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Eros ao entardecer — um poema do autor

14 Sábado Nov 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portiguesa do séc. XXI

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carlos mendonça lopes

Hoje, dispo-me do pudor que habitualmente me acompanha e trago aos leitores um poema meu de desejo e acção ou antes do desejo em acção. E a acção, essa, é uma excelente sugestão para tardes de confinamento.

 

Eros ao entardecer

 

penetrar-te

húmida, expectante

sentir a prisão

do abraço

das tuas pernas nas minhas

colar os corpos

lentamente roçar

na língua o mamilo

sentir retesar a barriga

suavemente mover

o corpo

pele contra pele

entrar e sair

aflorar apenas a ponta da glande

os lábios arfantes

sexo que espera penetrar de novo

os corpos suados

o cheira da axila

rebolar

um sobre o outro num abraço

infinito

rodar sobre ti

beijar os pés

continuar preso

no fundo

lentamente voltar e beijar

os lábios

saborear a língua

cadencia do movimento das ancas

numa repetição

acelerada

e assim continuar

eternamente

desejo

Carlos Mendonça Lopes

 

Abre o artigo a imagem de um meu trabalho digital, Nude BW, sobre uma fotografia que anos atrás fiz.

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Um poema de sabor antigo e Treze maneiras de olhar um melro por Wallace Stevens

29 Segunda-feira Abr 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia de Língua Inglesa

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carlos mendonça lopes, Wallace Stevens

Provavelmente o longo convívio com poesia antiga e de todas as latitudes me condicione no processo criativo, fazendo o que escrevo soar tantas vezes fora de tempo. Aí talvez a razão por que a chegada da Primavera, e dos melros às árvores frente a casa, me tenha inspirado este poema de sabor antigo:

 

O Melro
De que fala quando canta
o melro à minha janela?
Fala do amor ausente
ou recorda simplesmente
os tempos que não viveu
porque morreu?
 
Vestiu de luto para sempre
e as penas pretas que veste
não consentem alegria:
apenas deixam ouvir
a sua melancolia
num cantar de dor presente.

Carlos Mendonça Lopes

 

 

Este poema é uma descrição nos antípodas da leitura da presença do melro na paisagem feita pelo poeta-filósofo Wallace Stevens (1879-1955) no poema Treze maneiras de olhar um melro. Poema dividido em treze estâncias, com o sabor de haiku a percorrê-las, em curtos versos, e numa visão sintética e metafórica, seguimos variadas formas de sentir e pressentir o mistério e variedade da vida observando um melro na paisagem nevada.

Entre a primeira e a última estâncias do poema:

1
No meio de vinte montanhas nevadas
A única coisa que se mexia
Era o olho do melro.
…
13
Anoitecia em cada instante da tarde.
Nevava
E ia continuar a nevar.
E o melro empoleirado
Nos ramos dos cedros.

acompanhamos a reflexiva observação do poeta. Implica esta o questionar do que é saber. E sabendo, esse conhecimento é exterior a mim, ou ao conhecer, ele passa objectivamente a integrar-me? É um caminho que o poema abre, não a letra do que ele contém:

 

 

Treze maneiras de olhar um melro

1
No meio de vinte montanhas nevadas
A única coisa que se mexia
Era o olho do melro.

2
Eu via as coisas de três maneiras diferentes,
Como uma árvore
Onde há três melros.

3
O melro rodopiava ao sabor dos ventos de Outono.
Era uma pequena parte da pantomina.

4
Um homem e uma mulher
São um
Um homem e uma mulher e um melro
São um.

5
Não sei qual prefiro,
A beleza das modulações de som
Ou a beleza das insinuações,
O melro a assobiar
Ou logo após.

6
Gotículas geladas cobriam a grande janela
De vidros toscos.
A sombra do melro
Cruzava-a, dum lado para o outro.
O estado de espírito
Desenhava na sombra
Uma causa indecifrável.

7
Ó homens esguios de Haddam
Porque pensais em pássaros dourados?
Não vedes como o melro
Caminha à volta dos pés
Das mulheres perto de vós?

8
Sei de sotaques notáveis
E ritmos lúcidos e inevitáveis;
Mas também sei
Que o melro está presente
Em tudo o que eu sei.

9
Quando o melro voou para fora do alcance da vista
Assinalou a orla
De um de muitos círculos.

10
Perante a visão de melros
Voando envolvidos numa luz verde,
Até os proxenetas da eufonia
Haviam de gritar com vivacidade.

11
Ele foi até Connecticut
Num coche de vidro
Uma vez, foi tomado de pânico
Quando confundiu
A sombra da carruagem
Com melros.

12
O rio corre
O melro deve andar a voar.

13
Anoitecia em cada instante da tarde.
Nevava
E ia continuar a nevar.
E o melro empoleirado
Nos ramos dos cedros.

Tradução de António Simões
in Antologia da Poesia Anglo-Americana, de Chaucer a Dylan Thomas, seleção, prefácio e notas de António Simões, Campo das Letras Editores, Porto, 2002.

A foto de abertura não é do melro que canta à minha janela. Encontrei-a na net, colocada por um Camberra ornithologist group.

 

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As recordações olham para mim — poema de Tomas Tranströmer

06 Sexta-feira Out 2017

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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carlos mendonça lopes, poema de Tomas Tranströmer

A paisagem na memórias ou a poesia dos lugares, são  expressões que me ocorrem à leitura de muita da poesia de Tomas Tranströmer (1931-2015).
Quase sempre, os poemas partindo do trivial levam-nos subrepticiamente para o essencial da existência, induzindo no leitor uma reflexão que permanece bem para lá de concluída a leitura. Deixo como ilustração o poema As recordações olham para mim.

 

 

As recordações olham para mim

Uma manhã de Junho quando ainda é cedo para acordar
mas demasiado tarde para voltar a pegar no sono.

Embrenho-me pelo arvoredo repleto de recordações
e elas seguem-me com os seus olhares.

Autênticos camaleões, elas não se mostram,
diluem-se literalmente no cenário.

E embora o gorjeio dos pássaros seja ensurdecedor,
estão tão perto de mim que ouço como respiram.

 

Tradução de Alexandre Pastor

Transcrito de Tomas Tranströmer, 50 Poemas, Relógio d’Água Editores, Lisboa, 2012.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura digital a partir de uma fotografia tirada em Tavira no início dos anos 70. Foto e pintura fi-las ambas num tempo a que não volto. A cidade representada é outra e a mesma que hoje existe. E em mim junta o prazer de hoje à memória de tempos frequentemente felizes.

Carlos Mendonça Lopes

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Lembrar a Grécia com Sólon (séc VII-VI a.C.): Seisachtheia e fragmentos poéticos

16 Terça-feira Jun 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas, Poesia Antiga, Poesia Grega

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carlos mendonça lopes, Sólon

O esforço quotidiano de tentar meter a vida dentro do orçamento, à medida que este encolhe, tem-me deixado pouco tempo para o blog.

Vivem-se tempos em que as finanças parecem sobrepor-se a tudo e a todos. Em notas escritas há anos, que hoje ganham foros de actualidade, dava eu conta de forma sarcástica, do que entretanto se tornou uma tragédia vivida por muitos. Dizia-se neles:

I
Vieram listas de números deitar certezas supérfluas
na multidão descontente.

II
Comunicou o governo através da televisão:
“Sai caríssima ao Tesouro a vida dos cidadãos.”

E de uma forma sentida a seguir anunciou:
“As dívidas podem ser pagas oferecendo a própria vida.”

III
Acorrem em catadupa Ministros aos funerais.
Trazem prémios para os mortos,
sorriem,
entram em êxtase,
e partem com os jornais.

Esta entrega da própria vida para pagar dívidas leva-me hoje a Sólon e à sua Seisachtheia, a postura legislativa em que a dignidade humana foi preservada pondo fim à escravatura por dividas, ou seja, a consequência de um indivíduo se tornar escravo de um seu credor quando impossibilitado de pagar as suas dividas na sociedade ateniense de há 2600 anos.

Nestes dias em que a Grécia é uma preocupação financeira para a Europa, têm-se ouvido e lido os maiores despautérios e as mais inanes tolices a propósito da história grega.

Dizer que a civilização ocidental ancora na Grécia clássica não é sem fundamento. Foi lá que o homem pensou os deuses à sua imagem e semelhança. Foi lá que as formas de governo no respeito pelo homem se inventaram, foi lá que a vida do espírito no diálogo entre iguais se praticou, e onde as artes se desligaram do sagrado para integrar a vida quotidiana, criando a harmonia que consola quem nela vive.
De muitas das criações gregas chegaram-nos apenas fragmentos. As guerras com vizinhos e as invasões encarregaram-se disso mesmo. Depois do apogeu, a Grécia foi frequentemente terra devastada, alvo da inveja de quem não tinha ou não fora capaz de conceber as maravilhas que deram dignidade e significado ao Ser Humano. Pelos museus da Europa recolhem-se fragmentos dessa devastação.

Herdámos também, ainda que hoje pareça largamente esquecido, um ordenamento jurídico a fazer 2600 anos. Foi Sólon o artífice de semelhante quadro legal, sendo a abolição da escravatura por dividas o de maior significado.

O quadro de cobrança da divida grega que hoje se desenha, configura também ele, a submissão de um povo à escravatura sem alternativa, se quiser sobreviver no xadrez das dependências globais que caracterizam o nosso mundo.
Soubessem os dirigentes, que pretendem submeter a Grécia, agir de acordo com as palavras sábias de Sólon:

E o povo melhor os seus chefes seguirá,
se não for nem muito soerguido nem rebaixado.
A ambição gera, pois, a insolência, quando uma grande riqueza segue
os homens que espírito sensato não possuem.
Fragmento F 6 W

Não se pense, no entanto que com Sólon estamos perante a defesa de qualquer política de nivelamento ou igualdade, pois, noutro fragmento, o político defende:

Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente

não pretendo: sempre, a seguir, vem a justiça.

É esta ideia de lisura na prossecução dos negócios de dinheiro com a Grécia que parece estar ausente em toda a história recente. Sólon escreveu isto no seio de um seu poema onde o homem e a sociedade se pensam, o qual a terminar refere:

Quanto à riqueza, limite visível para os homens não há:
os que agora, entre nós, maior copia de meios têm,
açodam-se a dobrar; quem poderá satisfazê-los a todos?
O lucro, aos mortais concederam-no os imortais,
mas dele provém a perdição, e quando Zeus
a envia, em forma de punição, ora um ora outro a recebe.

Termino com a totalidade conhecida do fragmento poético F 13 W, a que pertencem as citações anteriores, conhecido como elegia das musas, para lembrar como a dignidade humana pode caber no seio destes negócios de dinheiro, e existindo a legitimidade da busca de riqueza, a justiça deve estar sempre presente nos meios de a alcançar. O arbítrio dos deuses é insondável e aos homens não cabe saber dos meandros da justiça divina. Apenas a justiça entre os homens importa.

F 13 W

Filhas esplendorosas de Mnemósine e de Zeus Olímpico,
Musas Piérides, atendei a minha prece.
Bens da parte dos deuses bem-aventurados me dai e que junto de todos
os homens de boa fama sempre goze;
ser, assim, doce aos amigos e aos inimigo amargo,
àqueles respeitável e a estes temível parecer.
Riquezas desejo possuir, mas adquiri-las injustamente
não pretendo: sempre, a seguir, vem a justiça.
A fortuna que os deuses dão fica ao lado do homem,
firme, desde os alicerces à cumeeira.
Porém, a que os homens honram, com insolência, a ordem devida
não segue, mas, levada por injustas acções,
contrafeita vem atrás e, lesta, se lhe junta a perdição.
Pequeno o seu começo é, como o fogo,
primeiro sem valor, mas em aflição acaba,
já que, para os mortais, as obras da insolência não perduram.
Zeus, porém, supervisiona o fim de tudo e, num repente,,
— tal como logo as nuvens dispersa o vento
primaveril, que ao mar escumoso e estéril
as profundezas revolve e pela terra produtora de trigo
destrói as belas lavouras, até que a mansão escarpada dos deuses atinge,
no céu, e o éter limpo de novo deixa contemplar;
rebrilha sobre a terra pingue o sol vigoroso
e belo: então, nuvem alguma se consegue ainda avistar —
assim avança o castigo de Zeus. Não é a cada falta,
como um homem mortal, que se gera a sua ira,
mas, em todo o tempo, não lhe escapa quem culposo
coração possui e sempre, no fim se revela.
Porém um logo expia a culpa. outro mais tarde; quem a evitar
na sua pessoa, sem que golpe da moira dos deuses o alcance,
sempre acabará por chegar. Inocentes, as faltas pagarão
os seus filhos ou os filhos destes, mais tarde.
Nós, os mortais, tanto o nobre como o vilão, temos este pensar:
célere corre a fama que cada um de si possui,
antes de padecer; é então que se lamenta. Mas, até essa altura,
boquiabertos, em vãs esperanças nos deleitamos.
Aquele a quem penosas enfermidades oprimem,
considera somente que vai ficar são;
outro, embora covarde, pessoa valente julga ser
e boa figura pensa o desengraçado possuir;
e se alguém é pobre, ao jugo da miséria forçado,
conseguir grandes riquezas sempre espera.
Cada um se açoda por seu lado: um pelo mar piscoso erra,
em barcos, na ânsia de lucro para casa trazer:
ventos o arrastam, terríveis,
e em poupar a vida nada cura;
outro, retalhando a terra rica em árvores, todo o ano
serve e dos recurvos arados se ocupa;
outro, das obras de Atena e do industrioso Hefestos
conhecedor, com as mãos ganha a vida;
outro é nos dons das Musas Olímpicas versado
e da adorável sabedoria a medida conhece;
a outro, fê-lo adivinho o senhor que fere ao longe, Apolo,
conhece o mal que, distante, sobre o homem avança,
ele a quem os deuses assistem: mas o destino — sempre —
nem o áugure o pode parar nem os sacrifícios.
Outros, que de Péon rico em remédios oficio exercem,
são médicos, mas também eles não atingem o fim.
Muitas vezes, da pequena dor se gera uma grande agonia
que ninguém consegue aliviar aplicando remédios benfazejos;
e ao que lastimosas doenças remoem e terríveis,
tocam-lhe com as mãos e logo fica saudável.
Assim o Destino aos mortais traz o mal e o bem,
inevitáveis são as dádivas dos deuses imortais.
Em todos os trabalhos existe perigo e ninguém sabe
onde conduzirá o projecto iniciado.
Mas o que bem tenta agir, sem contar,
em grande e penosa perdição cai;
e ao que mal actua, o deus em tudo lhe concede
bom sucesso, libertação da sua imprevidência.
Quanto à riqueza, limite visível para os homens não há:
os que agora, entre nós, maior copia de meios têm,
açodam-se a dobrar; quem poderá satisfazê-los a todos?
O lucro, aos mortais concederam-no os imortais,
mas dele provém a perdição, e quando Zeus
a envia, em forma de punição, ora um ora outro a recebe.

A legislação de Sólon terá sido publicada em 594/3 a.C. segundo a maior parte dos estudiosos.
A tradução dos fragmentos poéticos que vos deixo é da autoria de Delfim Ferreira Leão e encontra-se no seu livro Sólon Ética e Política com mais fragmentos poéticos de Sólon traduzidos e comentados. O livro foi publicado pela FCG, Lisboa 2001.

Acompanham o artigo imagens de esculturas gregas contemporâneas de Sólon.

Nota final

Este artigo foi anteriormente publicado no blog (5 Maio 2012). Como não perdeu um grão de actualidade, trago-o de novo à luz, ao encontro dos novos leitores que o blog entretanto ganhou.

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Mais Jorge de Sena — hoje LISBOA 1971

20 Quinta-feira Mar 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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carlos mendonça lopes, Jorge de Sena

Maus tempos 600pxContinuo com a poesia de Jorge de Sena (1919-1978), agora com um certo “ser lisboeta” em Lisboa 1971. O poema traça uma pintura que infelizmente parece ser intemporal, pois não será difícil reconhecer nele o hoje, afora as páginas literárias que não existem, substanciado na fala do taxista que o poema incorporada, e o poeta comenta.

 

O poema foi publicado no livro EXORCISMOS de 1972, e nele, a abrir, o poeta avisa:

AVISO DE PORTA DE LIVRARIA

Não leiam delicados este livro,

sobretudo os heróis do palavrão doméstico,

as ninfas machas, as vestais do puro,

os que andam aos pulinhos num pé só,

com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,

enquanto com a terceira vão tapando a boca

dos que andam com dois pés sem medo das palavras.

 

E quem de amor não sabe fuja dele:

qualquer amor desde o da carne àquele

que só de si se move, não movido

de prémio vil, mas alto e quase eterno.

De amor e de poesia e de ter pátria

aqui se trata: que a ralé não passe

este limiar sagrado e não se atreva

a encher de ratos este espaço livre

onde se morre em dignidade humana

a dor de haver nascido em Portugal

sem mais remédio que trazê-lo n’alma.

25/1/1972

O que de Amor o livro trata, virá depois. Agora deixo-vos com

LISBOA 1971

O chofer de taxi queixava-se da vida.

Ganha 400$00 por semana, o patrão conta

que ele se arranje do a mais com as gorjetas.

 

Os meus amigos morrem de cancro,

de tédio, de páginas literárias,

vi um rapaz sem as duas mãos que perdeu

na guerra (e o ortopedista ria-se de que ele

só queria por enquanto “calçar” uma das

que, artificiais, lhe preparou tão róseas).

As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência

o autocarro, aumento de ordenado, a chegada

do Paracleto, bolsas da sopa do convento.

Mas o chofer de taxi contou-me que

discutira com um asno e lhe dissera:

“… V. que nesse tempo ainda andava a fugir

de colhão para colhão do seu pai

para ver se escapava a ser filho da puta…”

E é isto: andam de colhão para colhão

a ver se escapam — e muitos não escapam.

E os outros não escapam aos que não escaparam.

Lisboa, 5/8/1971

Poemas transcritos de Poesia III, 2ªedição, Edições 70, Lisboa, 1989.

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A passagem do tempo — High Society como pretexto

06 Sexta-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Bing Crosby, carlos mendonça lopes, Cary Grant, Cinema, Frank Sinatra, Grace Kelly, High Society, John Ford, Katharine Hepbrun, Louis Armstrong, Mogambo, Philadelphia Story, T.S. Elliot, True Love

Grace KellyAcontece às belas o mesmo que às outras — gasta-as a vida.

 

Parece já um lugar comum, mas vale sempre a pena voltar a ele: as mulheres hoje envelhecem muito mais tarde que há duas ou três décadas. Não obstante, se para as mulheres do nosso convívio esse é um dado que fruímos com o maior prazer: degustar os sinais mínimos de envelhecimento que se acrescentam subrepticiamente dia a dia, e com eles a maturidade que as faz mais suculentas; para as mulheres míticas, com uma beleza cristalizada numa certa imagem, o confronto com o seu envelhecimento, que constitui o cair de um mito, mostra-se por vezes um choque.

Para mim, como para muitos homens e mulheres no mundo, Grace Kelly incarnou um dos tipos de beleza humana oferecido como ideal. Faz parte do conceito de ideal a sua imutabilidade, mas humanos somos, e o tempo ao passar deixa marcas. Foram as marcas do tempo nesta beleza ideal o motivo desta conversa.

High Society é um remake da fabulosa comedia com Katharine Hepbrun e Cary Grant, Philadelphia Story, desta vez contada como musical. Nele, cruzam-se Bing Crosby, Frank Sinatra e Louis Armstrong com Grace Kelly, a bela, que até canta True Love (Verdadeiro amor), êxito de mais de um milhão de cópias vendidas.

Deste verdadeiro amor fala a história e encanta, apesar da pesada realização que se arrasta um pouco pasmada, talvez, pela beleza da protagonista. Para quem não viu o filme, a foto de abertura do artigo, feita para a sua promoção, pode dar uma ideia.

O que segue é que, muitos anos mais tarde, e já princesa do Mónaco, a Kelly assistiu e subiu ao palco, para apresentar Frank Sinatra num concerto no Royal Festival Hall, em Londres, em 1971. Recordou Mogambo, a avassaladora obra-prima de John Ford, e o encontro  com Frank neste High Society. Foi ao vê-la ali e recordar o filme, que o mito se desfez. A mulher que ali estava era uma sombra da beleza divina que pelo filme passeava.

À época, escrevi o que hoje vos mostro.

Curei-me.

Da deusa que à beira da piscina, túnica grega, se metamorfoseia de gelo em fogo

ficou aquela bela mulher cansada.

Não mais ilusões!

 

Vê-la,

a pele baça, a voz áspera,

percebi a diferença:

Acontece às belas o mesmo que às outras—gasta-as a vida.

 

E citando T.S. Elliot me despeço:

Burnt Norton

…

Vai, vai, vai, disse a ave: o género humano

Não pode suportar muita realidade.

O tempo passado e o tempo futuro

O que podia ter sido e o que foi

Tendem para um só fim, que é sempre presente.

Original

Burnt Norton

…

Go, go, go, saíd the bird: human kind

Cannot bear very much reality.

Time past and time future

What might have and what as been

Point to one end, which is always present.

Do primeiro dos Quatro Quartetos.

Para recordar deixo-vos True Love cantado por Bing Crosby e acompanhado por Grace Kelly. É um rip a partir do disco de vinil.
https://s3-eu-west-1.amazonaws.com/viciodapoesiamedia/True+Love+-+Bing+Crosby+%26+Grace+Kelly+(Mono).mp3

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Pensamentos sobre o tempo – Paul Fleming (1609-1640)

06 Quinta-feira Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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carlos mendonça lopes, Paul Fleming

O mundo cigiadoAinda que a colagem de abertura nos remeta para o nosso vigiado tempo, o convite poético é para uma reflexão intemporal sobre o enigma do tempo que a cada um cabe viver.

O poema de Paul Fleming (1609-1640) que vos trago, Pensamentos sobre o tempo, pode parecer a uma leitura superficial, apenas trocadilho em torno ao tempo, mas em segunda leitura, a reflexão desenvolve-se a seu pretexto:

E que será esse outro que de vós fará nada?

É à interrogação sobre a eternidade:

Ah, viesse aquele tempo em que tempo não há,
P’ra nos levar do nosso para os tempos de lá

e ao nosso efémero, que o poema nos conduz:

O tempo é o que vós sois, vós sois o que o tempo é,
Mas bem menos sois vós que aquilo que o tempo é.

Leia-se a totalidade do poema.

Pensamentos sobre o tempo

Vós viveis no tempo e o tempo não conheceis;
Do que sois e onde estais, vós, homens, não sabeis.
O que sabeis é só que num tempo nascestes
E que haveis de partir num tempo, tal viestes.
Mas o que foi o tempo que em si vos deu guarida?
E que será esse outro que de vós fará nada?
O tempo é tudo e nada, o homem a ele igual;
Mas sobre o tudo e o nada a duvida é geral.
O tempo morre em si, e de si renasceu.
Um vem de mim e de ti, outro és tu e sou eu.
O homem é no tempo, este nele também.
E no entanto o homem, quando ele fica, vai.
O tempo é o que vós sois, vós sois o que o tempo é,
Mas bem menos sois vós que aquilo que o tempo é.
Ah, viesse aquele tempo em que tempo não há,
P’ra nos levar do nosso para os tempos de lá
E a nós de nós mesmos, para podermos ser
Iguais àquele tempo que já deixou de ser!

Tradução de João Barrento

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Um poema de amor de Manuel de Freitas

05 Quarta-feira Dez 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Convite à música, Poetas e Poemas

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carlos mendonça lopes, Henry Purcell, Manuel de Freitas

go 118a2Z1 530Já aqui escrevi da surpresa e admiração pela poesia de Manuel de Freitas (1972), excepção na poesia mimética que hoje por Portugal se escreve. Quando lancei um olhar abrangente sobre a sua poesia, ficou de fora o livro GAME OVER. A ele vou hoje buscar um poema de amor, que no meu desconhecimento supus, o poeta não escreveria.

IN VAIN THE AM’ROUS FLUTE

Estas escadas tinham degraus
onde por acaso nos sentámos
à espera de não ver gaivotas,
com livros abertos
quando as mãos chegavam.

De novo e despercebida e só,
acendia-se para morrer na tarde
a inútil figuração do desejo.

E éramos outra vez nós
os seus irrepetíveis figurantes,
escondidos num poema
que o tempo pisou, deixa lá
– o recomeçado amor descendo.

Nota talvez desnecessária

O título do poema remete para a Ode para o dia de Santa Cecília de 1692, Hail, bright Cecilia! Z 328, de Henry Purcell (1659-1695), onde se encontra a parte para dois tenores “In vain the am´rous flute and soft guitar”.

Vale a pena sentir o poema ganhar uma especial emoção e harmonia ao ouvi-la. A ardência do desejo no pudor da linguagem sobressai se se souber o que na ária se canta:

In vain the am´rous flute and soft guitar
Jointly labour to inspire
Wanton heat and loose desire
Whilst thy chaste airs do gently move
Seraphic flames and heav’nly love.

A fotografia que abre o artigo não evoca nada. Apenas o calor da luz sobre a desolação me fez escolhê-la.

Noticia bibliográfica

GAME OVER foi publicado por &etc em 2002, com capa de Luis Manuel Gaspar, paginação e composição de Olímpio Ferreira.

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Outono de Russell Edson (n.1935)

29 Quinta-feira Nov 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à fotografia, Poetas e Poemas

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carlos mendonça lopes, Russell Edson

É sempre preciso o maior cuidado com o que se diz. Raramente somos compreendidos.

O poema de hoje dá, na sua simplicidade alegórica, a extensão desta incomunicação, mesmo entre os que são próximos.

Entre o gesto e a aparência corre um mundo de significados cuja compreensão nos escapa em grande parte.

Deixo-vos com a interrogação maior: quando alguém fala, quem houve, ouve o quê?

Outono

Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.

Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala pois as tuas raízes podem estragar a carpete.

Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as folhas.

Mas os pais disseram olha é outono

Segue-se o original em inglês

The Fall

There was a man who found two leaves and came
indoors holding them out saying to his parents
that he was a tree.

To which they said then go into the yard and do
not grow in the living room as your roots may
ruin the carpet.

He said I was fooling I am not a tree and he
dropped his leaves.

But his parents said look it is fall.

Poema publicado em O TÚNEL, com tradução do poeta José Alberto Oliveira, edição ASSÍRIO & ALVIM, Lisboa 2002.

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Obra Digital (2002-2003)

27 Terça-feira Nov 2012

Posted by viciodapoesia in Convite à arte

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carlos mendonça lopes

Obra Digital (2002-2003)

No inicio da década de 2000, com a vulgarização das primeiras máquinas fotográficas digitais e o aparecimento de programas de computador com ferramentas de desenho e manipulação de imagem, entreguei-me entusiasmado à criação digital. Esse trabalho culminou com uma exposição em Lisboa no ano de 2003.

São alguns dos trabalhos então expostos, e outros nunca mostrados publicamente que agora se reúnem em livro, constituindo um corpus de criação digital nos primórdios de uma nova era.

Entroncam estas criações na tradição da arte ocidental, em diálogo com ela, explorando o embrião do que viria a ser o mundo novo que hoje, dez anos passados, conhecemos.

O livro pode ser visto seguindo o link abaixo:

(fazendo click no icon mais à direita abaixo do livro, este pode ser visto em ecran inteiro)

Visualizar o livro em computador: aqui!

Pode ainda fazer download gratuito para iPad

Download para iPad aqui!

Enjoy!

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