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Sete anos de pastor Jacob servia — Génesis, Camões e António Sardinha

20 Quarta-feira Jan 2016

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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António Sardinha, Biblia, Camões, Génesis, Rafael

RAFFAELLO Sanzio - encontro de raquel com jacob 1518-19SONETO de Jacob, pastor antigo,

— soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

Sirvo-me desta primeira quadra de um soneto de António Sardinha (1888-1925) para chegar às origens do relato do amor de homem por mulher na cultura ocidental, o que aconteceu por via do primeiro livro da Bíblia, Génesis. Não falo de Adão e Eva, pois essa é a história da necessidade biológica do sexo e do seu impulso irresistível quaisquer que sejam as consequências, mas da história de Jacob, e do que este aceita fazer para possuir a mulher que quer, neste caso a prima Raquel:

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Conta-se a história em Génesis, capítulo 29.

 

Génesis

29.15

Jacob já estava há um mês em casa de Labão, quando este lhe disse: “É certo que tu és meu parente. Mas até agora tens trabalhado para mim de graça. Diz-me que salário queres.”

29.16

Labão tinha duas filhas, a mais velha chamava-se Lia e a mais nova, Raquel.

29.17

Lia tinha uns olhos muito ternos. Mas Raquel era bonita e elegante.

29.18

Jacob gostava muito de Raquel e por isso respondeu: “Aceito trabalhar para ti, durante sete anos, para casar com Raquel a tua filha mais nova.”

29.19

Labão respondeu: “Está bem. É melhor casá-la contigo que casá-la com outro qualquer. Podes continuar em minha casa.”

29.20

Para obter Raquel, Jacob trabalhou durante sete anos e, pelo amor que lhe tinha, aqueles sete anos pareceram-lhe apenas alguns dias.

 

Camões sintetizou o caso num popular soneto:

 

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

mas não servia ao pai, servia a ela,

e a ela só por prémio pretendia.

 

Os dias na esperança de um só dia,

passava, contentando-se com vê-la;

porém o pai, usando de cautela,

em lugar de Raquel lhe dava Lia.

 

Vendo o triste pastor que com enganos

lhe fora assi negada a sua pastora,

como se a não tivesse merecida,

 

começa de servir outros sete anos,

dizendo: “Mais servira se não fora

para tão longo amor tão curta a vida”.

 

Como se vê pelo soneto, a coisa não correu como prometido, e o pai de Raquel começou por roer a corda.

Vejamos, pois, o que de facto aconteceu, com a continuação do relato bíblico:

 

29.21

Depois disse a Labão: “Dá-me a minha mulher, para eu casar com ela, pois já acabou o tempo combinado.”

29.22

Labão convidou toda a gente do lugar e ofereceu um banquete.

29.23

Mas à noite, em vez de Raquel, Labão levou Lia para o quarto dos noivos e foi com ela que Jacob dormiu.

29.24

Labão deu à sua filha Lia a escrava Zilpa, para ficar ao serviço dela.

29.25

Pela manhã, quando Jacob se deu conta de que era Lia foi reclamar a Labão: “Que é que me fizeste? Por amor de Raquel andei a trabalhar para ti. Porque é que me enganaste?”

29.26

Labão respondeu: “Cá na nossa terra não é costume casar a filha mais nova antes da mais velha.

29.27

Mas depois dos sete dias de lua de mel podemos dar-te também a outra em casamento, desde que te comprometas a trabalhar para mim outros sete anos mais.”

29.28

Jacob assim fez. Passaram os sete dias da lua de mel e Labão deu-lhe também a sua filha Raquel como esposa.

29.29

A Raquel, Labão deu Bilá, sua escrava, para ficar ao serviço dela.

29.30

Jacob dormiu também com Raquel e esta era a sua preferida. E durante mais sete anos Jacob ficou ao serviço de Labão.

 

Está assim elucidado o sucesso que levou ao soneto de Camões acima transcrito.

Aqui chegados talvez valha a pena conhecer a história desde o início, e como Jacob conheceu Raquel:

Génesis:

29.4

Jacob perguntou aos pastores: “Amigos, donde são?” E eles responderam: “Somos de Haran.”

29.5

Jacob perguntou de novo: “Por acaso conhecem Labão, descendente de Naor?” “Conhecemos, sim”, responderam eles.

29.6

Jacob perguntou ainda: “Ele está bem?” “Está sim. Olha! A filha dele, Raquel vem aí com o rebanho”, indicaram os pastores.

29.7

Jacob disse: “Ainda é bastante cedo. Ainda não é tempo de recolher o rebanho. Dêem-lhe de beber e levem-no outra vez a pastar,”

29.8

…

29.9

Enquanto estava a falar com eles, chegou Raquel com a ovelhas do seu pai, pois era ela a pastora

29.10

Ao ver Raquel filha do seu tio Labão, com o rebanho do seu tio, Jacob aproximou-se e retirou a pedra de cima do poço e deu água ao rebanho do seu tio Labão.

29.11

Depois saudou Raquel com um beijo e não pôde conter as lágrimas.

29.12

Jacob anunciou a Raquel que ele era parente do pai dela pois era filho de Rebeca. E ela foi a correr levar a notícia ao pai.

29.13

Labão ao ouvir falar do seu sobrinho, Jacob, correu ao encontro dele, abraçou-o, beijou-o e conduziu-o para sua casa. Jacob contou-lhe então tudo o que tinha acontecido.

29.14

E Labão exclamou: “Realmente tu és da minha própria familia.” E Jacob ficou em casa dele.

 

A imagem que abre o artigo mostra uma pintura de Rafael executada em 1518-19 dando conta do encontro entre Jacob e Raquel junto ao poço. Pela mesma época (1515-25) Palma Vecchio ilustrava como segue o beijo destes no poço (Génesis 29.11).

PALMA VECCHIO - O beijo de Raquel e Jacob 1515-25 a

Volto agora ao sonetos abertura onde António Sardinha (1888-1925), partindo de Camões, nos leva, não pela história bíblica, mas pelo desolado da sua existência na ausência da sua amada:

O que eu servira, p’ra viver contigo, / — tão doce, tão airosa e tão singela!

/ Assim, distante do teu rosto amigo, / em torturar-me a ausência se desvela!

E neste eterno retomar do já dito se tecem as voltas da poesia.

Deixo-o, leitor, com o soneto citado. À obra poética de António Sardinha volto outro dia.

 

Velho motivo

 

SONETO de Jacob, pastor antigo,

—soneto de Rachel, serrana bela…

Oh quantas vezes o relembro e digo,

pensando em ti, como se foras ela!

 

O que eu servira, p’ra viver contigo,

—tão doce, tão airosa e tão singela!

Assim, distante do teu rosto amigo,

em torturar-me a ausência se desvela!

 

E vou sofrendo a minha pena amarga,

—pena que não me deixa nem me larga,

bem mais cruel que a de Jacob pastor!

 

Rachel não era dele e sempre a via,

enquanto que eu não vejo, noite e dia

aquela que me tem por seu senhor!

 

Nota bibliográfica

 

A transcrição do episódio bíblico foi feita a partir de “a BÍBLIA para todos, edição literária“, editada por Temas e Debates e Círculo de Leitores, 2009.

Na transcrição do episódio bíblico introduzi o número dos versículos, os quais não aparecem na edição citada onde o texto é corrido, por forma a permitir o seu cotejo com outras edições do texto.

Luís de Camões, Lírica Completa II, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1980.

António Sardinha, Chuva da Tarde, sonetos de amor, Lvmen, Coimbra, 1923.

(Conservei a ortografia de Raquel e a maiúscula inicial em Soneto da edição original.)

Nota final

O relato bíblico da história de Jacob, Raquel e Lia mais as suas escravas, continua, fixando no texto sagrado uma situação poligâmica: decorrendo da incapacidade de Raquel para ter filhos por um lado, e dos ciúmes de Lia, por outro, Jacob acaba também por procriar com as escravas destas, Bilá e Zilpa.

Não sei como cristãos em geral, e António Sardinha, em particular, fervoroso católico que era, e certamente conhecedor do episódio bíblico, lidam com a legitimação da poligamia que o episódio explicitamente cauciona.

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De dragões e outros figurões a O Mostrengo de Fernando Pessoa

28 Segunda-feira Dez 2015

Posted by viciodapoesia in Crónicas

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Camões, Fernando Pessoa

Raphael - S Jorge e o Dragão 600pxPor este tempo de Natal, ao querer comprar uma prenda para uma criança da família, disseram-me da paixão do miúdo por dinossauros e outros monstros. Lembrei-me de quando o meu filho pelos sete/oito anos vivia apaixonado pelos monstros da moda, à época, umas chamadas tartarugas Ninja, e, depois, dinossauros, seguidos de toda uma galeria que lhes sucedeu, e certamente se reproduzirá ad seculum seculorum.

A um adulto como eu, o que chama primeiro a atenção é a estética do feio apanágio das figuras, o que parece deixar os infantes indiferentes. Com efeito, pensando na coisa sem preparação de especialista, concluo que para os miúdos aqueles seres corporizam o assustador do mundo por conhecer e, simultaneamente, nas suas acções, permitem à criança que joga e brinca, viver intensamente actos de coragem e bravura que significam a aprendizagem de vencer o medo e enfrentar o desconhecido que crescer na verdade é.

É ainda com a memória dessa época que recordo o entusiasmo com que o meu filho ouviu ler o poema O Mostrengo de Fernando Pessoa incluído no livro Mensagem. Nele, é também uma figura monstruosa e aparentemente invencível que, enfrentada pela pequenez de um capitão de coragem, é derrotada. Afinal a repetição da história bíblica de David e Golias.

A descrição poética do episódio do Adamastor em Os Lusíadas de Luís de Camões, para onde o poema O Mostrengo remete, é, do ponto de vista da infância, e para lá da dificuldade vocabular, totalmente diferente, ao que julgo. Em Camões, é tão só um relato de terror perante o monstro o que temos, reduzindo, por isso o apelo do episódio do Adamastor para estes jovens aprendizes da vida, pois, ao que suponho, é no desenlace por coragem que a atracção infantil por estes monstros reside.

Deixo-o, leitor, com os poemas.

 

O Mostrengo

 

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a voar;

À roda da nau voou três vezes,

Voou três vezes a chiar,

E disse: «Quem é que ousou entrar

Nas minhas cavernas que não desvendo,

Meus tectos negros do fim do mundo?»

E o homem do leme disse, tremendo:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

«De quem são as velas onde me roço?

De quem as quilhas que vejo e ouço?»

Disse o mostrengo, e rodou três vezes,

Três vezes rodou imundo e grosso.

«Quem vem poder o que só eu posso,

Que moro onde nunca ninguém me visse

E escorro os medos do mar sem fundo?»

E o homem do leme tremeu, e disse:

«El-Rei D. João Segundo!»

 

Três vezes do leme as mãos ergueu,

Três vezes ao leme as reprendeu,

E disse no fim de tremer três vezes:

«Aqui ao leme sou mais do que eu:

Sou um povo que quer o mar que é teu;

E mais que o mostrengo, que me a alma teme

E roda nas trevas do fim do mundo,

Manda a vontade, que me ata ao leme,

De El-Rei D. João Segundo!»

 

Fernando Pessoa, in Mensagem

 

Camões, Os Lusíadas, Canto V

 

Estrofes 37- 40

 

 

37

«Porém já cinco Sóis eram passados

Que dali nos partíramos, cortando

Os mares nunca de outrem navegados,

Prosperamente os ventos assoprando,

Quando hüa noute, estando descuidados

Na cortadora proa vigiando,

Hüa nuvem, que os ares escurece,

Sobre nossas cabeças aparece.

 

38

«Tão temerosa vinha e carregada,

Que pôs nos corações um grande medo;

Bramindo, o negro mar de longe brada,

Como se desse em vão nalgum rochedo.

“Ó Potestade (disse) sublimada:

Que ameaço divino ou que segredo

Este clima e este mar nos apresenta,

Que mor cousa parece que tormenta?”

 

39

«Não acabava, quando hüa figura

Se nos mostra no ar, robusta e válida,

De disforme e grandíssima estatura;

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

 

40

«Tão grande era de membros, que bem posso

Certificar-te que este era o segundo

De Rodes estranhíssimo Colosso,

Que um dos sete milagres foi do mundo.

Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,

Que pareceu sair do mar profundo.

Arrepiam-se as carnes e o cabelo,

A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!

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Camões — Pode um desejo imenso

18 Domingo Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Poesia Antiga

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Camões

Matisse - Rosto de mulher 1935 invertAfastamento e dor de ausência, amor, distância, beleza lembrada, mais que idealizada: Tais asas dá o desejo ao pensamento!

De tudo a que o amor aspira, contado no superlativo da singularidade da amada, se faz a mais bela das odes de Camões, [Pode um desejo imenso].

 

Ode VI da edição de 1598 das Rimas

 

Pode um desejo imenso

arder no peito tanto

que à branda e à viva alma o fogo intenso

lhe gaste as nódoas do terreno manto,

e purifique em tanta alteza o esprito

com olhos imortais

que faz que leia mais do que vê escrito.

 

Que a flama que se acende

alto tanto alumia

que, se o nobre desejo ao bem se estende

que nunca viu, a sente claro dia;

e lá vê do que busca o natural,

a graça, a viva cor,

noutra espécie milhor que a corporal.

 

Pois vós, ó claro exemplo

de viva fermosura,

que de tão longe cá noto e contemplo

n’alma, que este desejo sobe e apura;

não creais que não vejo aquela imagem

que as gentes nunca vêem,

se de humanos não têm muita ventagem.

 

Que, se os olhos ausentes

não vêem a compassada

proporção, que das cores excelentes

de pureza e vergonha é variada;

da qual a Poesia, que cantou

até ‘qui só pinturas,

com mortais fermosuras igualou;

 

se não vêem os cabelos

que o vulgo chama de ouro,

e se não vêem os claros olhos belos,

de quem cantam que são do Sol tesouro,

e se não vêem do rosto as excelências,

a quem dirão que deve

rosa, cristal e neve as aparências;

 

vêem logo a graça pura,

a luz alta e severa,

que é raio da divina fermosura

que n’alma imprime e fora reverbera,

assi como cristal do Sol ferido,

que por fora derrama

a recebida flama, esclarecido.

 

E vêem a gravidade

com a viva alegria,

que misturada tem, de qualidade

que ūa da outra nunca se desvia;

nem deixa ūa de ser arreceada,

por leda e por suave,

nem outra, por ser grave, muito amada.

 

E vêem do honesto siso

os altos resplandores,

temperados co doce e ledo riso,

a cujo abrir abrem no campo as flores;

as palavras discretas e suaves,

das quais o movimento

fará deter o vento e as altas aves;

 

dos olhos o virar,

que torna tudo raso,

do qual não sabe o engenho divisar

se foi por artifício, ou feito acaso;

da presença os meneios e a postura,

o andar e o mover-se,

donde pode aprender-se fermosura.

 

Aquele não sei quê,

que aspira não sei como,

que, invisível saindo, a vista o vê,

mas para o compreender não acha tomo;

o qual toda a Toscana poesia,

que mais Febo restaura,

em Beatriz nem em Laura nunca via;

 

em vos a nossa idade,

Senhora, o pode ver,

se engenho e ciência e habilidade

igual à fermosura vossa der,

como eu vi no meu longo apartamento,

qual em ausência a vejo.

Tais asas dá o desejo ao pensamento!

 

Pois se o desejo afina

ūa alma acesa tanto

que por vós use as partes da divina,

por vós levantarei não visto canto,

que o Bétis me ouça, e o Tibre me levante;

que o nosso claro Tejo

envolto um pouco vejo e dissonante.

 

O campo não o esmaltam

flores, mas só abrolhos

o fazem feio; e cuido que lhe faltam

ouvidos para mim, para vós olhos.

Mas faça o que quiser o vil costume;

que o sol, que em vós está,

na escuridão dará mais claro lume.

 

Transcrito de Lírica Completa III, edição de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, Lisboa, 1981.

Nota ortográfica

Substituí na transcrição vêm por vêem.

A 3ªpessoa do plural do presente indicativo do verbo Ver vem escrito vêm na edição referida acima, por razões que desconheço.

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Camões — Transforma-se o amador na cousa amada

11 Domingo Jan 2015

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Camões

Arpad Sczenes -Conversação IV 1949Quem tem de amores o tempo e da razão o tormento, esquece quanto o pensamento se engana em questões de coração. Vem isto a propósito de um famoso soneto de Camões onde o poeta reflecte sobre o amor idealizado e de como só pensar não satisfaz um coração amante.

Nestas coisas do amor parece-me que o muito analisar, conversar, reflectir e esmiuçar, complica mais do que esclarece. Saber deixar o tempo pulir a aspereza que a vida em nós eriça, acaba por ser a mais sábia forma de equilibrar o amor imaginado com a realidade que ele oferece. Mas voltando a Camões, como nos fala então o poeta?

Começa por afirmar: Transforma-se o amador na cousa amada, / Por virtude do muito imaginar, e a certa altura interroga-se: Que mais deseja o corpo de alcançar? Certamente não será rebolar-se apenas com ideias, diria eu, o que afinal o poeta confirma ao concluir o poema afirmando: [E] o vivo e puro amor de que sou feito, / Como a matéria simples busca a forma.

Calo-me e deixo o poeta falar.

Transforma-se o amador na cousa amada,

Por virtude do muito imaginar;

Não tenho, logo, mais que desejar,

Pois em mim tenho a parte desejada.

 

Se nela está minha alma transformada,

Que mais deseja o corpo de alcançar?

Em si somente pode descansar,

Pois consigo tal alma está liada.

 

Mas esta linda e pura semideia,

Que, como o acidente em seu sujeito,

Assim co’a alma minha se conforma,

 

Está no pensamento como ideia;

[E] o vivo e puro amor de que sou feito,

Como a matéria simples busca a forma.

 

Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.

 

Num outro soneto igualmente famoso — Pede o desejo, Dama, que vos veja — dá-nos Camões  exactamente a contraparte do imaginado, na manifestação do desejo de ver a quem se ama.

 

Pede o desejo, Dama, que vos veja:

Não entende o que pede; está enganado.

É este amor tão fino e tão delgado,

Que quem o tem não sabe o que deseja.

 

Não há cousa a qual natural seja,

Que não queira perpétuo seu estado.

Não quer logo o desejo o desejado,

Porque não falte nunca onde sobeja.

 

Mas este puro afeito em mim se dana:

Que, como a grave pedra tem por arte

O centro desejar da natureza,

 

Assim meu pensamento (pela parte

Que vai tomar de mim, terrestre [e] humana)

Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

 

Luís de Camões, edição Lobo Soropita, 1595.

 

Abre o artigo a imagem de uma pintura de Arpad Sczenes (1897-1985), Conversação IV, de 1949.

 

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Amor é um arder que não se sente – Soneto do Abade de Jazente

27 Sábado Dez 2014

Posted by viciodapoesia in Poesia Antiga

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Abade de Jazente, Camões

Iluminura 24 500pxRespondendo ao soneto de Camões “ Amor é fogo que arde sem se ver”, escreveu o Abade de Jazente a sua visão de amor.

Bem longe está daquela doce sensação camoniana de nunca contentar-se de contente.  É antes uma leitura pesarosa e sofredora do amor, diferente daquele contentamento descontente mas pelo contrário – É um não acabar sempre penando/ É um andar metido em mil tormentos.

Pobre Abade que assim o sentiu:

 

Amor é um arder que não se sente,

É ferida que doi e não tem cura,

É febre que no peito faz secura,

É mal que as forças tira de repente.


É fogo que consome ocultamente,

É dor que mortifica a criatura,

É ansia a mais cruel, a mais impura,

É fragoa que devora o fogo ardente.


É um triste penar entre lamentos,

É um não acabar sempre penando,

É um andar metido em mil tormentos.


É suspiros lançar de quando em quando,

É quem me causa eternos sentimentos,

É que me mata e vida me está dando.

 

Vale a pena comparar os sonetos verso a verso e perceber onde acontece a mudança do sentir e como a música das palavras o transmite:

 

Camões /     Abade de Jazente

 

Amor é fogo que arde sem se ver;  /  Amor é um arder que não se sente,

É ferida que dói e não se sente;  /  É ferida que doi e não tem cura,

É um contentamento descontente;  /  É febre que no peito faz secura,

É dor que desatina sem doer;  /  É mal que as forças tira de repente.


 

É um não querer mais que bem querer;  /  É fogo que consome ocultamente,

É solitário andar por entre a gente;  /  É dor que mortifica a criatura,

É nunca contentar-se de contente;  /  É ansia a mais cruel, a mais impura,

É cuidar que se ganha em se perder;  /  É fragoa que devora o fogo ardente.


 

É querer estar preso por vontade;  /  É um triste penar entre lamentos,

É servir a quem vence, o vencedor;  /  É um não acabar sempre penando,

É ter com quem nos mata lealdade.  /  É um andar metido em mil tormentos.


 

Mas como causar pode seu favor  /  É suspiros lançar de quando em quando,

Nos corações humanos amizade,  /  É quem me causa eternos sentimentos,

Se tão contrário a si é o mesmo Amor?  /  É que me mata e vida me está dando.


 

Ao comparar   “Amor é fogo que arde sem se ver” e  “Amor é um arder que não se sente” o Abade fica irremediavelmente para trás na imagem que abrasa o coração amante.

Em todo o soneto lemos o contraste entre o génio e o ofício, ainda que a visão tragificada que o Abade tem do amor seja convincentemente transmitida ao leitor. Mas trata-se de uma criação por decalque e não invenção original.

Apenas no último verso do soneto do Abade de Jazente, aquele  “É que me mata e vida me está dando.” , o Abade chega às alturas do seu modelo, o que não é pouco. Somente aí vemos expressar o que para Camões é a natureza do amor, aquela permanente oscilação entre contrários que percorre todo o seu poema.

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Fernando Pessoa — algumas meditações sobre o existir

16 Quinta-feira Out 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

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Camões, Fernando Pessoa, Sá de Miranda

carlosmfernandes - Oleo 078 - 2004 - óleo sobre tela 80x80cmA dolorosa meditação do eu na poesia de Fernando Pessoa atinge frequentemente o sublime:

 

Cai amplo o frio e eu durmo na tardança

De adormecer —

Sou, sem lar, nem conforto, nem esperança,

Nem desejo de os ter.

 

E um choro por meu ser me inunda

A imaginação.

Saudade vaga, anónima, profunda,

Náusea da indecisão.

 

Frio do inverno duro, não se tira

Agasalho ou amor.

Dentro em meus ossos teu tremor delira.

Cessa, seja eu quem for!

19-01-1931

 

Questionando a verdade interior do eu na duplicidade do agir, ao ler esta poesia é sempre uma interrogação de nós o que fazemos, ou não fora, como o poeta escreveu, … quem lê versos lê só a própria alma… (17-03-1931).

 

As coisas que errei na vida

São as que acharei na morte,

Porque a vida é dividida

Entre quem sou e a sorte.

 

As coisas que a Sorte deu

Levou-as ela consigo,

Mas as coisas que sou eu

Guardei-as todas comigo.

 

E por isso os erros meus,

Sendo a má sorte que tive,

Terei que os buscar nos céus

Quando a morte tire os véus

À inconsciência em que estive.

21-08-1934

 

Por último, um poema menos perfeito (última quadra) e onde os versos

Falhei a tudo, mas sem galhardias, / Nada fui, nada ousei e nada fiz,

 

remetem para as reflexões de Tabacaria (15-01-1928):

Falhei em tudo. / Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. /…

 

Este poema de 02-07-1931 afasta-se da interrogação em Tabacaria (aquele talvez) e desenvolve reflexões pela afirmativa onde os belíssimos versos:

…

Nem colhi nas urtigas dos meus dias, / A flor de parecer feliz.

…

espelham a dualidade do ser e do parecer com as imagens do amargo dos dias referidos como urtigas, e a felicidade simulada, pela flor de parecer feliz.

 

Bem, hoje que estou só e posso ver

Com o poder de ver do coração

Quanto não sou, quanto não posso ser,

Quanto, se o for, serei em vão.

 

Hoje, vou confessar, quero sentir-me

Definitivamente ser ninguém,

E de mim mesmo, altivo, demitir-me

Por não ter procedido bem.

 

Falhei a tudo, mas sem galhardias,

Nada fui, nada ousei e nada fiz,

Nem colhi nas urtigas dos meus dias,

A flor de parecer feliz.

 

Mas fica sempre, porque o pobre é rico

Em própria casa, se procurar bem,

A grande indiferença com que fico

É um sonho… Leve-o quem o trate bem.

02-07-1931

 

Em nota final, refiro quanto o verso de abertura do poema inicial

Cai amplo o frio e eu durmo na tardança / …

me ecoa, apesar da variação na abordagem, o soneto de Sá de Miranda

 

O sol é grande, caem co’a calma as aves / …

 

e outro dia transcreverei.

 

No segundo poema de Pessoa, o verso As coisas que errei na vida / …, leva-me direitinho para o soneto de Camões:

Erros meus, má fortuna, amor ardente / Em minha perdição se conjuraram / …

E assim, neste deambular poético lá vou para o multifacetado da vida, na variedade das reflexões que a poesia induz.

Seria matéria de vasta prosa perambular pelas afinidade e oposições entre estes quatro poemas, o que não cabe no formato do blog, obviamente.

 

Poemas transcritos de Fernando Pessoa, Poesia 1931-1935, edição de Manuela Parreira da Silva ed al., Assírio & Alvim, Lisboa, Julho 2006.

Abre o artigo a imagem de uma pintura (óleo s/tela) que fiz pelo ano de 2004.

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Camões — Catarina bem promete…

10 Terça-feira Jun 2014

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Camões

Larry Rivers - Popcorn 1970

É um prazer sempre renovado perder-me na poesia de Camões (1524-10 Junho 1580). Aos poemas familiares que cantam na cabeça nas mais inesperadas situações, e se renovam a cada leitura, acrescentam-se outros, fugazes, que no trivial da ideia nos levam ao encontro do homem por detrás do génio. Desses,  transcrevo hoje três redondilhas em voltas sobre mote, onde de ardências de amor e esquivanças femininas se trata.

 

Começo com um poema de dúbio sentido onde calores masculinos se disfarçam.

Esforçaram-se especialistas em encontrar fundamento histórico para explicar a letra desta redondilha. Por mim é sem questão: é uma gabarolice em torno da firmeza da erecção do poeta e um convite ao acto sem destinatária identificada.

 

Mote

 

Quem disser que a barca pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

 

 

Volta

 

Se vos quereis embarcar

e para isso estais no cais,

entrai logo; que tardais?

Olhai que está preiamar!

E se outrem, por vos fretar,

vos disser que esta que pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

 

Esta barca é de carreira,

tem seus aparelhos novos;

não há como ela outra em Povos,

boa de leme e veleira.

Mas, se por ser a primeira,

aos disser alguém que pende,

dir-lhe-ei, mana, que mente.

Notas

V. 12 — Povos — localidade do concelho de Vila Franca, próxima do rio Tejo.

 

Agora, para a doença que ataca homens e mulheres, o conselho com o remédio óbvio: Eu cá sinto a vossa dor / e, se vós sintis a minha, / dai e tomai a mezinha.

O mote explica o assunto do poema de forma cabal.

 

A üa dama que estava doente

 

Mote

 

Da doença em que ardeis

eu fora vossa mezinha

só com vós serdes a minha.

 

 

Voltas

 

É muito para notar

cura tão bem acertada,

que podereis ser curada

somente com me curar.

Se quereis, Dama, trocar,

ambos temos a mezinha:

eu a vossa, e vós a minha.

 

Olhai que não quer Amor

(por que fiquemos iguais),

pois meu ardor não curais,

que se cure vosso ardor.

Eu cá sinto a vossa dor

e, se vós sintis a minha,

dai e tomai a mezinha.

 

Notas

V. 2 — mezinha — remédio

V. 13 — pois — já que; não curais — não tratais.

V. 13-14 — ardor — tomado no duplo sentido de paixão e febre.

 

Termino com as promessas e esquivas de uma Catarina: Mas pois folgais de mentir, / prometendo de me ver, / eu vos deixo o prometer, / deixai-me vós o cumprir: / Haveis então de sentir / quanto fica mais contente / o que cumpre que o que mente.

 

Mote alheio

 

Catarina bem promete…

Eramá! como ela mente!

 

Voltas Próprias

 

Catarina é mais fermosa

para mim que a luz do dia;

mas mais fermosa seria,

se não fosse mentirosa.

Hoje a vejo piadosa;

amanhã tão diferente,

que sempre cuido que mente.

 

Catarina me mentiu

muitas vezes, sem ter lei;

mas todas lhe perdoei

por ûa só que cumpriu.

Se, como me consentiu

falar, o mais me consente,

nunca mais direi que mente.

 

Má, mentirosa, malvada,

dizei: para que mentis?

Prometeis, e não cumpris.

Pois, sem cumprir, tudo é nada.

Não sois bem aconselhada;

que quem promete, se mente,

o que perde não no sente.

 

Jurou-me aquela cadela

de vir, pela alma que tinha.

Enganou-me: tem a minha;

dá-lhe pouco de perdê-la.

A vida gasto após ela

porque ma dá, se promete;

mas tira-ma, quando mente.

 

Tudo vos consentiria

quanto quisésseis fazer,

se esse vosso prometer

fosse por me ter um dia;

todo então me desfaria

convosco; e vós, de contente,

zombaríeis de quem mente.

 

Prometeu-me ontem de vir,

nunca mais apareceu;

creio que não prometeu

senão só por me mentir.

Faz-me enfim chorar e rir:

rio, quando me promete;

mas choro, quando me mente.

 

Mas pois folgais de mentir,

prometendo de me ver,

eu vos deixo o prometer,

deixai-me vós o cumprir:

Haveis então de sentir

quanto fica mais contente

o que cumpre que o que mente.

 

Notas

Eramá! — interjeição usada na língua popular do tempo, como se vê em Gil Vicente, às vezes com a forma ieramá (nota da edição das Redondilhas de Hernani Cidade).

 

V. 13 — cumprir tem na época, entre outros, o sentido de satisfazer, dar satisfação.

V. 15 — o mais me consente — consente-me mais que falar-lhe.

V. 21 — bem aconselhada — de bom conselho, previdente, sensata.

V. 23 — nem sabe o que perde.

V. 24 — cadela — na Comédia de el-rei Seleuco encontra-se este falar namorado: ” Vossos descuidos? Cadela! / Ah, minh’alma  Sois tão bela…”— É possível que o sentido não fosse então meramente depreciativo, como hoje.

V. 33-34 — trocadilho entre vários sentidos: prometer, por me ter, por meter. — no texto o verbo prometer vem sempre grafado com a forma pormeter.

V. 41 — se não só por — a não ser para.

V. 45 — mas pois — mas visto que.

V. 48 — vide nota ao V. 13.

Transcrição dos poemas e notas de Luis de Camões, Lírica Completa I, prefácio e notas de Maria de Lurdes Saraiva, INCM, 1980.

A imagem de abertura mostra uma obra de Larry Rivers (1923-2002).

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Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça – a fala do Velho do Restelo em Os Lusíadas

04 Quarta-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poesia Antiga

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Camões, Os Lusíadas, Turner

Turner slave-ship

Contrariamente à voz corrente, guardei do estudo de Os Lusíadas no Liceu, a memória de longos trechos e um gosto pelo poema, sempre renovado de cada vez que nele me perco.

Em Os Lusíadas, poema épico à maneira dos clássicos Ilíada, Odisseia e Eneida, conta Camões (1524(?)-1580) a história de Portugal até à sua época e o detalhe da aventura da descoberta do caminho por mar até à Índia.

Como dispositivo narrativo para descrever a história passada de Portugal ao rei de Calecute nos Cantos III e IV, coloca o poeta o relato na boca de Vasco da Gama, o chefe da armada que descobriu o caminho maritImo para a Índia:

Canto III

III

Prontos estavam todos escutando

O que o sublime Gama contaria,

Quando depois de um pouco estar cuidando,

Alevantado o rosto, assim dizia:

– “Mandas-me, ó Rei, que conte declarando

Da minha gente a grã genealogia;

Nao me mandas contar estranha história,

Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

 

Ao longo do Canto III assistimos ao relato dos acontecimentos respeitando à formação de Portugal e consolidação geográfica do território até final da primeira dinastia. É nesse canto que encontramos o episódio de Inês de Castro

 

Estava linda Inês …

 

No Canto IV são relatadas as peripécias das conquistas e derrotas no norte de África até à preparação e partida das naus que viriam a descobrir o caminho para a Índia através do oceano Atlântico.

Turner grand-canal

Como é sabido, as matérias primas e artigos de luxo produzidos no Oriente e sumamente apreciados pelos poderosos ocidentais, o equivalente da alta costura francesa, perfumes e champanhe, etc, de hoje, chegavam às cortes e sociedades europeias por terra, vendidas através da Republica de Veneza, à qual aportavam por demoradas e perigosas viagens através de territórios em grandes parte desérticos. A descoberta de uma via marítima para a realização deste comércio, controlada por Portugal, deu ao país a riqueza e o esplendor de que ainda não se refez no século XXI.

Mas voltando a Camões e ao seu poema, no final do canto IV encontra-se a mais intemporal e por isso mesmo eterna, formulação poética da ambivalência entre ambição humana e gosto pela aventura e risco, conhecida como a fala do Velho do Restelo. Por tal modo famosa que passou para o imaginário popular o epíteto de Velho do Restelo para todo aquele que perante desafios repletos de riscos, aconselham prudência e tento na ambição.

Antes de se ouvir o velho, é ainda Vasco da Gama quem fala, relatando como a população de Lisboa acorreu à praia do Restelo, onde hoje se encontra a famosa Torre de Belém, precisamente a assinalar esta partida, despedindo-se de quem partia.

São versos de uma pungência e actualidade tais que voltaram a ser sentidos e chorados quando do cais da Rocha em Lisboa partiam os navios carregados de soldados para combater nas guerras de África nos anos 60 do século XX.

Feita a descrição nas estrofes LXXXVIII a XCIII, segue-se a entrada na narrativa do velho do Restelo e a sua intemporal reflexão sobre a gloria de mandar, a vã cobiça, por tal forma que

 

 

Nenhum cometimento alto e nefando, / Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração! / Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

Canto IV
XCIV
Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
XCV
— “Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
 Cūa aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
XCVI
“Dura inquietação de alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Gloria soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
XCVII
“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaxo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
 De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que historias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
XCVIII
“Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
XCIX
“Já que nesta gostosa vaidade
 Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
 Temeu tanto perdê-la quem a dá,
C
“Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
CI
“Deixas criar às portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo,
Porque a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
CII
“Ó! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
CIII
“Trouxe o filho de Jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras. Grande engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
CIV
“Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem ora vazio
O grande arquitector co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração!
Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

As imagens que acompanham o artigo são de pinturas de Turner (1755-1851): Naufrágio de navio de escravos e O grande canal de Veneza.

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Erros meus… com Camões e a glosa de Gastão Cruz

15 Sexta-feira Fev 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga, Poetas e Poemas

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Camões, Gastão Cruz, Paul Klee

Klee_Paul-SiblingsPor muito que estejamos convencidos do acerto das nossas escolhas, uma vez por outra ou o desânimo, ou as contrariedades, ou a constatação pela evidência do erro, conduzem-nos a reflexões próximas das de Camões no famoso soneto que hoje trago, sem que, evidentemente, as consigamos expressar com a elegante inspiração do nosso génio maior.

As escolhas, os enganos, a sorte, tudo lá está, na concisão que o soneto exige, servido pela admirável simplicidade de uma linguagem que nos faz participar desse destino.

Na perpétua releitura a que os clássicos convidam, os nossos poetas, por vezes, encontram aí inspiração. É o caso, hoje, de Gastão Cruz (1941) que ao famosíssimo soneto de Camões

[Erros meus, má fortuna, amor ardente]

foi buscar âncora para a glosa que o seu poema Erros traduz.

É num diálogo com o soneto de Camões que o poema de Gastão Cruz se inicia, ganhando rapidamente o caminho da interrogação própria do poeta, atendo-se apenas às perplexidades do amor e que o tempo se encarrega de esgotar:

em que tudo era eterno e só durou / o espaço da manhã do teu sorriso

…

frio só porque tudo tem um tempo / até as rosas…

A simplicidade da linguagem acompanha o soneto de Camões, um dos motivos porque ele continua a falar-nos, e a reflexão desencantada de Gastão Cruz termina sem resposta à interrogação inicial:

Não sei se má fortuna erros decerto / erros somente?…

Erros

Não sei se má fortuna erros decerto
erros somente? Pode o amor ardente,
algum tempo omitido, descoberto
cobrir de novo a pele neste presente,

que de pouco já serve a sua chama
lugar comum tão pobre e tão verídico
que sopras e apagas como a cama
negas ao corpo Foge o tempo mítico

em que tudo era eterno e só durou
o espaço da manhã do teu sorriso
como a rosa que tarde já chegou
e pousou devagar no corpo liso

e frio não de morte ou indiferença
frio só porque tudo tem um tempo
até as rosas e não há presença
nem chama do amor que o torne eterno

Para o caso de haver leitores a quem o soneto de Camões não seja familiar, ele aqui fica, sem comentários intrusivos.

Camões

Erros meus, má fortuna, amor ardente
em minha perdição se conjuraram;
os erros e a fortuna sobejaram,
que para mim bastava o amor somente.

Tudo passei; mas Tejo tão presente
a grande dor das cousas, que passaram,
que as magoadas iras me ensinaram
a não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
dei causa que a Fortuna castigasse
as minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse que fartasse
este meu duro génio de vinganças!

A pintura, de Paul Klee, que abre o artigo, é de 1930.

Noticia bibliográfica

O poema Erros de Gastão Cruz inclui-se no livro Crateras, publicado em 2000, suponho. Esta transcrição foi feita a partir da poesia reunida do poeta OS POEMAS (1960-2006), ed. Assírio & Alvim, 2009.

O soneto de Camões, publicado pela 1ª vez em 1616, é aqui transcrito com actualização ortográfica de Maria de Lurdes Saraiva, e consta de Lírica Completa II, INCM, 1980.

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Camões – reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo

05 Terça-feira Fev 2013

Posted by viciodapoesia in Convite à arte, Poesia Antiga

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Camões, o velho, Pieter Brueghel

Brueghel_Pieter_the_Elder-The_Triumph_of_Death_detailNum tempo que em Portugal é de horizontes bloqueados, quando o agravar de dificuldades atinge muitos, alguns há a quem a mofina não toca.

Vivem-se tempos de grande incerteza, onde a par das desigualdades o desejo de Justiça permanece,  gerando entre as gentes, se não revolta, pelo menos a perplexidade da sua existência.

Há uma espécie de desacerto nesta injustiça flagrante, como se o mundo não fizesse sentido. Isto mesmo nos diz Camões em relação ao seu tempo, na redondilha Ao desconcerto do mundo, e que hoje surge como que saída do nosso quotidiano:

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E, para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado:
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.

O poeta aborda ainda o assunto nas oitavas a dom António de Noronha, sobre o desconcerto do mundo, e interroga-se a abrir:

Quem pode ser do mundo tão quieto,
Ou quem terá tão livre o pensamento,
Quem tão experimentado e tão discreto,
Tão fora, enfim, de humano entendimento
Que, ou com publico efeito, ou com secreto,
Lhe não revolva e espante o sentimento,
Deixando-lhe o juízo quase incerto,
ver e notar do mundo o desconcerto?

Quem há que veja aquele que vivia
De latrocínios, mortes e adultérios,
Que ao juízo das gentes merecia
Perpétua pena, imensos vitupérios,
Se a Fortuna em contrário o leva e guia,
Mostrando, enfim, que tudo são mistérios,
Em alteza de estados triunfante,
Que, por livre que seja não se espante?

Quem há que veja aquele que tão clara
Teve a vida que em tudo por perfeito
O próprio Momo às gentes o julgara,
Ainda que lhe vira aberto o peito,
Se a má Fortuna, ao bem somente avara,
O reprime e lhe nega seu direito,
Que lhe não fique o peito congelado,
Por mais e mais que seja experimentado?

Num longo relato de perplexidades e juízos morais, expostos na forma interrogada, se desenvolve o poema ao longo de vinte e nove oitavas, ora interpelando o mundo ora interrogando a sua circunstância pessoal, e finalmente encaminhando o poema para os assuntos do amor com que termina:

Mas para onde me leva a fantasia?
Porque imagino em bem-aventuranças,
Se tão longe a Fortuna me desvia
Que inda me não consente as esperanças?
Se um novo pensamento Amor me cria
Onde o lugar, o tempo, as esquivanças
Do bem me fazem tão desamparado
Que não pode ser mais que imaginado?

Fortuna, enfim, co’o Amor se conjurou
Contra mim, porque mais me magoasse:
Amor a um vão desejo me obrigou,
Só para que a Fortuna me negasse.
A este estado o tempo me achegou,
E nele quis que a vida se acabasse;
Se há em mim acabar-se, que eu não creio;
Que até da muita vida me receio.

Ilustra o artigo um detalhe de O triunfo da morte, de 1562, pintura de Pieter Brueghel, o velho (1525/30-1569), eventualmente contemporânea dos poemas, e que incluí no artigo anterior com poesia de Kurt Heynicke.

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