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Tag Archives: Alexandre O’Neill

Arroz Amargo, o filme, e o poema Lezíria de Miguel Torga

16 Domingo Fev 2020

Posted by viciodapoesia in Poesia Portuguesa do sec. XX

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Alexandre O'Neill, Giuseppe de Santis, Miguel Torga, Silvana Mangano

Um filme ícone do cinema neo-realista italiano, Riso Amaro (Arroz Amargo) de 1949, cuja acção decorre entre  mondadeiras de arroz, dá conta simultaneamente de uma realidade social: as aspirações de vida melhor da juventude italiana pobre do pós- 2.ª guerra mundial, e de como o uso do corpo pode permitir uma ilusória melhoria material, se não alguma ascensão social. 

Filmado com mão de mestre por Giuseppe de Santis (1917-1997), toda aquela exploração humana é atravessada pelo erotismo que a juventude de qualquer condição social sente e vive. E aí, a pulposa e belíssima Silvana Mangano (1930-1989) nos seus 19 anos, dá corpo a uma personagem de antologia. O filme, proibido em Portugal até ao 25 de Abril de 1974 exactamente pela sua carga erótica, é um objecto precioso de uma certa maneira de ver pelo cinema. 

O trabalho das mondadeiras de arroz em meados do século XX, — Cantam, plantadas n’água, / Ao sol e à monda neste mês de Agosto. —, que em Portugal também existia, serviu a Miguel Torga (1907-1995) para um poema (Lezíria) em que a realidade social se associa a uma identidade de grupo nas mesmas condições de vida, e o poeta observa com empatia na distância da sua condição social.

O poema de Torga leva-nos a ver, naquela dura experiência, o amargo da condição humana — Cantam baixo, e parece / Que na raiz humana dos seus pés / Qualquer coisa apodrece. —, quando o conforto material é inexistente e a luta pela sobrevivência obrigava (e obriga) à emigração sazonal para os trabalhos duros do campo.

Sobre este poema de Miguel Torga escreveu Alexandre O’Neill (1924-1986) por ocasião de uma homenagem ao poeta(*):

“Lezíria de Miguel Torga é um objeto mágico que há mais de 30 anos me acompanha — e devo dizer, com toda a franqueza, que da poesia portuguesa de hoje poucos são os talismã que trago comigo.”

O artigo continua numa interessante análise do poema verso a verso.

 

 

Lezíria 

 

São duzentas mulheres. Cantam não sei que mágoa 

Que se debruça e já nem mostra o rosto. 

Cantam, plantadas n’água,

Ao sol e à monda neste mês de Agosto.

 

Cantam o Norte e o Sul duma só vez.

Cantam baixo, e parece 

Que na raiz humana dos seus pés 

Qualquer coisa apodrece.

 

Ribatejo, 11 de Agosto de 1941.

Poema incluído em Diário I, Coimbra, 

(*) Artigo publicado no jornal A Luta em 4 de Novembro de 1976, e republicado em Relâmpago, Revista de Poesia, 13, Out 2003.

Abre o artigo a imagem de um cartaz publicitário ao filme Arroz Amargo.

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Alexandre O’Neill num sábio e conciso poema

29 Terça-feira Mar 2016

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill

Artigo em reformulação.

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O Beijo num poema de Alexandre O’Neill

12 Domingo Abr 2015

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill

Fico feliz quando o trabalho me leva para o Sul. É provavelmente a largueza de horizontes que me atrai. Não é ainda o infinito do mar, mas a lonjura desimpedida sempre transmite uma sensação de liberdade.

Amanheceu para os lados do rio com nevoeiro cerrado e do branco húmido a ponte surgia como que suspensa do céu à medida que o carro avançava. Com o correr da manhã o tempo abriu e o céu mostrou-se. Fiz o que ali me levava e trabalho arrumado deambulei frente ao rio. Havia gaivotas —

Querela de aves, pios, escarcéu. / Ainda palpitante voa um beijo.

…

E é a força sem fim de duas bocas, / De duas bocas que se juntam, loucas!

No regresso bailavam-me as palavras do soneto O Beijo de Alexandre O’Neill ( 1924-1986). Transcrevo-o com o imperscrutável olhar da gaivota que tudo desencadeou.

Gaivota 600px

O Beijo

 

Congresso de gaivotas neste céu

Como uma tampa azul cobrindo o Tejo.

Querela de aves, pios, escarcéu.

Ainda palpitante voa um beijo.

 

Donde teria vindo! (Não é meu…)

De algum quarto perdido no desejo?

De algum jovem amor que recebeu

Mandado de captura ou de despejo?

 

É uma ave estranha: colorida,

Vai batendo como a própria vida,

Um coração vermelho pelo ar.

 

E é a força sem fim de duas bocas,

De duas bocas que se juntam, loucas!

De inveja as gaivotas a gritar…

 

Publicado pela primeira vez em No Reino da Dinamarca (1958) e transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ª edição revista e aumentada, Edição do Dia de Portugal, Braga, 10-Junho-1990.

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A conferência dos partidos — pintura de Paul Klee, com passagem pelo Reino de Pacheco

24 Sábado Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poetas e Poemas, Prosa

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Alexandre O'Neill, Eça de Queiroz, Jorge Luís Borges, Paul Klee, Peter Kagayi

Paul Klee - Erro em verde 1939

Contribuo para a reflexão pré-eleitoral que os portugueses hoje vivem, com a pintura alegórica de Paul Klee (1879-1940) que segue. Nela observamos de um lado o gigante liberal, à direita, enfrentando outros animais de corpulência diversa arrumados mais ou menos entre o centro e o lado esquerdo.

Paul Klee - O concerto dos partidos 1907

Os tempos correm perigosamente para o que Jorge Luis Borges (1899-1986) escreveu em 1976 no prólogo ao seu livro A Moeda de Ferro:

Sei-me de todo indigno de opinar em matéria política, mas talvez me seja perdoado acrescentar que descreio da democracia, esse curioso abuso da estatística (destaque meu).

Olhamos a campanha eleitoral na televisão, ouvimos quem se propõe governar-nos, cá ou em Estrasburgo, e ocorre-nos o fabuloso Pacheco inventado por Eça de Queiroz (1845-1900) (carta VIII de A Correspondência de Fradique Mendes).

O personagem é uma caricatura da inanidade parlamentar e pública que, infelizmente, e ainda hoje, vai ao encontro de exemplares vivos.

 

Vale a pena a transcrição da primeira intervenção parlamentar de Pacheco:

…

De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu), Pacheco afirmou num tom que traía a segurança do pensar e do saber íntimo: “Que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!” Era pouco, decerto:— mas a Câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses — mas o seu talento inspirava tanto mais respeito quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis) foi contemplar a testa de Pacheco — como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, conselheiros e directores-gerais balbuciavam maravilhados: “Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!”

…

Ficaria por aquí, não fora Pacheco, o da testa, ter inspirado um mais pungente que sarcástico poema a Alexandre O’Neill (1924-1986): No Reino do Pacheco:

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

…

Na verdade, vivemos a vida, não o nosso sonho dela.

Sou pai de um desses jovens qualificados que procuram no mundo a vida que cá não há, e quando surge a chamada de decidir do futuro(?) dentro das regras, interrogo-me sobre o como destes últimos quarenta anos nos trouxe até aqui, sem esquecer o país em que nasci e cresci. Não foi feito o melhor. Mas foi feito o possível? E agora, será diferente?

Pensava no que nos angustía, na vida que temos e não queremos e dei de olhos num poema de um jovem do Uganda, Peter Kagayi (1986).

 

Em 2065

Nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

As estradas serão iguais

Os políticos serão iguais

Kampala será igual

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos

 

E irei a Mulago para tratar o meu reumatismo e os médicos dirão que não há cura

E o homem do taxi-bicicleta irá recomendar-me um curandeiro da zona Oeste do Nilo

E irei para a escola do meu neto assim como o meu avô fez

E irei ser mandado embora por excesso de idade

 

O presidente vai ser o mesmo que temos hoje, e desde uma cadeira de rodas irá proferir o seu Discurso Nacional

Só que o filho dele, feito entretanto Marechal, irá lê-lo no lugar dele

E falará no seu lugar

E mandará no seu lugar

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E Makerere estará mexida por motins e o General-Major “Não-sei-quantos”

Ordenará abrir fogo contra os estudantes que reivindicam feijões fritos

Pois isso será um perigo para a segurança nacional

E U.R.A. irá taxar o ar que respiramos, as vezes que os casais se beijam,

Os nossos excrementos, as palavras que proferimos e a maneira como morremos

E determinará quem vai para o céu e quem vai para o inferno e irá taxar os seus corpos de modo diferente

 

Em 2065 nada irá mudar assim tanto, excepto o facto de ter mais de 70 anos.

 

E os professores estarão a pedir nas ruas para alimentarem as suas famílias

As suas esposas irão dormir com turistas para conseguirem levar uma vida decente

As leis serão a mesma sombra que os colonialistas deixaram atrás

Com sistemas demasiado arcaicos e demasiado alheados para proporcionarem alguma coisa de essencial

E os estudantes ficarão reduzidos a couves e batatas assim como se encontram hoje em dia

E a proporção entre os desempregados e os aspirantes a trabalho será de nove a um assim como é hoje

E assim a vida irá avançar

E assim nada mudará

…

 

E nós seremos as pessoas desse futuro

Construídas num presente que não promete assim tanto

Excepto envelhecer

Estaremos aí com a esperança de morrer em breve.

 

Depois da transcrição parcial deste terrível poema, deixo-vos com o Reino do Pacheco em véspera de ganhar novo fôlego democrático. Amanhã regresso ao mundo harmonioso do amor feliz.

 

No Reino do Pacheco

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos,

E a vida? Não a vivemos.

 

Querer viver (deixai-me rir!)

seria muito exigir…

Vida mental? Com certeza!

Vida por detrás da testa

será tudo o que nos resta?

Uma ideia é uma ideia

— e até parece nossa! —

mas quem viu uma andorinha

a puxar uma carroça?

 

Se à ideia não se der

o braço que ela pedir,

a ideia, por melhor

que ela seja ou queira ser,

não será mais que bolor,

pão abstracto ou mulher

sem amor!

 

Às duas por três nascemos,

às duas por três morremos.

E a vida? Não a vivemos.

 

Neste reino de Pacheco

— do que era todo testa,

do que já nada dizia,

e só sorria, sorria,

do que nunca disse nada

a não ser prá galeria,

que também não o ouvia,

do que, por detrás da testa,

tinha a testa luzidia,

neste Reino de Pacheco,

ó meus senhores que nos resta

senão ir aos maus costumes,

às redundâncias, bem-pensâncias,

com alfinetes e lumes,

fazer rebentar a besta,

pô-la de pernas pró ar?

 

Por isso, aqui, acolá

tudo pode acontecer,

que as ideias saem fora

da testa de cada qual

para que a vida não seja

só mentira, só mental…

 

Publicado pela primeira vez em Poemas com Endereço,1962. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

O poema de Peter Kagayi foi transcrito de Próximo Futuro, nº14, Outubro 2013, publicação em formato de jornal editada pela Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa.

Termino com o que poderá ser uma imagem da angústia portuguesa ao votar, pintura também de Paul Klee.

Paul Klee - Ensimesmamento 1919

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Se… por Alexandre O’Neill

22 Quinta-feira Maio 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill, Salvador Dalí

cubist-figure

Talvez alguns leitores estejam lembrados do poema Se, tradução do poema de Rudyard Kipling (1865-1936), If, e foi um must estampado num cartaz que encheu paredes de quartos juvenis por finais dos anos 60 do século XX. É uma paródia a esse poema que Alexandre O’Neill (1924-1986) faz neste seu poema, Se…, que a seguir transcrevo.

 

 

SE…

 

Se é possível conservar a juventude

Respirando abraçado a um marco de correio;

Se a dentadura postiça se voltou contra a pobre senhora e a mordeu

Deixando-a em estado grave;

Se ao descer do avião a Duquesa do Quente

Pôs marfim a sorrir;

Se Baú-Cheio tem acções nas minas de esterco;

Se na América um jovem de cem anos

Veio de longe ver o Presidente

A cavalo na mãe;

Se um bode recebe o próprio peso em aspirina

E a oferece aos hospitais do seu país;

Se o engenheiro sempre não era engenheiro

E a rapariga ficou com uma engenhoca nos braços;

Se reentrante, protuberante, perturbante,

Lola domina ainda os portugueses;

Se o Jorge (o “ponto” do Jorge!) tentou beber naquela noite

O presunto de Chaves por uma palhinha

E o Eduardo não lhe ficou atrás

Ao sair com a lagosta pela trela;

Se “ninguém me ama porque tenho nau hálito

E reviro os olhos como uma parva”;

Se Mimi Travessuras já não vem a Lisboa

Cantar com o Alberto…

 

…acaso o nosso destino,tac!, vai mudar?

 

 

Publicado pela primeira vez em No Reino da Dinamarca, 1958. Transcrito de Poesias Completas 1951/1986, INCM, 3ªedição revista e aumentada, Braga, 10 de Junho, Dia de Portugal, 1980.

 

A imagem de abertura respeita a uma pintura de Salvador Dalí (1904-1989).

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Alexandre O’Neill — Ana Brites, Balada tão ao gosto português

02 Quarta-feira Out 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill

Degas_Edgar-A_Roman_Beggar_Woman

Na poesia de Alexandre O’Neill (1924-1986) o sarcasmo tem presença frequente, e se um corrosivo humor cruza quase toda a sua poesia, o poeta foi por vezes capaz de comovente ternura por alguns desamparados, qual este Ana Brites, Balada tão ao gosto português.

 Ana Brites, Balada tão ao gosto português

Ana Brites, a coitada,

está no seu canto, enfartada,

a brancura do cabelo

na brancura da almofada,

a roupa da cama, pois,

bem dobrada e alinhada.

 

Ana Brites, camponesa

do fundo de Portugal,

com um tubo no nariz,

não pensa nem bem nem mal,

vê imagens, as da vida,

que até agora viveu,

vê a Castanha, a vaquinha,

o que no eido ocorreu,

vê-se em pequena, sozinha,

por esses montes, além,

caminho das letras gordas

também das quatro operações,

vê-se já em rapariga,

a alfinetar corações.

 

Vê o primeiro que pôs

rumores no seu coração,

um moço de grande lábia

sempre alegre e espertalhão.

Vê aquele que a levou,

por uma vez ao altar,

e vai, no seu corpo entrou,

como na casa o ladrão,

para a deixar com um filho

que é a sua devoção.

 

Ana Brites, a coitada,

sente, às vezes, a dor fina.

Apetece-lhe gemer,

mas é muito envergonhada,

além de não ser menina.

 

É então que uma senhora,

branca, de sorriso doce,

aparece em boa hora,

põe-lhe a mão no peito murcho

e vai-se embora só quando

a dor fica aliviada.

 

Ela não sabe quem é,

mas por seu bem ou seu mal,

habituou-se a chamar-lhe:

Senhora do Hospital.

O poema foi transcrito de Alexandre O’Neill, Poesias Completas 1951/1986, 3ª edição revista e aumentada, INCM, Edição do Dia de Portugal, 10 de Junho de 1990.

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Alexandre O’Neill — Há palavras que nos beijam, e outros poemas onde o amor também está

18 Quarta-feira Set 2013

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill

Snyders_Frans-Fruit_and_Vegetable_Stall_detailCom uma ternura escondida frequentemente sobre a brutalidade do verso, fala-nos Alexandre O’Neill (1924-86) de variadas formas que o amor reveste e de como a sua ausência dói.

Começo com o poema Há palavras que nos beijam onde lemos Palavras que nos transportam / Aonde a noite é mais forte, / Ao silêncio dos amantes / Abraçados contra a morte.

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

 

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto;

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

 

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas inesperadas

Como a poesia ou o amor.

 

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído

No papel abandonado)

 

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Abraçados contra a morte.

Mudamos agora de registo e acompanhamos as dificuldades de jovens pais em viver a sua sexualidade com meninos em torno. Munch - four-girls-in-arsgardstrand-1903Canção de embrulhar

boa noite meninos não

não levantar da cama

não ir pé ante pé ver os pais ao

quarto diz que eles são quatro foles

agarrados uns aos outros ar

quejando diz que é o amor

ou quejando diz que é

o pai com uma coisinha assim

a meter um recado na caixinha que a mãe

tem diz que não que não é a da

costura que é aquela onde se

guardam os meninos antes de se poder

comprar o berço e eles poderem

nascer para o amor dos seus pais

No que segue, escreve Alexandre O’Neill sobre o homem solitário e a sua busca de consolo no sexo. Se os poemas envolvendo prostitutas são matéria poética vasta nos mais variados registos, referir em poesia o recurso a uma boneca insuflável para coito do coitado, coutada do solitário, não conheço outro.

Botero_Fernando-Seated_Woman_I 1997Soprónia Insuflávia

Soprónia Insuflávia, ó minha noiva cauchutada,

minha câmara-de-ar nupcial,

coito do coitado, coutada do solitário

cervo que nos galhos trazia à dependura

o retrato da que diziam verdadeira…

Verdadeira és tu, Soprónia! Machucada,

logo repões a glória da tua carne

na opulência das tuas formas,

as mesmas que, pelo catálogo, escolhi.

Porque fui eu que, à velha maneira, te escolhi

e a teus pais te paguei para poder trazer-te

a este quarto onde, dando novos sentidos à estafada canção,

o amor é uma coisa maravilhosa!

Que obediência devemos a práticas que não sejam as mais antigas?

Nós não fazemos amor, como diz a de hoje tão dessorada gente;

nós, está bem de ver, FORNICAMOS!

Não precisamos de Kahn, Egas Moniz ou Freud,

sequer de Reich, pensador orgasmático,

nem dessa trupe que dá pelo nome de As Femininistas

e que ao homem, quando quer, fecha obscenamente as pernas,

como santola que, já no prato, se recusasse.

Tão-pouco necessitamos de dar as nossas mãos

e fazer rodas infantis em casa de senhores idosos

para que a língua-de-sogra neles se desenrole

e eles digam:”- Te adoro!”

Somos absolutamente pela moral.

… … … … … … … … … … … … … … … … … … …

Ao Algarve, Soprónia, que o tempo tástupendo!

Desinflada, meto-te na mala.

Em Albufeira, recobro a forma do meu amor

e, naquele mar que nasceu para estar deitado,

deitamo-nos perdidamente a amar!

Termino com esta pungente Meditação na Pastelaria onde se fala de solidão e memória do que foi, talvez, amor – Chorar encostada a uma saudade / Bem maior do que eu, – e onde os sentimentos se abrigam na companhia de um cão de estimação. Henri de Toulouse-Lautrec - a condessa tomando o pequeno-almoçoMeditação na Pastelaria

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

 

Nunca se sabe quando começa a insolência!

Que tempo este, meu Deus, uma senhora

Está sempre em perigo e o perigo

Em cada rua, em cada olhar,

Em cada sorriso ou gesto

De boa-educação!

 

A inspecção irónica das pernas,

Eis o que os homens sabem oferecer-nos,

Inspecção demorada e ascendente,

Acompanhada de assobios

E de sorrisos que se abrem e se fecham

Procurando uma fresta, uma fraqueza

Qualquer da nossa parte…

 

Mas uma senhora é uma senhora.

Só vê a malícia quem a tem.

Uma senhora passa

E ladrar é o seu dever — se tanto for preciso!

 *

O pó de arroz:

Horrível!

O bâton:

Igual!

 

O amor de Raul é já uma saudade,

Foi sempre uma saudade…

(O escritório

Toma-lhe todo o tempo?

Desconfio que não…)

 

Filhos tivemos um:

Desapareceu…

E já nem sei chorar!

 

Chorar…

Como eu queria poder chorar!

 

Chorar encostada a uma saudade

Bem maior do que eu,

Que não fosse esta tristeza

Absurda de cada dia:

Unha

Quebrada de melancolia…

 

Perdi tudo, quase tudo…

 

Hoje,

Resta-me a devoção

E este pequeno inteligente cão.

 

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

Os poemas foram transcritos de Alexandre O’Neill, Poesias Completas 1951/1986, 3ª edição revista e aumentada, INCM, Edição do Dia de Portugal, 10 de Junho de 1990.

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Periclitam os grilos/ a noite é nada e mais poemas de Alexandre O’Neill

09 Quarta-feira Fev 2011

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill

Enquanto olho Lisboa, saltita-me o pensamento entre a metafísica dos sinais de transito no percurso da volta,e a importância do tempo no boletim meteorológico. É preciso ver o caminho. E inevitavelmente chego a Alexandre O’Neill.


Periclitam os grilos:

a noite é nada.

Quem tem filhos tem cadilhos,

(Que quadra tão bem rimada!)


Não espere, leitor, que eu diga:

“Debaixo daquela arcada…”.

Não venho fazer intriga:

versejo só – e mais nada.


Assim o terceiro verso

desta tirada

(reparou que é um provérbio?)

não significa mais nada.


Se a noite é nada e os grilos

não estão de asa parada,

não vou puxar, só por isso,

o fio à sua meada,


leitor que me pede história

que já traz engatilhada,

leitor que não se habitua

a que não aconteça nada


em poesia que comece

como esta foi começada

e acabe como esta

vai agora ser acabada…

A esta luz, é a possibilidade da metáfora no jogo do bingo que me ocorre, mas este céu duma tristeza cor de farda leva-me a esse outro SONETO onde a aposta é na vida, mesmo errada.

No céu duma tristeza cor de farda,

Uma angustia de nuvens se desenha.

O amor já morreu: que o tempo venha

Desmantelar o que a memória guarda.


Jogai!, jogai! Quem não jogar não ganha

Nem perde. É a última cartada.

Eu aposto na vida, mesmo errada.

Talvez outro destino me sustenha.


Avião de Lisboa para o mundo,

Apaga-me a tristeza com as asas,

Tão nítidas no céu em que me afundo!


Depois desaparece atrás das casas

E deixa-me o azul, o azul profundo,

E duas nuvens de razão tocadas.

Ei-las:

Deixo-vos com um AUTO-RETRATO do poeta em 1962 onde lembra a imensa verdade de que amor não há feito:

AUTO-RETRATO

 

O’Neill (Alexandre), moreno português,

cabelo asa de corvo; da angústia da cara,

nariguete que sobrepuja de través

a ferida desdenhosa e não cicatrizada.

Se a visagem de tal sujeito é o que vês

(omita-se o olho triste e a testa iluminada)

o retrato moral também tem os seus quês

(aqui, uma pequena frase censurada..)

No amor? No amor crê (ou não fosse ele O’Neill!)

e tem a veleidade de o saber fazer

(pois amor não há feito) das maneiras mil

que são a semovente estátua do prazer.

Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se

do que neste soneto sobre si mesmo disse…

Noticia bibliográfica:

Soneto foi publicado em 1958 no livro NO REINO DA DINAMARCA, Periclitam os grilos foi publicado em 1960 no livro ABANDONO VIGIADO, AMBOS PELA Guimarães Editores . AUTO-RETRATO foi publicado em POEMAS COM ENDEREÇO, em 1962 pela Livraria Moraes Editora.

 

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Garvaia e um poema talvez esquecido de Alexandre O’Neill

31 Segunda-feira Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill, Poesia

Na poesia de Alexandre O’Neill, tantas vezes surpreendente e quase sempre genial, encontramos o retrato mordaz que nos define, frequentemente salpicado de uma ternura conivente.

Os exemplos da sua escrita que me apetecia escolher são imensos. No entanto, fiel ao propósito do blog de seguir caminhos menos frequentados, escolhi um poema que não encontrei recolhido nas obras recentemente publicadas com poemas dispersos do Autor, daí o talvez do título.

O poema, Requeixa de Taveirós, inclui-se numa obra colectiva e comemorativa, dedicada à canção medieval Garvaia.

Como refere o editor da obra, Garvaia é nome de manto real e deu nome a um poema. A esta cantiga de amor ou de escárneo se atribuiram diversas autorias e sobre ela se teceram as mais diversas interpretações. Foi-lhe concedida e retirada a honra de ser considerada a primeira poesia portuguesa e há até quem pense estar ela incompleta.

Actualmente atribuida a Pai Soares de Taveirós, eis a canção:

Cantiga da Garvaia

No mundo nom me sei parelha

mentre me for como me vai,

ca ja moiro por vós e ai!

mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia.

Mao dia me levantei

que vos entom nom vi fea!


E, mia senhor, des aquelha

me foi a mi mui mal di’ai!

E vós, filha de dom Paai

Moniz, e bem vos semelha

d’aver eu por vós guarvaia,

pois eu, mia senhor, d’alfaia

nunca de vós ouve nem ei

valia d’ua correa.

É tomando como glosa este poema que O’Neill escreveu Requeixa de Taveirós tornando explicito, o que o poema nos conta e transtorna a humanidade desde sempre ou, como escreve o poeta, entreve e entretem / mortos e vivos, com o propósito de possuir vossa carne / e arrastar-vos, empós, / ao tumulto dos sentidos .

Requeixa de Taveirós

Como eu, mais nenhum outro

foi tão crédulo e tão louco

de me confiar em vós,

senhora branca e vermelha.


Franzis-me essa sobrancelha

com altivez e altavoz.

Nem por isso possuís

razão por vós.


Nem de razão é o assunto,

mas de coração, talvez.

Aqui não entra bestunto,

por esta vez.


Dizeis-me, o que eu já sabia,

que é melhor sofrer poesia,

pensando em vós,

que alimentar veleidade

de possuir vossa carne

e arrastar-vos, empós,

ao tumulto dos sentidos

que entreve e entretem

mortos e vivos.


E quem assim desassisa

a Deus pede que o assista.

Rogai por nós!



Noticia bibliográfica

No âmbito das jornadas de História Medieval realizadas em Junho de 1985, A Altamira e a Quetzal-Funchal promoveram a edição luxuosa em 150 exemplares + 50 exemplares fora do mercado, da Cantiga da Garvaia extraída do Cancioneiro da Ajuda e acompanhada por 2 serigrafias de Vespeira e poemas de Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Natália Correia, Nuno Júdice, Pedro Tamen, Vasco Graça Moura.

O poema foi retirado do exemplar 19/150.

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