• Autor
  • O Blog

vicio da poesia

Tag Archives: Turner

Poesia, meu amargo rio — Carlos de Oliveira

27 Domingo Jul 2014

Posted by viciodapoesia in Poetas e Poemas

≈ 2 comentários

Etiquetas

Carlos de Oliveira, Turner

Turner sun-setting

As palavras / cintilam / … / e o seu rumor / … / ágil e esquivo / como o vento / fala de amor / e solidão: / …

 

Com este fragmento de um poema de Carlos de Oliveira (1921-1981) abro uma curta visita à sua poesia.

 

Dormir / mas o sonho / repassa / duma insistente dor / a lembrança / da vida / …

 

Sonhos, memória, observação atenta da vida, tudo isto atravessa esta poesia contida, onde o peso da cada palavra é tal que por si só constitui frequentemente um verso.

 

É uma poesia fora de moda, nos antípodas dos detalhados relatos pessoais que agora são sucesso. Aqui, na poesia de Carlos de Oliveira, temos a palavra que liberta a imaginação do leitor, fazendo sua a experiência poética que lê, e com isso atingindo a intima emoção que a arte desencadeia.

Abro com o prodigioso poema Infância, contraste e síntese entre o tamanho dos sonhos que ela nos deixa, enormes como cedros, e o calor que no inverno da memória trazem, lenha / da melancolia.

 

Infância

 

Sonhos

enormes como cedros

que é preciso

trazer de longe

aos ombros

para achar

no inverno da memória

este rumor

de lume:

o teu perfume,

lenha

da melancolia.

 

Passemos a um dos poemas transcritos a abrir:

 

Sono

 

Dormir

mas o sonho

repassa

duma insistente dor

a lembrança

da vida

água outra vez bebida

na pobreza da noite:

e assim perdido

o sono

o olvido

bates, coração, repetes

sem querer

o dia.

 

A escolha que segue, Soneto, dá conta da reflexão paralela entre a expressão poética do sentir,

…

o dicionário que me coube em sorte

folheei-o ao rumor do sofrimento:

…

 

e a adequação da palavra precisa à sua transmissão, permitindo no final a existência de poesia:

 

Rudes e breves as palavras pesam

mais do que as lajes ou a vida, tanto,

que levantar a torre do meu canto

é recriar o mundo pedra a pedra;

…

 

No resultado, surgem versos de beleza inexcedível, quais sejam:

…

ó palavras de ferro, ainda sonho

dar-vos a leve têmpera do vento.

Turner procession

Soneto

 

Rudes e breves as palavras pesam

mais do que as lajes ou a vida, tanto,

que levantar a torre do meu canto

é recriar o mundo pedra a pedra;

mina obscura e insondável, quis

acender-te o granito das estrelas

e nestes versos repetir com elas

o milagre das velhas pederneiras;

mas as pedras do fogo transformei-as

nas lousas cegas, áridas, da morte,

o dicionário que me coube em sorte

folheei-o ao rumor do sofrimento:

ó palavras de ferro, ainda sonho

dar-vos a leve têmpera do vento.

 

E quando o poema surge, vem numa espécie de milagre como em Tarde se lê:

…

quando vi

o poema organizado nas alturas

reflectir-se aqui,

em ritmos, desenhos, estruturas

duma sintaxe que produz

coisas aéreas como o vento e a luz.

Turner distant

Tarde

 

A tarde trabalhava

sem rumor

no âmbito feliz das suas nuvens,

conjugava

cintilações e frémitos,

rimava

as tênues vibrações

do mundo

quando vi

o poema organizado nas alturas

reflectir-se aqui,

em ritmos, desenhos, estruturas

duma sintaxe que produz

coisas aéreas como o vento e a luz.

 

No poema Vento, o mesmo estro poético mostra como as palavras cintilam ao falar de amor e solidão:

 

Vento

 

As palavras

cintilam

na floresta do sono

e o seu rumor

de corsas perseguidas

ágil e esquivo

como o vento

fala de amor

e solidão:

quem vos ferir

não fere em vão,

 

Entre tantos, mais alguns belos versos no Soneto da chuva:

…

aqueles versos de água onde os direi,

cansado como vou do teu cansaço?

…

Deixem chover as lágrimas que eu crio:

menos que chuva e lama nas estradas

és tu, poesia, meu amargo rio.

Turner rain-steam-speed

Soneto da chuva

 

Quantas vezes chorou no teu regaço

a minha infância, terra que eu pisei:

aqueles versos de água onde os direi,

cansado como vou do teu cansaço?

Virá abril de novo, até a tua

memória se fartar das mesmas flores

numa última órbita em que fores

carregada de cinza como a lua.

Porque bebes as dores que me são dadas,

desfeito é já no vosso próprio frio

meu coração, visões abandonadas.

Deixem chover as lágrimas que eu crio:

menos que chuva e lama nas estradas

és tu, poesia, meu amargo rio.

 

Da precisa lei da matéria: na natureza nada se cria, tudo se transforma, descoberta por Lavoisier, surge o poema com o nome do químico, dando conta que similmente,

 

Na poesia,

natureza variável

das palavras,

nada se perde

ou cria,

tudo se transforma:

cada poema,

no seu perfil

incerto

e caligráfico,

já sonha

outra forma.

 

Termino com Salmo, poema eivado de sabedoria:

A vida / é o bago de uva / macerado / nos lagares do mundo … a dor é vã / e o vinho / breve.

 

Salmo

 

A vida

é o bago de uva

macerado

nos lagares do mundo

e aqui se diz

para proveito dos que vivem

que a dor é vã

e o vinho

breve.

Turner sea-monsters

Poemas transcritos de Obras de Carlos de Oliveira, Editorial Caminho, Lisboa, 1992.

 

Vai o artigo acompanhado das imagens de pinturas de William Turner (1775-1851).

 

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça – a fala do Velho do Restelo em Os Lusíadas

04 Quarta-feira Dez 2013

Posted by viciodapoesia in Cânone XXI, Convite à arte, Poesia Antiga

≈ 1 Comentário

Etiquetas

Camões, Os Lusíadas, Turner

Turner slave-ship

Contrariamente à voz corrente, guardei do estudo de Os Lusíadas no Liceu, a memória de longos trechos e um gosto pelo poema, sempre renovado de cada vez que nele me perco.

Em Os Lusíadas, poema épico à maneira dos clássicos Ilíada, Odisseia e Eneida, conta Camões (1524(?)-1580) a história de Portugal até à sua época e o detalhe da aventura da descoberta do caminho por mar até à Índia.

Como dispositivo narrativo para descrever a história passada de Portugal ao rei de Calecute nos Cantos III e IV, coloca o poeta o relato na boca de Vasco da Gama, o chefe da armada que descobriu o caminho maritImo para a Índia:

Canto III

III

Prontos estavam todos escutando

O que o sublime Gama contaria,

Quando depois de um pouco estar cuidando,

Alevantado o rosto, assim dizia:

– “Mandas-me, ó Rei, que conte declarando

Da minha gente a grã genealogia;

Nao me mandas contar estranha história,

Mas mandas-me louvar dos meus a glória.

 

Ao longo do Canto III assistimos ao relato dos acontecimentos respeitando à formação de Portugal e consolidação geográfica do território até final da primeira dinastia. É nesse canto que encontramos o episódio de Inês de Castro

 

Estava linda Inês …

 

No Canto IV são relatadas as peripécias das conquistas e derrotas no norte de África até à preparação e partida das naus que viriam a descobrir o caminho para a Índia através do oceano Atlântico.

Turner grand-canal

Como é sabido, as matérias primas e artigos de luxo produzidos no Oriente e sumamente apreciados pelos poderosos ocidentais, o equivalente da alta costura francesa, perfumes e champanhe, etc, de hoje, chegavam às cortes e sociedades europeias por terra, vendidas através da Republica de Veneza, à qual aportavam por demoradas e perigosas viagens através de territórios em grandes parte desérticos. A descoberta de uma via marítima para a realização deste comércio, controlada por Portugal, deu ao país a riqueza e o esplendor de que ainda não se refez no século XXI.

Mas voltando a Camões e ao seu poema, no final do canto IV encontra-se a mais intemporal e por isso mesmo eterna, formulação poética da ambivalência entre ambição humana e gosto pela aventura e risco, conhecida como a fala do Velho do Restelo. Por tal modo famosa que passou para o imaginário popular o epíteto de Velho do Restelo para todo aquele que perante desafios repletos de riscos, aconselham prudência e tento na ambição.

Antes de se ouvir o velho, é ainda Vasco da Gama quem fala, relatando como a população de Lisboa acorreu à praia do Restelo, onde hoje se encontra a famosa Torre de Belém, precisamente a assinalar esta partida, despedindo-se de quem partia.

São versos de uma pungência e actualidade tais que voltaram a ser sentidos e chorados quando do cais da Rocha em Lisboa partiam os navios carregados de soldados para combater nas guerras de África nos anos 60 do século XX.

Feita a descrição nas estrofes LXXXVIII a XCIII, segue-se a entrada na narrativa do velho do Restelo e a sua intemporal reflexão sobre a gloria de mandar, a vã cobiça, por tal forma que

 

 

Nenhum cometimento alto e nefando, / Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração! / Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

Canto IV
XCIV
Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
XCV
— “Ó gloria de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
 Cūa aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
XCVI
“Dura inquietação de alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Gloria soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
XCVII
“A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaxo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
 De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que historias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
XCVIII
“Mas ó tu, geração daquele insano,
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simples inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
XCIX
“Já que nesta gostosa vaidade
 Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
 Temeu tanto perdê-la quem a dá,
C
“Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riquezas mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
CI
“Deixas criar às portas o inimigo
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe!
Buscas o incerto e incógnito perigo,
Porque a fama te exalte e te lisonge,
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia!
CII
“Ó! Maldito o primeiro que no mundo
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
CIII
“Trouxe o filho de Jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras. Grande engano!
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
E quanto pera o mundo menos dano,
Que a tua estátua ilustre não tivera
Fogo de altos desejos que a movera!
CIV
“Não cometera o moço miserando
O carro alto do pai, nem ora vazio
O grande arquitector co filho, dando
Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando,
Por fogo, ferro, água, calma e frio,
Deixa intentado a humana geração!
Mísera sorte! Estranha condição!”

 

 

As imagens que acompanham o artigo são de pinturas de Turner (1755-1851): Naufrágio de navio de escravos e O grande canal de Veneza.

Partilhar:

  • Tweet
  • E-mail
  • Partilhar no Tumblr
  • WhatsApp
  • Pocket
  • Telegram

Gostar disto:

Gosto Carregando...

Visitas ao Blog

  • 2.062.043 hits

Introduza o seu endereço de email para seguir este blog. Receberá notificação de novos artigos por email.

Junte-se a 874 outros subscritores

Página inicial

  • Ir para a Página Inicial

Posts + populares

  • A valsa — poema de Casimiro de Abreu
  • Horas breves do meu contentamento — soneto em diversas versões
  • Camões - reflexões poéticas sobre o desconcerto do mundo

Artigos Recentes

  • Sonetos atribuíveis ao Infante D. Luís
  • Oh doce noite! Oh cama venturosa!— Anónimo espanhol do siglo de oro
  • Um poema de Salvador Espriu

Arquivos

Categorias

Site no WordPress.com.

  • Seguir A seguir
    • vicio da poesia
    • Junte-se a 874 outros seguidores
    • Already have a WordPress.com account? Log in now.
    • vicio da poesia
    • Personalizar
    • Seguir A seguir
    • Registar
    • Iniciar sessão
    • Denunciar este conteúdo
    • Ver Site no Leitor
    • Manage subscriptions
    • Minimizar esta barra
 

A carregar comentários...
 

    %d bloggers gostam disto: