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Sherlock Holmes visto por Jorge Luis Borges

05 Terça-feira Jul 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Jorge Luís Borges

O Meu RevolverDe surpresa, encontro no poema de Jorge Luis Borges (1899-1986) que hoje transcrevo as razões porque pouco me entusiasmam as aventuras de Sherlock Holmes. Simultaneamente, e pelas razões opostas, percebo como me colo às aventuras deslindadas por Maigret. Trata-se, afinal, e tão só, de casos de humanidade neste último personagem e ausência dela no primeiro.
Humanidade reconhecível, desde logo, nos gestos mínimos de comer e amar, e que em Maigret são omnipresentes tanto no carinho sóbrio com que o personagem Maigret trata Madame Maigret como na presença constante do acto de comer enquanto gesto essencial de convívio e partilha com os restantes personagens que povoam os enredos das histórias.
Nada disto existe no personagem Holmes, como bem argumenta Jorge Luis Borges, pleno de razão, no poema Sherlock Holmes, referindo a sua ausência no personagem:

…
É casto. Nada sabe do amor. Não quis.
Esse homem tão viril renunciou à arte
de amar. Em Baker Street vive só e à parte.
A arte de esquecer também nada lhe diz.

Sonhou-o um irlandês, que nunca lhe quis bem
e que tentou matá-lo, ao que parece. Em vão.
Esse homem, só, prossegue, com a lupa na mão,
um destino invulgar de coisa sem além.
…

 

Em Borges vida e literatura são simbiose perfeita, daí que, como sempre no escritor, o poema depois de escalpelizar o personagem nos seus tiques e peculiaridades:

 

…
Espevita no seu lar as inflamadas chamas
ou dá morte nos pântanos a um cão do inferno.
Esse alto cavalheiro ignora que é eterno.
Resolve ninharias, repete epigramas.
…
 

salta para uma serena contemplação do destino humano:
…
Não nos surpreendamos. Depois da agonia,
o fado ou o acaso (são a mesma coisa)
concede a cada um essa sorte curiosa
de ser forma e ser eco a morrer dia a dia.

Até ao dia último em que o esquecimento,
que é a meta comum, nos esqueça de todo.
Antes que nos atinja, brinquemos com o lodo
de ser durante um tempo, de ser e de ir sendo.
…

Termina o poema com uma reflexão sobre o que no final a vida nos permite (o livro foi publicado um ano antes da morte do escritor):
 

…
Pensar de tarde em tarde em Sherlock Holmes é uma
dessas boas rotinas que restam. A morte
e a sesta são outras. É a nossa sorte:
convalescer num parque ou contemplar a Lua.
 

 

Nas histórias desenvolvidas a pretexto de um crime, se pela adolescência o puzzle de desenhar a solução a partir de indícios materiais escassos e aparentemente desarticulados (à maneira Ellery Queen) me entusiasmou, cedo passei a preferir o enredo psicológico que transforma por acasos circunstanciais um banal indivíduo num criminoso factual, onde o quadro psicológico e social joga um papel decisivo. E aí cheguei à leitura compulsiva dos romances com o protagonista Maigret.
Com Holmes temos matéria factual de difícil encadeamento para o observador corrente, transformando cada ocorrência em mistério sem solução.
É afinal, sem estranheza, que este personagem bizarro, dotado de faculdades incomuns, é sucessivamente encenado com sucesso em filmes e séries televisivas: a sua aptidão para resolver o que à comum das gentes parece insolúvel dá-nos uma medida da incompreensão do mundo à nossa volta, e intuitivamente explica-nos a falta de sucesso com que frequentemente lidamos com ele.

 

 

Serlock Holmes

Não teve nunca mãe nem ancestrais maiores.
Idêntico é o caso de Quijano e Adão.
Foi feito pelo acaso. Imediato ou à mão,
regem-no os vaivéns de variáveis leitores.

Não é erro pensar que nasce no momento
em que é visto pelo outro que lhe conta a história
e morre sempre em cada eclipse da memória
de todos os que o sonham. Mais vazio que o vento.

É casto. Nada sabe do amor. Não quis.
Esse homem tão viril renunciou à arte
de amar. Em Baker Street vive só e à parte.
A arte de esquecer também nada lhe diz.

Sonhou-o um irlandês, que nunca lhe quis bem
e que tentou matá-lo, ao que parece. Em vão.
Esse homem, só, prossegue, com a lupa na mão,
um destino invulgar de coisa sem além.

Ele não tem relações, mas não o atraiçoa
a devoção do outro, o seu evangelista
e que dos seus milagres nos deixou a lista.
Vive comodamente: em terceira pessoa.

Tomar banho não vai. Também não visitava
esse retiro Hamlet, lá na Dinamarca
sem saber quase nada dessa vã comarca
que é a espada e o mar, o arco e a aljava.

(“Omnia sunt plena Jovis.” Da mesma maneira
diremos desse justo que dá nome aos versos
que a sua fugaz sombra percorre nos diversos
domínios em que foi segmentada a esfera.)

Espevita no seu lar as inflamadas chamas
ou dá morte nos pântanos a um cão do inferno.
Esse alto cavalheiro ignora que é eterno.
Resolve ninharias, repete epigramas.

Chega-nos de uma Londres de gás e neblina,
A Londres que se sabe capital do império
que lhe interessa bem pouco, a Londres de mistério
tranquilo, que não quer sentir que já declina.

Não nos surpreendamos. Depois da agonia,
o fado ou o acaso (são a mesma coisa)
concede a cada um essa sorte curiosa
de ser forma e ser eco a morrer dia a dia.

Até ao dia último em que o esquecimento,
que é a meta comum, nos esqueça de todo.
Antes que nos atinja, brinquemos com o lodo
de ser durante um tempo, de ser e de ir sendo.

Pensar de tarde em tarde em Sherlock Holmes é uma
dessas boas rotinas que restam. A morte
e a sesta são outras. É a nossa sorte:
convalescer num parque ou contemplar a Lua.

 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral
Publicado no livro Los Conjurados (1985)
Transcrito de Jorge Luis Borges, Obras Completas 1975-1985, Editorial Teorema, 1988.

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Hino por Jorge Luis Borges

22 Domingo Mar 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Jorge Luís Borges

Iluminura 24 600pxComo sempre, na simplicidade de palavras de todos os dias, num discorrer quase coloquial, Jorge Luís Borges (1899-1986) leva-nos por caminhos de reflexão profunda sobre nós, o mundo, a cultura e o tempo, naquela zona, quase fenda, por onde a razão não entra, e o inverosímil se faz plausível, porque uma mulher te beijou, pois súbito, somos não o ínfimo, mas a humanidade inteira, e há no ar a incrível fragrância das rosas do Paraíso.

 

Hino

 

Esta manhã

há no ar a incrível fragrância

das rosas do Paraíso.

Na margem do Eufrates

Adão descobre a frescura da água.

Uma chuva de ouro cai do céu;

é o amor de Zeus.

Salta do mar um peixe

é um homem de Agrigento lembrará

ter sido ele esse peixe.

Na gruta cujo nome será Altamira

dedos sem rosto traçam a curva

de um lombo de bisonte.

A lenta mão de Virgílio acarinha

a seda trazida

do reino do Imperador Amarelo

por naus e caravanas.

O primeiro rouxinol canta na Hungria.

Jesus vê na moeda o perfil de César.

Pitágoras revela aos seus gregos

que a forma do tempo é a do círculo.

Numa ilha do Oceano

os lebréus de prata perseguem os veados de ouro.

Numa bigorna forjam a espada

que será fiel a Sigurd.

Whitman canta em Manhattan.

Homero nasce em sete cidades.

Uma donzela acaba de caçar

o unicórnio branco.

Todo o passado volta, é uma onda,

e essas antigas coisas regressam

porque uma mulher te beijou.

 

Poema publicado em La Cifra (1981), aqui em tradução de Fernando Pinto do Amaral, in Jorge Luis Borges, Obras Completas, vol III, Editorial Teorema, Lisboa, 1998.

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Um cego — poema de Jorge Luis Borges e desenho de Barocci

08 Domingo Jun 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas

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Federico Barocci, Jorge Luís Borges

Anónimo - atribuido a Federico Barocci

Já a propósito do poema Elogia da sombra falei de alguma da poesia de Jorge Luis Borges (1899-1986) sobre a cegueira. Hoje volto com o poema Um cego, o qual, na sua concisão lapidar, dá conta do sentimento de ver, de si, apenas a alma.

É este apenas ver a alma, a que quem é cego está remetido, algo de enorme dificuldade na representação gráfica.

O desenho que abre o artigo, de autor anónimo e atribuído ao pintor italiano quinhentista Federico Barocci (1528-1602), é um dos raros exemplos de representação exemplar de cegueira humana. Mas o desenho tem mais: tem um homem de quem quase conseguimos saber tudo, apesar de a representação não mostrar a alma pelo olhar, caminho da empatia no ver. É o inacabado do cabelo e barba que permite o destaque de todo o rosto, na pungente expressão de um provável e desolado sofrimento. Pouco diferirá da ira muda, fatigada, aflita, que Borges refere no poema que a seguir se lê

 

Um cego

 

Não sei qual é a face que me fita

Quando observo a face de algum espelho;

No seu reflexo espreita-me esse velho

Com ira muda, fatigada, aflita.

Lento na sombra, com as mãos exploro

Meus invisíveis traços. O mais belo

Fulgor me atinge. Vi o teu cabelo

Que é já de cinza ou é ainda de ouro.

Repito que perdi unicamente

A superfície sempre vã das coisas.

O consolo é de Milton e é valente,

Mas eu penso nas letras e nas rosas,

Penso que se pudesse ver a cara

Saberia quem sou na tarde rara.

 

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

in Obras Completas III, 1975-1985, Editorial Teorema, 1998

 

Un Ciego

 

No sé cuál es la cara que me mira

cuando miro la cara del espejo;

no sé qué anciano acecha en su reflejo

con silenciosa y ya cansada ira.

Lento en mi sombra, con la mano exploro

mis invisibles rasgos. Un destello

me alcanza. He vislumbrado tu cabello

que es de ceniza o es aún de oro.

Repito que he perdido solamente

la vana superficie de las cosas.

El consuelo es de Milton y es valiente,

pero pienso en las letras y en las rosas.

Pienso que si pudiera ver mi cara

sabría quién soy en esta tarde rara.

 

Transcrito de Poesía completa, Debolsillo, Barcelona, 2013.

 

O desenho pertence à colecção da Galeria Albertina de Viena.

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A conferência dos partidos — pintura de Paul Klee, com passagem pelo Reino de Pacheco

24 Sábado Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas, Prosa

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Alexandre O'Neill, Eça de Queiroz, Jorge Luís Borges, Paul Klee, Peter Kagayi

Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

…

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

…

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

…

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

…

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919

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Elogio da sombra — poema de Jorge Luis Borges

30 Sexta-feira Ago 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Jorge Luís Borges

Thomson_Ann-Windlass 1983São emocionante poesia e comovedora lição os poemas em que Jorge Luís Borges (1899-1986) nos fala da sua cegueira, e como com ele vemos o mundo sem luz.

Dos poemas  publicados em 1975 no livro La Rosa Profunda, quais 1972, Al Espejo, Mis Libros, e sobretudo os pungentes El Ciego e Un Ciego, à serena aceitação em On His Blindness, publicado em Los Conjurados, 1985, apreendemos novos significados para a luz e para o ver.

Mais de um olhar o mundo que olhar-se a si trata, no entanto, este Elogio da sombra, publicado em 1969 a fechar o livro do mesmo nome, que a seguir transcrevo, e onde da progressiva cegueira diz:  “Esta penumbra é lenta e não dói; / flui por um manso declive / e é parecida com a eternidade.“.

Mas há mais, há a infinita sabedoria dos versos que abrem o poema:

“A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) / pode ser o tempo de nossa felicidade. / O animal está morto  ou quase morto. / Restam o homem e sua alma.“.

E continua com o relato factual: “Vivo entre formas luminosas e vagas / que ainda não são a treva.“, dando conta da sua eximia arte de dizer as profundas verdades com ar de conversa trivial.

As pistas de reflexão saltam em cada nova leitura, qual palimpsesto, e poderia por aqui continuar, mas entrego-vos ao prazer da leitura do poema em tradução e no original espanhol.

Elogio da sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)

pode ser o tempo de nossa felicidade.

O animal está morto  ou quase morto.

Restam o homem e sua alma.

Vivo entre formas luminosas e vagas

que ainda não são a treva.

Buenos Aires,

que dantes se espraiava em arrabaldes

rumo à planície sem fim,

voltou a ser a Recoleta, o Retiro,

as confusas ruas do bairro Once

e as vacilantes casas velhas

que ainda chamamos o Sul.

Houve sempre na minha vida demasiadas coisas;

Demócrito de Abdera arrancou os olhos para pensar;

o tempo foi o meu Demócrito.

Esta penumbra é lenta e não dói;

flui por um manso declive

e é parecida com a eternidade.

Os meus amigos não têm rosto,

as mulheres são o que foram há tantos anos,

as esquinas podem ser outras,

não há letras nas páginas dos livros.

Tudo isto deveria amedrontar-me,

mas é uma doçura e um regresso.

Das gerações de textos que há na terra

só terei lido uns poucos,

os que ainda hoje leio na memória,

lendo-os e transformando-os.

Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte

convergem os caminhos que me trouxeram

ao meu secreto centro.

Esses caminhos foram ecos e passos,

mulheres, homens, agonias, ressurreições,

dias e noites,

devaneios e sonhos,

cada ínfimo instante de outrora

e dos outroras do mundo,

a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,

os actos dos mortos,

o partilhado amor, as palavras,

Emerson e a neve e tantas coisas.

Agora posso esquecê-las. Chego ao meu centro,

à minha álgebra e à minha chave,

ao meu espelho.

Em breve saberei quem sou.

Tradução de Fernando Pinto do Amaral

Elogio de la Sombra

La vejez (tal es el nombre que los otros le dan)

puede ser el tiempo de nuestra dicha.

El animal ha muerto o casi ha muerto.

Quedan el hombre y su alma.

Vivo entre formas luminosas y vagas

que no son aún la tiniebla.

Buenos Aires,

que antes se desgarraba en arrabales

hacia la llanura incesante,

ha vuelto a ser la Recoleta, el Retiro,

las borrosas calles del Once

y las precarias casas viejas

que aún llamamos el Sur.

Siempre en mi vida fueron demasiadas las cosas;

Demócrito de Abdera se arrancó los ojos para pensar;

el tiempo ha sido mi Demócrito.

Esta penumbra es lenta y no duele;

fluye por un manso declive

y se parece a la eternidad.

Mis amigos no tienen cara,

las mujeres son lo que fueron hace ya tantos años,

las esquinas pueden ser otras,

no hay letras en las páginas de los libros.

Todo esto debería atemorizarme,

pero es una dulzura, un regreso.

De las generaciones de los textos que hay en la tierra

sólo habré leído unos pocos,

los que sigo leyendo en la memoria,

leyendo y transformando.

Del Sur, del Este, del Oeste, del Norte,

convergen los caminos que me han traído

a mi secreto centro.

Esos caminos fueron ecos y pasos,

mujeres, hombres, agonías, resurrecciones,

días y noches,

entresueños y sueños,

cada ínfimo instante del ayer

y de los ayeres del mundo,

la firme espada del danés y la luna del persa,

los actos de los muertos,

el compartido amor, las palabras,

Emerson y la nieve y tantas cosas.

Ahora puedo olvidarlas. Llego a mi centro,

a mi álgebra y mi clave,

a mi espejo.

Pronto sabré quién soy.

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Despedida, o poema de Jorge Luis Borges

29 Segunda-feira Jul 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Jorge Luís Borges

Bearden_Romare-Spring_WayHá poemas que se bastam, não aceitam o supérfluo de comentários, qual este Despedida de Jorge Luís Borges (1899-1986), que hoje transcrevo.

Despedida

Hão-de erguer-se entre o meu amor e eu
trezentas noites quais trezentos muros
e o mar será magia entre nós dois.

Apenas haverá recordações.
Oh tardes merecidas pela pena,
noites esperançadas ao olhar-te,
campos do meu caminho, firmamento
que vejo e vou perdendo…
Definitiva como um mármore,
a tua ausência irá entristecer as tardes.

À belíssima tradução de Fernando Pinto do Amaral incluída na edição portuguesa das Obras Completas de Borges, acrescento o original em castelhano.

Despedida

Entre mi amor y yo han de levantarse

trescientas noches como trescientas paredes 

y el mar será una magia entre nosotros. 



No habrá sino recuerdos. 

Oh tardes merecidas por la pena, 

noches esperanzadas de mirarte, 

campos de mi camino, firmamento 

que estoy viendo y perdiendo… 

Definitiva como un mármol 

entristecerá tu ausencia otras tardes.

O poema foi publicado originalmente em Fervor de Buenos Aires (1923), primeiro livro de Borges.

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