soneto de Francisco Villaespesa

29 Domingo Dez 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Espanhola

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Francisco Villaespesa, Tom Wesselmann

Como bem lembra algures Octávio Paz (1914-1998), o erotismo não é uma simples imitação da sexualidade, é a sua metáfora, ou como noutra ocasdião referiu Georges Bataille (1897-1962), o erotismo humano é da esfera da espiritualidade.

As consideraçõs de tais autoridades literárias são o intróito a um poema de Francisco Villaespesa (1877-1936) que a seguir transcrevo, seguido de uma minha tradução:

La sabia mano a cuyo tacto ardiente
vibra la carne como un instrumento,
prolongó la agonía del momento
en una languidez intermitente…

Oh, el cálido contacto de tu frente!
Oh, tu dorso desnudo y opulento
echado sobre mí, como un sediento
sobre lá superfície de una fuente!

Mis besos perfumaron el vacío
de un húmedo y mortal escalofrío…
Y bajo tu melena estremecida

en un áureo manojo de serpientes,
sentí sangrar y sucumbir mi vida,
entre el canibalismo de tus dientes!

Para quem não seja fluente em castelhano segue uma tradução aproximada do soneto.

A sábia mão a cujo tacto ardente
Estremece a carne como um instrumento
Prolongou a agonia do momento
Em uma languidez intermitente…

Oh, cálido contacto da tua frente!
Oh, o teu dorso nu e opulento!
Deitado sobre mim, qual um sedento
Avidamente bebe de uma fonte!

Meus beijos perfumaram o vazio,
Húmida morte suou em calafrio…
E sob a tua melena estremecida

Num glorioso abraço de serpentes
Senti sangrar e sucumbir a vida,
Entre o canibalismo dos teus dentes!

Tradução de Carlos Mendonça Lopes

Conhecemos mal em Portugal a poesia erótica espanhola e hispano-americana, que é muita e de elevada qualidade média. Poetas há em que a tensão erótica perpassa toda a obra, e estou a lembrar-me de Octávio Paz, Luis de Góngora, Ruben Darío, Lorca, Vicente Aleixandre, isto para referir apenas os mais conhecidos entre nós.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004), Great American Nude 59 (1965).

 

Nota final

O poema, a tradução, e uma primeira versão do artigo foram publicados no blog em Agosto de 2011.

 

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Vinicius de Moraes — Soneto da mulher ao sol e Os quatro elementos

26 Terça-feira Nov 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Brasileira sec. XX

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Tom Wesselmann, Vinicius de Moraes

As horas de prazer voam ligeiras, as de espera custam a passam. Ocupá-las com poesia de Vinicius de Moraes (1913-1980) é ter boa companhia. E para quem aprecia o fogo por detrás das palavras eis uma escolha. São poemas do Livro de Sonetos e contam em palavras o que a acção consegue no caminho para o incêndio dos sentidos.

Poesia da carne feliz, nela o amor nunca é platónico, mas vivido na plenitude do sexo. Lê-la encanta e comove. Tanto do que gostaríamos de dizer, está ali na forma incomparável.

 

 

Soneto da mulher ao sol

 

Uma mulher ao sol — eis todo o meu desejo 

Vinda do sal do mar, nua, os braços em cruz 

A flor dos lábios entreaberta para o beijo 

A pele a fulgurar todo o pólen da luz. 

 

Uma linda mulher com os seios em repouso 

Nua e quente de sol — eis tudo o que eu preciso 

O ventre terso, o pêlo úmido, e um sorriso 

À flor dos lábios entreabertos para o gozo. 

 

Uma mulher ao sol sobre quem me debruce 

Em quem beba e a quem morda e com quem me lamente 

E que ao se submeter se enfureça e soluce 

 

E tente me expelir, e ao me sentir ausente 

Me busque novamente – e se deixa a dormir 

Quando, pacificado, eu tiver de partir… 

 

A bordo do Andrea C, a caminho da França, nov. 1956.

 

 

Depois deste sonhado e desejado prazer, um ciclo de quatro deliciosos e tematicamente originais sonetos: Os Quatro Elementos.

Reflectindo sobre a volúpia do contacto do corpo com a natureza, aqui os quatro elementos: terra, ar, água e fogo, lemos do prazer a sua enunciação. 

É no dispositivo narrativo que a originalidade dos sonetos surge. Temos um casal de amantes; a mulher amada quando exposta a cada elemento da natureza, um por soneto, desenvolve atitudes de prazer que desencadeiam o ciúme do amante e provocam a sua intervenção num comportamento de antes eu que ele, como se lerá a seguir…

 

 

OS QUATRO ELEMENTOS

 

I — O FOGO

 

O sol, desrespeitoso do equinócio

Cobre o corpo da Amiga de desvelos

Amorena-lhe a tez, doura-lhe os pelos

Enquanto ela, feliz, desfaz-se em ócio.

 

E ainda, ademais, deixa que a brisa roce

O seu rosto infantil e os seus cabelos

De modo que eu, por fim, vendo o negócio

Não me posso impedir de pôr-me em zelos.

 

E pego, encaro o Sol com ar de briga

Ao mesmo tempo que, num desafogo

Proibo-a formalmente que prossiga

 

Com aquele dúbio e perigoso jogo…

E para protegê-la, cubro a Amiga

Com a sombra espessa do meu corpo em fogo.

 

 

II — A TERRA

 

Um dia, estando nós em verdes prados

Eu e a Amada, a vagar, gozando a brisa

Ei-la que me detém nos meus agrados

E abaixa-se, e olha a terra, e a analisa

 

Com face cauta e olhos dissimulados

E, mais, me esquece; e, mais, se interioriza

Como se os beijos meus fossem mal dados

E a minha mão não fosse mais precisa.

 

Irritado, me afasto; mas a Amada

À minha zanga, meiga, me entretém

Com essa astúcia que o sexo lhe deu.

 

Mas eu que não sou bobo, digo nada…

Ah, é assim… (só penso) Muito bem:

Antes que a terra a coma, como eu.

 

 

III — O AR

 

Com mão contente a Amada abre a janela

Sequiosa de vento no seu rosto

E o vento, folgazão, entra disposto

A comprazer-se com a vontade dela.

 

Mas ao tocá-la e constatar que bela

E que macia, e o corpo que bem posto

O vento, de repente, toma gosto

E por ali põe-se a brincar com ela.

 

Eu a princípio, não percebo nada…

Mas ao notar depois que a Amada tem

Um ar confuso e uma expressão corada

 

A cada vez que o velho vento vem

Eu o expulso dali, e levo a Amada:

— Também brinco de vento muito bem!

 

 

IV — A ÁGUA

 

A água banha a Amada com tão claros

Ruídos, morna de banhar a Amada

Que eu, todo ouvidos, ponho-me a sonhar

Os sons como se foram luz vibrada.

 

Mas são tais os cochichos e descaros

Que, por seu doce peso deslocada

Diz-lhe a água, que eu friamente encaro

Os fatos, e disponho-me à emboscada.

 

E aguardo a Amada. Quando sai, obrigo-a

A contar-me o que houve entre ela e a água:

— Ela que me confesse! Ela que diga!

 

E assim arrasto-a à câmara contígua

Confusa de pensar, na sua mágoa

Que não sei como a água é minha amiga.

 

Montevidéu, abril de 1960.

Poemas transcritos de Livro de Sonetos, 3.ª edição, Editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1967.

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004). A pintura pertence à série Sunset Nudes (2002-2004).

 

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O Corpo Insurrecto — poema de Luiza Neto Jorge

17 Domingo Maio 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Luiza Neto Jorge, Tom Wesselmann

Tom Wesselmann - Great American Nude No 20 1961Há na poesia de Luiza Neto Jorge (1939-1989) uma elucidação dos sentidos e da sua força vital tornando evidente como e quanto comandam a vida.  Numa sofisticada linguagem poética onde o requinte da língua se apura, sucedem-se os poemas repassados de uma objectividade sem concessões a qualquer lirismo edulcorado, tornando a sua leitura frequentemente compulsiva.

Transcrevo hoje em jeito de ilustração o poema O Corpo Insurrecto, publicado pela primeira vez no livro Terra Imóvel, Portugália, Lisboa, 1964.

 

O Corpo Insurrecto

 

Sendo com o seu ouro, aurífero,

o corpo é insurrecto.

Consome-se, combustível,

no sexo, boca e recto.

 

Ainda antes que pegue

aos cinco sentidos a chama,

por um aceso acesso

da imaginação

ateiam-se à cama

ou a sítio algures,

terra de ninguém,

(quem desliza é o espaço

para o corpo que vem),

 

labaredas tais

que, lume, crepitam

nos ciclos mais extremos,

nas réstias mais íntimas,

as glândulas, esponjas

que os corpos apoiam,

zonas aquáticas

onde os corpos boiam.

 

No amor, dizendo acto de o sagrar,

apertado o corpo do recém-nascido

no ovo solar,

há ainda um outro

corpo incluído,

 

mas um corpo aquém

de ser são ou podre,

um repuxo, um magna,

substância solta,

com pulmões.

 

Neste amor equívoco

(ou respiração),

sendo um corpo humano,

sendo outro mais alto,

suspenso da morte,

mortalmente intenso,

mais alto e mais denso,

 

mais talhado é o golpe

quando o põem em prática

com desassossego na respiração

e o sossego cru de quem,

tendo o corpo nu,

a carne ardida,

lhe pede o ladrão

a bolsa ou a vida.

 

Transcrito de Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

A imagem a abrir mostra uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004) – Great American Nude No 20, 1961.

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Abelardo, o membro: uma fantasia

02 Quinta-feira Ago 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Prosas

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carlos mendonça lopes, Tom Wesselmann

Entra Agosto, chegam as férias, e neste sem-que-fazer vasculho papéis esquecidos, ou antes, vasculho ficheiros esquecidos. De entre o que encontrei surgiu esta história com Abelardo, o membro por protagonista, de que vos deixo uma versão curta.

Abelardo, o membro: uma fantasia

– Estou chateadíssima. Então não é que o Abelardo se estragou.
– Não me digas.
– Digo sim! Imagina tu que o Zé anda a ler uma história qualquer passada no Iraque. Encontrou lá descrita uma cena de sexo que o excitou e quis reproduzir. Então, quando estávamos na cama insistiu para que lhe enfiasse qualquer coisa no traseiro. Lembrei-me de lhe enfiar o Abelardo, mas qual quê? Eu bem o apertava, o esfregava e nada, o Abelardo ficava mole, fugia, escorregava, até parecia ter vida para se recusar a entrar ali. Nunca tinha acontecido comigo. Depois de tudo isto, o Zé desistiu e como calculas ficou furioso. Agora tenho bem umas semanas de jejum. E sem o Abelardo não sei como vai ser.
– Compra outro.
– Já não há. Fui à procura e desapareceu.
– Mas onde é que o compraste?
– Comprei na internet. Procurava um vibrador com o tamanho a que estava habituada e lá estava:
“Abelardo, o conforto das noites solitárias:
Dimensões: 18 x 4cm
Preço: 80 € + despesas de expedição
Fazem-se entregas em mão ou por correio em embalagem discreta.”
Decidi-me, e desde então tem sido do outro mundo. Até ao outro dia que se avariou. Como estava dentro da garantia, devolvi-o, mas responderam-me hoje dizendo que daquele modelo não havia mais. Fôra um sucesso e esgotara rapidamente. Poderiam enviar de outro tipo.
Não tenho esperança nenhuma. Este Abelardo era tão especial!
De repente pareceu-lhe ouvir uma voz dentro da cabeça:
– Pois é Alda, o vibrador que a consolou não era um vibrador qualquer, era não só especial, mas único. Guardava nele a essência da voluptuosidade desde tempos imemoriais.
– Hélia, parece-me que não me estou a sentir muito bem. Tenho a impressão de ouvir vozes na cabeça. Vou voltar para casa, tomo um chá e um Xanax e vou ver se acalmo.
– Queres que vá contigo?
– Não, não te incomodes. Apanho um táxi e vou. Táxi! Táxi!.
Parou um táxi, despediram-se e entrou. Sentada continuou a ouvir a voz. Era uma voz calma, pausada e deixava uma sensação de vir de fora do tempo: Esse vibrador, Alda, possui uma história que talvez goste de conhecer.
Indicou a morada ao taxista e encostou-se no banco. Pareceu-lhe até que adormecia.
Entretanto o taxi chegou a casa. Pagou e saiu. Sentia-se um pouco zonza, talvez por ter dormitado. Em casa tirou o casaco, descalçou-se, mudou de roupa e foi à cozinha. Pôs uma chávena com água no microondas para fazer chá. Ia buscar os comprimidos quando a voz de novo lhe apareceu:
– Não tome comprimidos, vão fazer-lhe mal. Sente-se no sofá com o chá e ouça-me.
Cada vez mais intrigada, e até um pouco assustada, sentou-se com a chávena e a saqueta do chá na mão.
– Sabe Alda, o Abelardo estragou-se porque o quis obrigar a penetrar um homem, a única coisa que nunca fez na vida e estava impedido de fazer. Agora que o devolveu ao fabricante irá certamente para o lixo e perder-se-ão, talvez para sempre, as suas virtualidades, a menos que o salve algum poder sobrenatural, o que nem será improvável a atender às vicissitudes por que passou ao longo dos séculos até lhe chegar às mãos.
– Que conversa tão estúpida. Só há vibradores há meia dúzia de anos, não conseguiu impedir-se de dizer em voz alta.
– É verdade, só há vibradores há meia dúzia de anos, mas a borracha com que este vibrador foi feito teve uma adição especial. Proveio de um lote de preservativos usados e recolhidos para reciclagem. Vai concerteza querer saber os pormenores.
– Talvez, pensou intrigada. E a voz prosseguiu:
– Nestes tempos de HIV, James Bond, em quem eu habitava, a conselho insistente do estúdio cinematográfico, resolveu adoptar o uso de preservativo nas suas actividades, e assim, num dia de distracção e grande azáfama, fui levado dentro de um preservativo usado. Foi um acidente sério. Diz-se até que por causa disso o próximo James Bond será casto. O caminho até James Bond foi acidentado e cheio de peripécias. Do que aconteceu ao preservativo conto mais à frente.
Cheguei a James Bond através de uma figurante do seu primeiro filme, e com ele permaneci até à fatídica distracção. Foram tempos bons, belas mulheres, hotéis de luxo, uma vida de correria à roda do mundo, enfim, do melhor que me recordo.
Mas voltando à rapariga, ela tinha sido modelo de Picasso, e num daqueles processos porque a providência me fez passar de geração em geração, a bela moça recebeu-me do pintor e passou-me ao James.
Foi já avançado na idade que Picasso, ao ter relações com a jovem modelo, depositou nela sem o saber a essência da virilidade masculina de que era no sec XX o guardião, numa cadeia que se transmitiu entre artistas e outros homens de génio desde há séculos. Tão infausto acontecimento foi o inicio da conhecida impotência do pintor no final da vida, com as consequências visíveis na sua obra pictórica.
– Começa a interessar-me a história, disse Alda de si para si.
E a voz continuou:
– O percurso desta essência através dos tempos tem despertado curiosidades, sobretudo num Sr. Borges, que se tem esforçado por a conhecer, mas não tem sido fácil de reconstruir, e o próprio tem ainda saltos e lacunas por preencher. Também já não serei de grande ajuda pois sinto a memória a esvair-se, agora que o principal de mim desapareceu. De alguma maneira a senhora é responsável por ter enviado para o lixo parte importante e essencial da virilidade masculina tal como tem sido conhecida até aos nossos dias.
Mas voltemos ao preservativo. Como as exigências explicitas no estúdio cinematográfico eram de reciclar tudo o que fosse reciclável, o preservativo que me continha foi incluído num lote de borracha para esse fim. O lote foi vendido a um fabricante de vibradores e assim me vi dentro de uma dessas peças infernais que só funcionam a pilhas. Eu nunca precisei de pilhas para funcionar pelo que transformei um banal vibrador na peça especial que conheceu.
Cada vez mais intrigada, Alda não resiste e pergunta-se:
– Abelardo, mas Abelardo porquê? Ainda se se chamasse Picasso ou James Bond, percebia-se. E aí a voz continuou:
– O fabricante de vibradores pretendia lançar num mercado tão competitivo como é o dos acessórios de sexo, onde todos são iguais parecendo diferentes, mais um produto que, sendo igual, chamasse sobre si as atenções. Contratou os serviços de uma agência de publicidade da qual recebeu diversas propostas insatisfatórias, até que uma noite lhe ocorreu: pois é, a diferença está no nome. Tinha visto na televisão um programa de um grupo de rapazes a dar pelo nome de Gato Fedorento.
Vibrador com nome era de facto um pouco estranho mas permitia ao possuidor criar uma relação afectiva com o objecto sem precisar estar a imaginar mais nada. Entre os nomes que lhe iam surgindo nenhum parecia suficientemente apelativo até que lhe segredei:
– Abelardo.
– Abelardo? É nome de gente? Ah pois é! É aquele que foi castrado por seduzir a aluna Heloísa, e a família não gostou. É isso mesmo!
Ao outro dia deu instruções ao departamento de promoção. A nova linha de vibradores teria nome e chamar-se-ia “Abelardo, o membro”.
– Podem começar a ter ideias sobre o aspecto gráfico da embalagem, ordenou.
Embalado e anunciado, fui posto à venda na internet com outros vibradores do mesmo lote de borracha, mas os outros não me continham. Ao que sei venderam-se depressa, sem que o nome de baptismo tivesse qualquer interferência nisso. Eu fui comprado pela senhora e tivemos as alegrias de que se recorda. Entretanto aconteceu a desgraça com o seu marido, e agora acabou-se de vez Abelardo.
Alda com um estremecimento, levantou-se e disse alto:
– Vou mesmo tomar um Xanax e ver se durmo. Já ouço vozes na cabeça há tempo de mais, devo estar a ficar maluca.

Epílogo

Devolvido o vibrador ao fabricante, como não funcionava foi separado para reciclagem.
Acabou incluído num lote que serviu para fabricar o boneco E.T. do filme de Spielberg do mesmo nome.
Provavelmente, e a acreditar no filme, a essência do nosso Abelardo estará agora no espaço sideral, quem sabe se ganhando nova vida entre os extra-terrestres.

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