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Dirceu – O poeta Tomás António Gonzaga

07 Domingo Abr 2013

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Dirceu, Marília, Poesia, Tomás António Gonzaga


Continuo a desafiar os leitores do Blog para a poesia antiga.

Publicado este artigo num tempo em que a audiência do blog se contava por meia dúzia de leitores, o artigo tem permanecido escondido entre o mais de meio milhar de artigos do arquivo do blog. Resolvi despertá-lo, na tentativa de encontrar novos leitores para um poeta maior que dá gosto ler.

Hoje, o autor é conhecido e lendária a paixão por Marília. Será a sua poesia assim conhecida?

Despida dos convencionalismos arcádicos que pululam na maior parte da poesia portuguesa da segunda metade do sec. XVIII, é a nobreza e verdade do sentimento o que nos comove ao lê-la.

Do lirismo do tempo de Coimbra ainda com sabor ao soneto quinhentista, à variedade poética com que envolve a sua paixão por Marília, temos um conjunto de belíssima poesia de que escolho quase ao acaso alguns poemas.

 

Antes de Marília

Vamos com o jovem poeta do sonho de riqueza ao coração dividido por dois amores

I

Num fértil campo do soberbo Douro,

Dormindo sobre a relva, descansava,

Quando vi que a fortuna me mostrava,

Com alegre semblante, o seu tesouro.

 

De uma parte, um montão de prata e ouro

Com pedras de valor o chão curvava;

Aqui um ceptro, ali um trono estava,

Pendiam coroas mil de grama e louro.

 

– Acabou-se – diz-me então – a desventura:

De quantos bens te exponho qual te agrada,

Pois benigna o concedo, vai, procura.

 

Escolhi, acordei, e não vi nada:

Comigo assentei logo que a ventura

Nunca chega a passar de ser sonhada.

 

II

É gentil, é prendada a minha Altéia;

As graças, a modéstia do seu rosto

Inspiram no meu peito maior gôsto

Que ver o próprio trigo quando ondeia.

 

Mas, vendo o lindo gesto de Dircéia,

A nova sujeição me vejo exposto;

Ah! Que é mais engraçado, mais composto

Que a pura esfera, de mil astros cheia!

 

Prender as duas com grilhões estreitos

É uma acção, ó deuses, inconstante,

Indigna dos sinceros nobres peitos.

 

Cupido, se tens dó de um triste amante,

Ou forma de Lorino dous sujeitos,

Ou forma desses dous um só semblante.

 

Retrato e paixão por Marília

Primeiro o retrato.

Os olhos:

ao sol se excedem / na luz que dão,

o resto di-lo o poema.

 

Depois a paixão com um poema que nos dá conta do que sente o apaixonado sem remédio.

se não vivera /

uma esperança / no peito seu, /

já morto estava / o bom Dirceu.

 

III

A minha amada / é mais formosa

que branco lírio, / dobrada rosa,

que o cinamomo,  / quando matiza / co’a folha a flôr.

Vénus não chega / ao meu amor.

 

Vasta campina, / de trigo cheia,

quando na sesta / co vento ondeia,

ao seu cabelo, / quando flutua, / não é igual.

Tem a cor negra, / mas quanto val!

 

Os astros, que andam / na esfera pura,

quando cintilam  / na noite escura,

não são, humanos, / tão lindos como / seus olhos são,

que ao sol se excedem / na luz que dão.

 

Às brancas faces / ah! Não se atreve

jasmim de Itália, / nem inda a neve,

quando a desata / o sol brilhante / com seu calor.

São neve, e causam / no peito ardor.

 

Na breve boca / vejo enlaçadas

as finas per’las / com as granadas;

a par dos beiços, / rubis da India / têm preço vil.

Neles se agarram / amores mil.

 

Se não lhe desse / compadecido,

tanto socorro / o deus Cupido;

se não vivera / uma esperança / no peito seu,

já morto estava / o bom Dirceu.

 

Vê quanto pode / teu belo rosto,

e de gozá-lo / o vivo gosto!

Que submergido / em um tormento / quase infernal,

porqu’inda espero, / resisto mal.

 

IV

Não sei, Marília, que tenho, / Depois que vi o teu rosto,

Pois quanto não é Marília / Já não posso ver com gosto.

Noutra idade me alegrava, / Até quando conversava

Com o mais rude vaqueiro: / Hoje, ó bela, me aborrece

Inda o trato lisonjeiro / Do mais discreto pastor.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de amor?

 

Saio da minha cabana / Sem reparar no que faço;

Busco o sítio aonde moras / Suspendo defronte o passo.

Fito os olhos na janela; / Aonde, Marília bela,

Tu chegas ao fim do dia; / Se alguém passa e te saúda,

Bem que seja cortesia, / Se acende na face a cor.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de amor?

 

Se estou, Marília, contigo, / Não tenho um leve cuidado;

Nem me lembra se são horas / De levar à fonte o gado.

Se vivo de ti distante, / Ao minuto, ao breve instante

Finge um dia o meu desgosto; / Jamais pastora te vejo

Que em teu semblante composto / Não veja graça maior.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de amor?

 

Ando já com o juizo, / Marília, tão perturbado,

Que no mesmo aberto sulco / Meto de novo o arado.

Aqui no centeio pego, / Noutra parte em vão o sego;

Se alguém comigo conversa, / Ou não respondo, ou respondo

Noutra coisa tão diversa, / Que nexo não tem menor.

Que efeitos são os que sinto?

Serão efeitos de amor?

 

Se geme o bufo agoureiro, / Só Marília me desvela,

Enche-se o peito de mágoa, / E não sei a causa dela.

Mal durmo, Marília, sonho / Que fero leão medonho

Te devora nos meus braços: / Gela-se o sangue nas veias,

E solto do sono os laços / À força de imensa dor.

Ah! Que os efeitos, que sinto,

Só são efeitos de amor!

 

O namoro e a explicação do sexo

Brincadeiras, ciúme, e como se fazem meninos com exemplos colhidos na natureza.

 

V

Num sitio ameno, / cheio de rosas, / de brancos lírios / murtas viçosas.

Dos seus amores / na companhia / Dirceu passava / alegre o dia.

Em tom de graça, / ao terno amante / manda Marília / que toque e cante.

Pega na lira, / sem que a tempere, / a voz levanta, / e as cordas fere.

Cos doces pontos / a mão atina, / e a voz iguala / à voz divina.

Ela, que teve / de rir-se a ideia, / nem move os olhos, / de assombro cheia.

Então Cupido / aparecendo, / à bela fala, / assim dizendo:

– Do teu amado / a lira fias, / só por que dele /zombando rias?

Quando num peito / assento faço, / do peito subo / à lingua e braço.

Nem creias que outro / estilo tome, / sendo eu o mestre, / a acção teu nome.

 

VI

Minha Marília, / tu enfadada? / Que mão ousada

perturbar pode / a paz sagrada / do peito teu?

Porém que muito / que irado esteja

o teu semblante: / também troveja / o claro céu.

 

Eu sei, Marília, / que outra pastora / a toda hora,

em toda a parte, / cega namora / ao teu pastor.

Há sempre fumo / aonde há fogo:

Assim, Marília, / há zelos, logo / que existe amor.

 

Olha, Marília, / na fonte pura / a tua alvura,

a tua boca / e a compustura / das mais feições.

Quem tem teu rosto / Ah! Não receia

que terno amante / solte a cadeia, / quebre os grilhões.

 

Não anda Laura / nestas campinas / sem as boninas

no seu cabelo, / sem peles finas / no seu jubão.

Porém que importa? / O rico asseio

não dá, Marília, / ao rosto feio / a perfeição.

 

Quando apareces / na madrugada, / mal embrulhada

na larga roupa, / e desgrenhada, / sem fita ou flor,

Ah! Que então brilha / a natureza!

Então se mostra / tua beleza / inda maior.

 

O céu formoso, / quando alumia / o sol de dia,

ou estrelado, / na noite fria, / parece bem.

Também tem graça / quando amanhece;

até Marília, / quando anoitece / também a tem.

 

Que tens, Marília, / que ela suspire, / que ela delire,

que corra os vales, / que os montes gire, / louca de amor?

Ela é que sente / esta desdita;

e na repulsa / mais se acredita / o teu pastor.

 

Quando há, Marília, / alguma festa / lá na floresta,

(fala a verdade!) / dança com esta / o bom Dirceu?

E se ela o busca, /vendo buscar-se,

não se levanta, / não vai sentar-se / ao lado teu?

 

Quando um por outro / na rua passa, / se ela diz graça

ou muda o gesto, / esta negaça / faz-lhe impressão?

Se está fronteira, / e brandamente /

lhe fita os olhos, / não põe, prudente, / os seus no chão?

 

Deixe o ciúme, / que te desvela, / Marília bela;

nunca receies / dano daquela / que igual não fôr.

Que mais desejas? /Tens lindo aspecto;

Dirceu se alenta / de puro afecto, /de pundonor.

 

VII

Marília, de que te queixas? / De que te roube Dirceu

O sincero coração? / Não te deu também o seu?

E tu, Marília, primeiro / Não lhe lançaste o grilhão?

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

Em torno das castas pombas / Não rulam ternos pombinhos?

E rulam, Marília, em vão? / Não se afagam os biquinhos?

E a provas de mais ternura / Não os arrasta a paixão?

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

Já viste, minha Marília, / Avezinhas que não façam

Os seus ninhos no verão? / Aquelas, com quem se enlaçam,

Não vão cantei-lhes defronte / Do mole pouso, em que estão?

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

Se os peixes, Marília, geram / Nos bravos mares e rios,

Tudo efeitos de amor são. / Amam os brutos ímpios,

A serpente venenosa, / A onça, o tigre, o leão.

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

As grandes deusas do céu / Sentem a seta tirana

Da amorosa inclinação / Diana, por ser Diana,

Não se abrasa, não suspira / Pelo amor de Endimião?

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

Desiste, Marília bela, / De uma queixa sustentada

Só na altiva opinião. / Esta chama é inspirada

Pelo céu, pois nela assenta / A nossa conservação.

Todos amam; só Marília

Desta lei da natureza

Queria ter isenção?

 

A prisão

Num pungente canto, assistimos ao desfilar dos terrores da prisão a que o amor por Marília oferece o conforto e a esperança.

O poema termina de forma admirável com a exclamação:  Vê, Marília, o quanto pode / contra meus males teu rosto!

 

VIII

Se o vasto mar se encapela / e na rocha em flor rebenta,

grossa nau, que não tem leme, / em vão sustentar-se intenta;

até que naufraga e corre / à discrição da tormenta.

 

Quem não tem uma beleza, / em que ponha o seu cuidado,

se o céu se cobre de nuvens, / e se assopra o vento irado,

não tem forças que resistam / ao impulso do seu fado.

 

Nesta sombria masmorra, / aonde, Marília, vivo,

encosto na mão o rosto, / fico ás vezes pensativo.

Ah! Que imagens tão funestas / me finge o pesar activo!

 

Parece que vejo a honra, / Marília, toda enlutada;

a face de um pai, rugosa, / num mar de pranto banhada;

os amigos macilentos, / e a familia consternada.

 

Quero voltar os meus olhos / para outro diverso lado:

vejo numa grande praça / um teatro levantado;

vejo as cruzes, vejo os potros, / vejo o alfange afiado.

 

Um frio suor me cobre, / lassam-me os membros, suspiro;

busco alívio às minhas ânsias, / não o descubro, deliro.

Já, meu bem, já me parece, / que nas mãos da morte expiro.

 

Vem-me então ao pensamento / a tua testa nevada,

os teus meigos, vivos olhos, / a tua face rosada,

os teus dentes cristalinos, / a tua boca engraçada.

 

Qual, Marília, a estrela d’alva, / que a negra noite afugenta;

qual o sol, que a névoa espalha, / apenas a terra aquenta;

ou qual íris, que o céu limpa, / quando se vê na tormenta.

 

Assim, Marília, desterro / triste ilusão e demência;

faz de novo o seu oficio / a razão e a prudência;

e firmo esperanças doces / sobre a cândida inocência.

 

Restauro as forças perdidas, / sobe a viva cor ao rosto,

gira o sangue pela veia / e bate o pulso, composto.

Vê, Marília, o quanto pode / contra meus males teu rosto!

Lida hoje, a sinceridade do sentimento expresso e a forma singela despida de arrebiques, faz nosso contemporâneo este poeta e esta poesia. Quem alguma vez amou reconhece a cada passo  as dúvidas, os anseios, a hipérbole da admiração e a esperança de redenção a que o amor conduz.

 

Noticia biográfica e bibliográfica

 

Tomás António Gonzaga (1744-1810) nascido no Porto, passou a adolescência no Brasil de onde voltou com 17 anos, em 1761, para se matricular na Universidade em Coimbra no ano seguinte, estudar leis, e de onde saiu graduado em 1768, aos 24 anos.

Tendo exercido cargos públicos como Juiz em Portugal, foi nomeado em 1782 Ouvidor de Vila Rica no Brasil, para onde partiu nesse ano e nunca mais regressou a Portugal.

Vila Rica era a capital de Minas Gerais, por onde ao tempo passavam ouro e diamantes com destino a Portugal.

Integrado na sociedade local, conheceu Maria Doroteia, menina da boa sociedade, na altura com cerca de 17 anos. Linda, a ajuizar por testemunhos da época, deu a volta à cabeça do nosso poeta, a entrar nos 40.

O namoro pegou, e foi esta Maria Doroteia a Marília cantada por Gonzaga, que a si atribuiu o nome de Dirceu.

O namoro prosseguiu por entre as complicações politicas em torno do Ouvidor e em meados de 1787 o casamento estava assente.

 

Entre as complicações em torno do homem que para a obra do poeta nos interessam, esteve a publicação das Cartas Chilenas, sátira veemente aos desmandos e tiranias do Governador de Minas, escritas na clareza de linguagem que caracteriza o poeta e ás vezes de uma ironia pungente. Estas Cartas Chilenas circularam sem nome de autor.

Foi por esta altura, 1788, que o depois famoso “Tiradentes”, alferes Joaquim José da Silva Xavier, concebeu a ideia de um levantamento armado que proclamasse a indepêndencia de Minas Gerais em relação à coroa portuguesa.

Os maiores amigos de Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da Costa, ambos poetas notáveis, brasileiros de nascimento, envolveram-se na conspiração. Aparentemente o nosso poeta tinha na conspiração um pé dentro e outro fora.

Um dos visados nas Cartas Chilenas, Joaquim Silvério dos Reis, foi quem denunciou a conjura junto do Governador e apontou Gonzaga como chefe da conspiração.

A 21 de Maio de 1789 o Governador ordenou a prisão de Gonzaga, e em vésperas do casamento o poeta foi enviado para o Rio de Janeiro e encarcerado na Fortaleza da Ilha das Cobras.

Após 3 anos de prisão Gonzaga, foi condenado a 10 anos de degredo em Moçambique, e a 23 de Maio de 1792 partiu para Africa com mais seis réus do que ficou conhecido como Inconfidência.

Não voltaria a ver Marília.

 

Do resto da vida passada em Moçambique, onde morreu em 1810, dá conta com abundantes detalhes, Manuel Rodrigues Lapa na edição crítica das Poesias e Cartas Chilenas, publicada no Rio de Janeiro em 1957 pelo Instituto Nacional do Livro, e de cujo prefácio me socorri para as informações que acima deixei.

 

Sob o título “Marília de Dirceu e outras poesias”, foi a poesia amorosa de Tomás António Gonzaga publicada na colecção Clássicos Sá da Costa, onde conheceu ampla divulgação. A edição foi de M. Rodrigues Lapa, e anterior à edição crítica que acima referi. Segundo o editor, ás condições da edição em plena 2ª Guerra Mundial, em 1942, se devem algumas insuficiências da edição Sá da Costa, colmatadas na edição crítica de 1957 feita no Brasil.

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Homenagem de Almada a Camões

10 Quinta-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Almada negreiros, Camões, Faria e Sousa, Poesia


Comemorar Camões é ler-lhe a poesia, fazê-la nossa, brincar com ela.

Passam hoje 440 anos sobre a sua morte, e o poeta continua vivo, na nossa companhia, permitindo-nos o prazer quase quotidiano da sua poesia.

É de Almada Negreiros, esse português sem mestre como Augusto-França lhe chamou, que me socorro para assinalar a data.

No tom brincado que é ás vezes o seu, aqui temos a aventura de Camões e da poesia em Portugal.


LUÍS, O POETA

SALVA A NADO O POEMA


Era uma vez / um português / de Portugal.

O nome Luis / há-de bastar / toda a nação / ouviu falar.

Estala a guerra / e Portugal / chama Luis / para embarcar.

Na guerra andou / a guerrear / e perde um olho / por Portugal.

Livre da morte / pôs-se a contar / o que sabia / de Portugal.

Dias e dias / grande pensar / juntou Luis / a recordar.

Ficou um livro / ao terminar / muito importante / para estudar.

Ia num barco / ia no mar / e a tormenta / vá d’estalar.

Mais do que a vida / há-de guardar /o barco a pique / Luis a nadar.

Fora da água / um braço no ar / na mão o livro / há-de salvar.

Nada que nada / sempre a nadar / livro perdido / no alto mar.

– Mar ignorante / que queres roubar? / a minha vida / ou este cantar?

A vida é minha / ta posso dar / mas este livro / há-de ficar.

Estas palavras / hão de durar / por minha vida / quero jurar.

Tira-me as forças / podes matar / a minha alma / sabe voar.

Sou português / de Portugal / depois de morto / não vou mudar.

Sou português / de Portugal / acaba a vida / e sigo igual.

Meu corpo é Terra / de Portugal / e morto é ilha / no alto mar.

Há portugueses /a navegar / por sobre as ondas / me hão-de achar.

A vida morta / aqui a boiar / mas não o livro / se há-de molhar.

Estas palavras / vão alegrar / a minha gente / de um só pensar.

À nossa terra / irão parar / lá toda a gente / há-de gostar.

Só uma coisa / vão olvidar: / o seu autor / aqui a nadar.

É fado nosso / é nacional / não há portugueses / há Portugal.

Saudades tenho / mil e sem par / saudade é vida / sem se lograr.

A minha vida / vai acabar / mas estes versos / hão-de gravar.

O livro é este / é este o cantar / assim se pensa / em Portugal.

Depois de pronto / faltava dar / a minha vida / para o salvar.

Escrito em Madrid. Dezembro de 1931.


Como é sabido, a poesia lírica de Camões não foi publicada em livro em vida do autor, a menos de poucas peças incluídas em obras de terceiros, nem são conhecidos manuscritos autógrafos dos poemas.

Corre a lenda a partir de palavras de Diogo do Couto na Década VIII, que enquanto o poeta preparava Os Lusídas para edição, “foi escrevendo muito em um livro que ia fazendo, que intitulava Parnaso de Luis de Camões, livro que lhe furtaram e nunca pude saber no reino dela, por muito que inquiri, e foi furto notável …”.

Tal Parnaso … nunca foi encontrado. Os poemas circulavam de mão em mão e quando em 1595, 15 anos após a morte do poeta, Manuel de Lima preparou a 1ªedição das Rhythmas de Luís de Camões para o editor Estêvão Lopes, na ausência de manuscritos autógrafos, os editores socorreram-se das cópias que circulavam, sem segura atribuição de proveniência. Esta edição contemplou os poemas que à data conseguiram reunir.

A 2ªedição 3 anos depois, em 1598, acrescentou 63 novas composições e suprimiu 3. Uma 3ª edição em 1616 incluiu novas peças.

Na 4ª edição das Rimas em 1668 voltam a ser acrescentadas 60 obras poéticas de diversos géneros.

Faria e Sousa, em edição póstuma (1685-1689), acrescentou ao que era tomado pelo cânone da Lírica de Camões, 76 novas poesias. A novidade desta edição prende-se com o circunstanciado comentário que acompanha cada poesia, fazendo da obra, ainda hoje, uma aliciante experiência de leitura.

A admiração apaixonada de Faria e Sousa pela obra de Camões, levou-o a reconhecidos exageros de atribuição de autoria com o caso mais notável de erro em relação a Diogo Bernardes.

Não pararam aqui os acréscimos à obra do poeta.

A chamada edição Jorumenha no séc. XIX (1860-1869) duzentos anos depois da edição Faria e Sousa, traz mais 50 sonetos e 52 peças de géneros diversos.

A este conjunto sobre o qual se debruçam os especialistas questionando a autoria de algumas poesias, porque anteriormente publicadas em nome de outros, ou com características de estilo não atribuíveis a Camões, acrescentou-se o conhecimento público em 1922 do que é conhecido como Cancioneiro Fernandes Tomás, ainda hoje por estudar aprofundadamente e onde abundam composições atribuídas expressamente a Camões. Outros Cancioneiros têm sido entretanto estudados ao sabor das curiosidades e estratégias pessoais dos investigadores.

Passaram mais de 4 séculos sobre a morte de Luís de Camões e hoje está ainda longe de existir qualquer edição da Lírica que possa ser tomada como canónica. É uma vergonha que o país, para o seu poeta nacional, não tenha encontrado os meios, as vontades e recursos, para fixar de forma incontroversa o conjunto da obra do poeta, e que até hoje ninguém tenha conhecido e estudado tão profundamente a obra de Camões como Faria e Sousa no século XVII.

Que panorama triste para situação da obra do poeta com quem Portugal se comemora.

Algumas edições da Lírica surgiram ao longo de século XX. Nenhuma compulsou com critérios legitimados, a obra conhecida e as criações dispersas pelos Cancioneiros de mão que dormem nas bibliotecas do mundo, com vista a apurar o que é de Camões, o que não é de Camões e o que talvez seja.

Para o curioso leitor, em minha opinião de apaixonado pela Lírica camoneana, a mais proba das edições com grafia modernizada, é a LÍRICA COMPLETA DE LUÍS DE CAMÕES, em 3 volumes, publicada em 1980/81 pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e preparada por Maria de Lurdes Saraiva.

É uma edição inclusiva onde se publica tudo o que alguma vez foi atribuído a Camões, com excepções mínimas justificadas em prefácio. O conjunto vem separado e anotado entre o que tem sido considerado de autoria genuína, e aqueles poemas cuja autoria tem sido controvertida, independentemente da opinião da organizadora, deixando esta em  notas circunstanciadas as suas opiniões.

Esta edição apresenta pela primeira vez uma tentativa de organização cronológica das poesias, agrupadas estas por géneros líricos.

A edição estará provavelmente esgotada, como é costume, mas como teve tiragem elevada (10.000ex.) é talvez facil ao interessado encontrá-la em alfarrabista por módica quantia.

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Amar! e Ser Poeta — Florbela Espanca

08 Terça-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Florbela Espanca, Poesia

 

Foi  levado pelo sucesso que teve a poesia de Fausto Guedes Teixeira no blog que decidi trazer a poesia de Florbela Espanca.

Confesso que não me comove por aí além a sua poesia.

É no livro “Charneca em Flor”, publicado postumamente, que alguns sonetos me impressionam. Aí escolhi os poemas que aqui deixo.

Na obra de Fausto Guedes Teixeira bebeu a poetisa a influência para a expressão exacerbada do sentimento e do eu, ainda que a própria lute inicialmente com o fantasma de António Nobre.

Há, evidentemente, mais e diferente na obra de Florbela Espanca. Na solaridade e no grito entusiasmado de viver que atravessa Charneca em Flor, ouve-se uma voz própria, inovadora e única, à época, na poesia portuguesa. Talvez por isso, este tenha sido o livro que a poetisa não editou e apenas saiu, com enorme sucesso, diga-se, após o seu suicídio em 1930, aos 36 anos.

Comecemos com o que é ser poeta para Flor Bela (é assim que consta o nome da poetisa na Certidão de Baptismo)

 

SER  POETA

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior

Do que os homens! Morder como quem beija!

É ser mendigo e dar como quem seja

Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

 

É ter de mil desejos o esplendor

E não saber sequer que se deseja!

É ter cá dentro um astro que flameja,

É ter garras e asas de condor!

 

É ter fome, é ter sede de Infinito!

Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…

É condensar o mundo num só grito!

 

E é amar-te, assim, perdidamente…

É seres alma, e sangue, e vida em mim

E dizê-lo cantando a toda a gente!

 

Vemos aqui, provavelmente, a que foi a primeira versão, do mais conhecido soneto da poetisa e que ocupa, por direito próprio, um lugar nas obras-primas da poesia portuguesa, AMAR!

Entre Ser poeta e Amar! quero crer que terá ocorrido o fim de uma paixão, pois se no primeiro soneto temos:

 

E é amar-te, assim, perdidamente…

 

passamos para Amar! e temos:

 

Eu quero amar, amar perdidamente!

 

mudando da reticencia que deixa o destinatário incógnito para a exclamação  sem destinatário, e estendendo a vontade de amar, de amar-te a  toda a gente, o mundo:

 

 

Amar só por amar: Aqui … além … / Mais este e Aquele, o outro e toda a gente … / Amar! Amar! E não amar ninguém!

 

Eis o soneto

 

 

AMAR!

Eu quero amar, amar perdidamente!

Amar só por amar: Aqui … além …

Mais este e Aquele, o outro e toda a gente …

Amar! Amar! E não amar ninguém!

 

Recordar? Esquecer? Indiferente!…

Prender ou desprender? É mal? É bem?

Quem disser que se pode amar alguém

Durante a vida inteira é porque mente!

 

Há uma primavera em cada vida:

É preciso cantá-la assim florida,

Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

 

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada

Que seja a minha noite uma alvorada,

Que me saiba perder … pra me encontrar …

 

Este amar, amar perdidamente não é de forma nenhuma platónico, se não, vejamos neste Passeio ao campo o convite

 

Meu Amor! Meu Amante! Meu amigo! / Colhe a hora que passa, hora divina,

 

e se dúvidas houvesse

 

Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!

 

Chega de conversa, aqui vai o poema:

 

PASSEIO AO CAMPO

Meu Amor! Meu Amante! Meu amigo!

Colhe a hora que passa, hora divina,

Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!

Sinto-me alegre e forte! Sou menina!

 

Eu tenho, Amor, a cinta esbelta e fina …

Pele doirada de alabastro antigo …

Frágeis mãos de madona florentina …

– Vamos correr e rir por entre o trigo! –

 

Há rendas de gramíneas pelos montes …

Papoilas rubras nos trigais maduros …

Água azulada a cintilar nas fontes …

 

E à volta, Amor … tornemos, nas alfombras

Dos caminhos selvagens e escuros,

Num astro só as nossas duas sombras …

 

Para terminar esta pequena volta pela poesia de Flor Bela,  incluo um poema com carícias junto ao mar.

 

TARDE NO MAR

A tarde é de oiro rútilo: esbraseia.

O horizonte: um cacto purpurino.

E a vaga esbelta que palpita e ondeia,

Com uma frágil graça de menino,

 

Poisa o manto de arminho na areia

E lá vai, e lá segue ao seu destino!

E o sol, nas casa brancas que incendeia,

Desenha mãos sangrentas de assassino!

 

Que linda tarde aberta palpitantes,

Vai deitando do céu molhos de rosas

Que Apolo se entretém a desfolhar …

 

E, sobre mim, em gestos palpitantes,

As tuas mãos morenas, milagrosas,

São as asas do sol, agonizantes …

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Um amor hermafrodita no Cancioneiro de Resende

02 Quarta-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Cancioneiro Geral, Garcia de Resende, Poesia

O poema pretexto para este artigo encontra-se no Cancioneiro Geral de Garcia de Resende.

Compilação monumental da poesia portuguesa de meados do sec. XV até 1516,  foi organizado ao tempo de D. Manuel por Garcia de Resende.

Possui 880 poemas em grande parte colectivos como era prática na época em que a poesia era uma actividade social.

Acabou-se de empremir o Cancioneiro Geeral, com previlegio do muito alto e muito poderoso rei Dom manuel nosso Senhor. Que nenhua pessoa o possa empremir nem trova que que nele vaa, sob pena de dozentos cruzados e mais perder todolos volumes que fizer. Nem menos o poderam trazer de fora do reino a vender, ahinda que lá fosse feito, sô a mesma pena atras escrita. Foi ordenado e emendado por Garcia de Resende, fidalgo da casa d’El-Rei nosso Senhor e escrivam da fazenda do Principe. Começou-se em Almeirim e acabou-se na muito nobre e sempre leal cidade de Lisboa, per Hermam de Campos, alemam, bombardeiro d’El-Rei nosso Senhor e empremidor, aos XXVIII dias de Setembro da era de Nosso Senhor Jesu Cristo de mil e quinhentos e XVI anos.

O poema trata das intimidades de uma Dama com D. Guiomar sobre a qual surge a suspeita de ser hermafrodita.

Estas intimidades são o motivo da indignação de D. João de Meneses

…se vós sois macho. / Se o sois e nam sois dama, / é mui bem que o digais / e tambem deve sua ama / nam querer que vós jaçais / soo com ela em uma cama.

A esta indignação sucede a ironia de Fernão da Silveira, o Moço

Dous gostos podeis levar, / senhora, desta maneira,  / pois sabeis de tudo usar: / ser macho pera Guiomar / e femea pera Nogueira.

Segue-se a justiça draconiana de Dom Rodrigo de Castro

Lancem-vos fora do paço, / ou vos levem a Lisboa / ou vos dêm outra machoa / com que percais o raivaço. / ou vos mandemos capar; / porqu’outra forma nom acho


Continua o poema com a participação de  Dom Pedro da Silva que nos diz como resolve a incógnita sobre se se trata de homem ou mulher

Pera parecer donzela / cousas tendes bem que farte,

…

mas com mui gentil despacho / vos hei-d’ir arregaçar / e oulhar, / se sois femea ou macho.


Para  Fernam da Silveira, o Regedor não há dúvidas, é masculino o sexo dominante da dama

Com estes tratos d’amor, / com estes beijos maa hora / vos nom ham ja por ser senhora, /

mas por um fino senhor.

E o mesmo termina com as razões da sua certeza

Dona Joana de Sousa, / dizem qu’ee prenhe de vós!

Pelo que só há uma solução

mandai um deles cortar /  ou tapar, / e ficai femea ou macho.


Leiamos então o poema


DE DOM JOAM DE MENESES A

UMA DAMA QUE REFIAVA

E BEIJAVA DONA

GUIOMAR DE

CRASTO


Senhora eu vos nam acho

rezam para rafiar

e beijar tam sem empacho

Dona Guiomar,

salvante se vós sois macho.


Se o sois e nam sois dama,

é mui bem que o digais

e tambem deve sua ama

nam querer que vós jaçais

soo com ela em uma cama.

Confessai-nos que sois macho

ou que folgais de beijar,

que doutra guisa nam acho

rezam de antrepernar

tal dama tam sem empacho.


Ajuda de Fernam da Silveira


Dous gostos podeis levar,

senhora, desta maneira,

pois sabeis de tudo usar:

ser macho pera Guiomar

e femea pera Nogueira.

E por isso nam vos tacho,

antes vos quero louvar;

nos trajos em que vos acho

podereis vós emprenhar

outra molher como macho.


Dom Rodrigo de Castro.


Lancem-vos fora do paço,

ou vos levem a lisboa

ou vos dêm outra machoa

com que percais o raivaço.

Lancem-vos um barbicacho

ou vos mandemos capar;

porqu’outra forma nom acho

pera poder escapar

Dona Guiomar;

pois sáfirma que sois macho.


Dom Pedro da Silva.


Pera parecer donzela

cousas tendes bem que farte,

mas chamardes vós muela

a beiços de dama bela

nam vos vem de boa parte.

D’hoje avante nom me agacho

nem mais hei assi d’andar;

mas com mui gentil despacho

vos hei-d’ir arregaçar

e oulhar,

se sois femea ou macho.


Fernam da Silveira,

o Regedor.


Com estes tratos d’amor,

com estes beijos maa hora

vos nom ham ja por ser senhora,

mas por um fino senhor.

Tambem trazês um recacho

e um som de galear,

que beijais tem sem empacho

Dona Guiomar,

que vos ham todos por macho.


Outra sua e cabo


Uma mui estranha cousa

se ruge caa antre nós

porque laa convosco pousa

Dona Joana de Sousa,

dizem qu’ee prenhe de vós!

Tambem diz cum mochacho

vos foi nam sei quem topar!

Havei eramaa empacho,

mandai um deles cortar

ou tapar,

e ficai femea ou macho.


Tal como na generalidade das composições colectivas do Cancioneiro, podemos assistir neste poema à variedade de pontos de vista sobre o mesmo assunto a à sua diferente expressão poética.

Ao transcrever este poema quis iluminar um tema que não se repete na poesia portuguesa antiga que conheço.


Noticia bibliográfica:

Para o leitor não especializado a leitura é dificil. Necessitaria ser acompanhada por dicionário, o qual é incompativel com esta estrutura de blog.

Usei o texto fixado por Aida Fernanda Dias na edição do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende publicada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda em 4 volumes em 1993. O poema traz o nº 586 desta edição e vem inserido no seu vol. III.

A nota erudita sobre a poesia do Cancioneiro de Resende não tem aqui lugar pois este é um blog de não-especialista. A bibliografia é vasta e acessivel. Deixo apenas uma pequena nota sobre as dificuldades que enfrenta quem se aventura pelos textos dos especialistas.

Pertence este poema ás Cousas de Folgar do Cancioneiro na classificação do próprio Garcia de Resende. O verbete Cancioneiro Geral incluído no Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, assinado por M. Vieira Mendes, é um modelo de informação e síntese.

Sobre o autor do poema, D. João de Meneses, o mencionado Dicionário refere apenas um autor com este nome num verbete assinado por C. Almeida Ribeiro, identificando este autor com o Mordomo-Mor de D. João II e de D.Manuel, que terá sido Conde de Tarouca e Grão-prior do Crato.

Por outro lado, Aida F. Dias, editora do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende, menciona 2 poetas no Cancioneiro com o nome D. João de Meneses. Identificando um como D. João de Meneses [Tarouca] (será o conde do Dicionário?) e outro como D. João de Meneses [Cantanhede], e faz a atribuição do poema a este último.

Até aqui tudo bem, não fora o Dicionário atribuir ao primeiro a autoria da extensa intervenção na controvérsia Cuidar e Suspirar incluída no início do Cancioneiro, enquanto Aida F. Dias atribui esta intervenção ao segundo.

Para um não especialista é confusão a mais. Fiquemos com o poema.

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Floriram os jacarandás – Viagem na poesia de Sophia

01 Terça-feira Jun 2010

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Poesia, Sophia de Mello Breyner Andresen

No suave caminhar deste ano de crise chega Junho e de repente o uniforme da paisagem da cidade enche-se de azul.

Numa surpresa encantada exclamamos:

– Floriram os jacarandás!


É a Sophia que vou buscar a emoção mais próxima deste encantamento primaveril:

Como um fruto que se mostra

Aberto pelo meio

A frescura do centro


Assim é a manhã

Dentro da qual eu entro


e daqui outra manhã recordo:


Na manhã recta e branca do terraço

Em vão busquei meu pranto e minha sombra

*

O perfume do oregão habita rente ao muro

Conivente da seda e da serpente

*

No meio da praia o sol dá-me

Pupilas de água mãos de areia pura

*

A luz me liga ao mar como a meu rosto

Nem a linha das águas me divide

*

Mergulho até meu coração de gruta

Rouco de silencio e roxa treva

*

O promontório sagra a claridade

A luz deserta e limpa me reune


levando-me à infância, quando no Algarve havia amendoeiras.

Por final de Janeiro o inverno fazia uma pausa e subitamente as amendoeiras floriam. Eram extensões a perder de vista de encostas floridas em branco e rosa desafiando o azul do céu. Organizavam-se passeios de domingo para ir ver as amendoeiras em flor.

Esta comunhão com a beleza da natureza acompanha-me e


Mergulho no dia como em mar ou seda

Dia passado comigo e com a casa

Perpassa pelo ar um gesto de asa

Apesar de tanta dor e tanta perda


Pois é! A realidade não dá tréguas, A cidade dos outros  / Bate à nossa porta ainda que um desejo de Oasis permaneça:

Penetramos no palmar

A água será clara o leite doce

O calor será leve o linho branco e fresco

O silencio estará nu – o canto

Da flauta será nítido no liso

Da penumbra


Lavaremos nossas mãos de desencontro e poeira

………………………………………………………………….


Escuto mas não sei

Se o que ouço é silêncio

Ou deus



E por quinze dias a cidade ganha uma atmosfera de azul num efémero que faz os dias belos.

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Garvaia e um poema talvez esquecido de Alexandre O’Neill

31 Segunda-feira Maio 2010

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Alexandre O'Neill, Poesia

Na poesia de Alexandre O’Neill, tantas vezes surpreendente e quase sempre genial, encontramos o retrato mordaz que nos define, frequentemente salpicado de uma ternura conivente.

Os exemplos da sua escrita que me apetecia escolher são imensos. No entanto, fiel ao propósito do blog de seguir caminhos menos frequentados, escolhi um poema que não encontrei recolhido nas obras recentemente publicadas com poemas dispersos do Autor, daí o talvez do título.

O poema, Requeixa de Taveirós, inclui-se numa obra colectiva e comemorativa, dedicada à canção medieval Garvaia.

Como refere o editor da obra, Garvaia é nome de manto real e deu nome a um poema. A esta cantiga de amor ou de escárneo se atribuiram diversas autorias e sobre ela se teceram as mais diversas interpretações. Foi-lhe concedida e retirada a honra de ser considerada a primeira poesia portuguesa e há até quem pense estar ela incompleta.

Actualmente atribuida a Pai Soares de Taveirós, eis a canção:

Cantiga da Garvaia

No mundo nom me sei parelha

mentre me for como me vai,

ca ja moiro por vós e ai!

mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia.

Mao dia me levantei

que vos entom nom vi fea!


E, mia senhor, des aquelha

me foi a mi mui mal di’ai!

E vós, filha de dom Paai

Moniz, e bem vos semelha

d’aver eu por vós guarvaia,

pois eu, mia senhor, d’alfaia

nunca de vós ouve nem ei

valia d’ua correa.

É tomando como glosa este poema que O’Neill escreveu Requeixa de Taveirós tornando explicito, o que o poema nos conta e transtorna a humanidade desde sempre ou, como escreve o poeta, entreve e entretem / mortos e vivos, com o propósito de possuir vossa carne / e arrastar-vos, empós, / ao tumulto dos sentidos .

Requeixa de Taveirós

Como eu, mais nenhum outro

foi tão crédulo e tão louco

de me confiar em vós,

senhora branca e vermelha.


Franzis-me essa sobrancelha

com altivez e altavoz.

Nem por isso possuís

razão por vós.


Nem de razão é o assunto,

mas de coração, talvez.

Aqui não entra bestunto,

por esta vez.


Dizeis-me, o que eu já sabia,

que é melhor sofrer poesia,

pensando em vós,

que alimentar veleidade

de possuir vossa carne

e arrastar-vos, empós,

ao tumulto dos sentidos

que entreve e entretem

mortos e vivos.


E quem assim desassisa

a Deus pede que o assista.

Rogai por nós!



Noticia bibliográfica

No âmbito das jornadas de História Medieval realizadas em Junho de 1985, A Altamira e a Quetzal-Funchal promoveram a edição luxuosa em 150 exemplares + 50 exemplares fora do mercado, da Cantiga da Garvaia extraída do Cancioneiro da Ajuda e acompanhada por 2 serigrafias de Vespeira e poemas de Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Natália Correia, Nuno Júdice, Pedro Tamen, Vasco Graça Moura.

O poema foi retirado do exemplar 19/150.

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