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Iluminura 24 600pxComo sempre, na simplicidade de palavras de todos os dias, num discorrer quase coloquial, Jorge Luís Borges (1899-1986) leva-nos por caminhos de reflexão profunda sobre nós, o mundo, a cultura e o tempo, naquela zona, quase fenda, por onde a razão não entra, e o inverosímil se faz plausível, porque uma mulher te beijou, pois súbito, somos não o ínfimo, mas a humanidade inteira, e há no ar a incrível fragrância das rosas do Paraíso.

 

Hino

 

Esta manhã

há no ar a incrível fragrância

das rosas do Paraíso.

Na margem do Eufrates

Adão descobre a frescura da água.

Uma chuva de ouro cai do céu;

é o amor de Zeus.

Salta do mar um peixe

é um homem de Agrigento lembrará

ter sido ele esse peixe.

Na gruta cujo nome será Altamira

dedos sem rosto traçam a curva

de um lombo de bisonte.

A lenta mão de Virgílio acarinha

a seda trazida

do reino do Imperador Amarelo

por naus e caravanas.

O primeiro rouxinol canta na Hungria.

Jesus vê na moeda o perfil de César.

Pitágoras revela aos seus gregos

que a forma do tempo é a do círculo.

Numa ilha do Oceano

os lebréus de prata perseguem os veados de ouro.

Numa bigorna forjam a espada

que será fiel a Sigurd.

Whitman canta em Manhattan.

Homero nasce em sete cidades.

Uma donzela acaba de caçar

o unicórnio branco.

Todo o passado volta, é uma onda,

e essas antigas coisas regressam

porque uma mulher te beijou.

 

Poema publicado em La Cifra (1981), aqui em tradução de Fernando Pinto do Amaral, in Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol III, Editorial Teorema, Lisboa, 1998.

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