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Escrever poesia é algo diferente de relatar uma reflexão de estar só ou enviar uma mensagem social ou comercial.
O uso da língua, o mistério das palavras, a intuição para lá da lógica, são matéria que pode conduzir ao poema. Nem sempre.
Escolho dois poemas de Luiza Neto Jorge (1939-1989) onde à reflexão sobre as possibilidades do poema se junta uma trivialidade dos nossos dias, A Dívida, e a sua possibilidade poética. Aqui encontramos a narrativa que do simples se faz múltiplo, conduzindo cada leitura a sentidos novos do real.
O Poema
I
Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem
falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta
e a essa terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme
II
Piso do poema
chão de areia
Digo na maneira
mais crua e mais
intensa
de medir o poema
pela medida inteira
o poema em milímetro
de madeira
ou apodrece o poema
ou se ateia
ou se despedaça
a mão ateia
ou cinco seis astros
se percorre
antes que o deserto
mate a fome
A Dívida
Viva no instantâneo lábio do punhal
na hora diariamente imóvel
As dívidas crescem já são ásperas
magoam a pele já são pus
O dia começa pela sombra
como um povo começa pelo pó
Luz e morte coincidem hora a hora
A dívida alastra abre as asas
leva-me sonhos débeis tudo a tenta
Atrás do meu gesto
a mão sozinha os dedos conspirando
assimétricos
salientes do corpo até à morte
Já hoje os doava se pudesse
Com que arma porém os separar de mim?
A dívida mais cresce
enquanto eu penso
Transcrito de Luiza Neto Jorge, poesia, Assírio & Alvim, Lisboa, 2001.