• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Luiza Neto Jorge

Jornal de domingo — um poema de Luiza Neto Jorge

09 Sábado Mar 2019

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Heinrich Maria Davringhausen, Luiza Neto Jorge

Usando as palavras com uma precisão cirúrgica, a poesia de Luiza Neto Jorge (1939-1989) corta o inócuo das aparências como lâmina de bisturi, expondo o complexo biológico e social humano:

 

Viver, entretanto, é ver, e ir vendo
e também ver inclui dormir
sem que nada se desfaça se exclua
no interior dos sonhos.
…
do poema Recanto 2

 

 

Transcrevo a seguir, desta poesia de dilaceração, o poema Jornal de domingo:

…
Na casa não há domingo
há um fio de amor partido
que sangra pingo por pingo

 

 

Poema dentro do poema, simultaneamente lemos o que do mundo faz o recreio nas notícias do jornal de domingo:

 

Na página aberta
do jornal de hoje
um anúncio traz
a mulher bela
com poros de pele
um cabelo que são
letras soltas
…
Todos nós esperamos
que ao dobrar a página
se leia isto aquilo
a emoção de ler

e se leia tudo

do pensar na fêmea
a fêmea esgotada
desde o púbis à cor
do riso
…
se leiam as coisas
nas conversas
que entre si não têm
nos obstáculos
que entre si não saltam
…
Com letras maiores
aparece o nome
de um amante morto
com o crânio calvo
de ave sonhadora
…

 

e lemos depois um quadro doméstico onde o lido se reflecte:

…
Acontece então
um homem sentir
a água escorrer
dentro do pescoço
e fazer-lhe um nó
como de gravata

que lhe vai bem

nesse fato inútil
vestido à pressa
para ler o jornal
para matar a fêmea
que o recusou
…

 

 

A violência doméstica hoje vivida concentra-se de forma alegórica e lapidar neste poema, a lembrar a realidade terrível vivida no presente pelas vítimas mortais, e candidatas a sê-lo, de um quadro social que desculpabiliza e consente o ciúme e a sua corte de valores, como legítima justificação de opressão até ao assassínio.

 

 

 

Jornal de domingo

Na página aberta
do jornal de hoje
um anúncio traz
a mulher bela
com poros de pele
um cabelo que são
letras soltas

sua boca é um selo

na resposta à carta
que lhe pede a mão
e o seu sexo louro
e o rosto liso
na fotografia
como um peixe rindo

Todos nós esperamos

que ao dobrar a página
se leia isto aquilo
a emoção de ler

e se leia tudo

do pensar na fêmea
a fêmea esgotada
desde o púbis à cor
do riso
quando se ergue
e o vento recua
quando se deita
e se esquece nisso

se leiam as coisas

nas conversas
que entre si não têm
nos obstáculos
que entre si não saltam
homens objetos
anões fadas peixes
gulodices

Com letras maiores

aparece o nome
de um amante morto
com o crânio calvo
de ave sonhadora
que outrora poisou
de amor em amor
dentro dos domingos

*


Domingo é o espaço

onde todos cabem
sem lhes ser preciso
fazer vénia ao sol

Acontece então

um homem sentir
a água escorrer
dentro do pescoço
e fazer-lhe um nó
como de gravata

que lhe vai bem

nesse fato inútil
vestido à pressa
para ler o jornal
para matar a fêmea
que o recusou

e se lhe afeiçoa

o fato depois da vingança
e o faz igual
a alguém que dança

Aranha ao de leve

arranha no corpo
e o homem não lê
porque está esquecido
— a pensar em quê?

— Mais um domingo —

é o que dirá
se não o matarem
por qualquer razão
mil punhais salobros
saídos do chão

se voltar a casa

é o que dirá

Na casa não há domingo

há um fio de amor partido
que sangra pingo por pingo

 

in Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 1993.

 

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Heinrich Maria Davringhausen (1894-1970), der lustmörder, o prazer assassino.

 

À esquerda uma mulher jaz numa cama, degolada e nua. Ao centro, sentado à mesa, navalha pousada, garrafa e copo, e algo na mão, o assassino olha, reflexivo, inexpressivo quanto à tragédia que provocou, transmitindo de forma eloquente quanto já perdeu do que um dia o aproximou de um ser humano digno.

 

Quadro banhado a vermelho, alegoria simultânea do sangue derramado e do inferno de uma vida, pelas janelas entra a luz do mundo exterior, dia e noite, no seu caminhar indiferente a esta tragédia humana entre quatro paredes.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

A Magnólia — poema de Luiza Neto Jorge

30 Quarta-feira Mar 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 6 comentários

Etiquetas

Luiza Neto Jorge

Ab3 550pxÉ ao mistério da palavra poética que este poema, A Magnólia, de Luiza Neto Jorge (1939-1989) nos conduz: A exaltação do mínimo, /…/ um mínimo ente magnífico / desfolhando relâmpagos / sobre mim.

Para além da experiência directa da autora, pretexto para a enunciação do poema, ficam as múltiplas pistas que em sucessivas leituras se desdobram, devolvendo a cada palavra o poder de faiscar a imaginação. E temos, talvez o mais importante, o sabor dos versos que gulosamente lemos sem cuidar da sua inteligibilidade imediata: onde a palavra se elide / na matéria — na metáfora — / necessária, e leve, a cada um / onde se ecoa e resvala.

Estamos bem longe daquela espécie de contar a vidinha que em tanta poesia reluz, com maior ou menor fulgor, deixando o leitor sem espaço para fazer a sua imaginação voar.

 

A Magnólia

 

A exaltação do mínimo,

e o magnifico relâmpago

do acontecimento mestre

restituem-me a forma

o meu resplendor.

 

Um diminuto berço me recolhe

onde a palavra se elide

na matéria — na metáfora —

necessária, e leve, a cada um

onde se ecoa e resvala.

 

A magnólia,

o som que se desenvolve nela

quando pronunciada,

é um exaltado aroma

perdido na tempestade,

 

um mínimo ente magnífico

desfolhando relâmpagos

sobre mim.

 

Transcrito de Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

O Corpo Insurrecto — poema de Luiza Neto Jorge

17 Domingo Maio 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Luiza Neto Jorge, Tom Wesselmann

Tom Wesselmann - Great American Nude No 20 1961Há na poesia de Luiza Neto Jorge (1939-1989) uma elucidação dos sentidos e da sua força vital tornando evidente como e quanto comandam a vida.  Numa sofisticada linguagem poética onde o requinte da língua se apura, sucedem-se os poemas repassados de uma objectividade sem concessões a qualquer lirismo edulcorado, tornando a sua leitura frequentemente compulsiva.

Transcrevo hoje em jeito de ilustração o poema O Corpo Insurrecto, publicado pela primeira vez no livro Terra Imóvel, Portugália, Lisboa, 1964.

 

O Corpo Insurrecto

 

Sendo com o seu ouro, aurífero,

o corpo é insurrecto.

Consome-se, combustível,

no sexo, boca e recto.

 

Ainda antes que pegue

aos cinco sentidos a chama,

por um aceso acesso

da imaginação

ateiam-se à cama

ou a sítio algures,

terra de ninguém,

(quem desliza é o espaço

para o corpo que vem),

 

labaredas tais

que, lume, crepitam

nos ciclos mais extremos,

nas réstias mais íntimas,

as glândulas, esponjas

que os corpos apoiam,

zonas aquáticas

onde os corpos boiam.

 

No amor, dizendo acto de o sagrar,

apertado o corpo do recém-nascido

no ovo solar,

há ainda um outro

corpo incluído,

 

mas um corpo aquém

de ser são ou podre,

um repuxo, um magna,

substância solta,

com pulmões.

 

Neste amor equívoco

(ou respiração),

sendo um corpo humano,

sendo outro mais alto,

suspenso da morte,

mortalmente intenso,

mais alto e mais denso,

 

mais talhado é o golpe

quando o põem em prática

com desassossego na respiração

e o sossego cru de quem,

tendo o corpo nu,

a carne ardida,

lhe pede o ladrão

a bolsa ou a vida.

 

Transcrito de Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

A imagem a abrir mostra uma pintura de Tom Wesselmann (1931-2004) – Great American Nude No 20, 1961.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Luiza Neto Jorge — O Poema e A Dívida

24 Terça-feira Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ Deixe um comentário

Etiquetas

Luiza Neto Jorge

Quentin MASSYS - O Prestamista 600pxEscrever poesia é algo diferente de relatar uma reflexão de estar só ou enviar uma mensagem social ou comercial.

O uso da língua, o mistério das palavras, a intuição para lá da lógica, são matéria que pode conduzir ao poema. Nem sempre.

 

Escolho dois poemas de Luiza Neto Jorge (1939-1989) onde à reflexão sobre as possibilidades do poema se junta uma trivialidade dos nossos dias, A Dívida, e a sua possibilidade poética. Aqui encontramos a narrativa que do simples se faz múltiplo, conduzindo cada leitura a sentidos novos do real.

 

O Poema

 

I

Esclarecendo que o poema

é um duelo agudíssimo

quero eu dizer um dedo

agudíssimo claro

apontado ao coração do homem

 

falo

com uma agulha de sangue

a coser-me todo o corpo

à garganta

 

e a essa terra imóvel

onde já a minha sombra

é um traço de alarme

 

II

Piso do poema

chão de areia

 

Digo na maneira

mais crua e mais

intensa

 

de medir o poema

pela medida inteira

 

o poema em milímetro

de madeira

 

ou apodrece o poema

ou se ateia

 

ou se despedaça

a mão ateia

 

ou cinco seis astros

se percorre

 

antes que o deserto

mate a fome

 

A Dívida

 

Viva no instantâneo lábio do punhal

na hora diariamente imóvel

 

As dívidas crescem já são ásperas

magoam a pele já são pus

 

O dia começa pela sombra

como um povo começa pelo pó

Luz e morte coincidem hora a hora

 

A dívida alastra   abre as asas

leva-me sonhos débeis tudo a tenta

 

Atrás do meu gesto

a mão sozinha os dedos conspirando

assimétricos

salientes do corpo até à morte

 

Já hoje os doava se pudesse

Com que arma porém os separar de mim?

 

A dívida mais cresce

enquanto eu penso

 

Transcrito de Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.059.323 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 873 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo
  • A separação num poema de Heinrich Heine e a paráfrase de Gonçalves Crespo
  • O cansaço de Álvaro de Campos

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Create a free website or blog at WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 873 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: